“Embora o Vaticano seja o centro espiritual da Igreja Católica Romana, também é uma cidade repleta de paradoxos, palco de disputas políticas e de carência de habitações. Uma cidade onde a célebre guarda suíça é proibida de carregar armas, onde o jantar dos cardeais é constituído de pratos franceses servidos por freiras com vistosas roupas coloridas, onde a desconfiança reina em todos os níveis da cúria e onde para sobreviver é necessário ‘manter o nariz limpo’ e, sobretudo, não falar com jornalistas.”
Essa concisa e profícua análise a respeito do dia a dia dos moradores do palácio apostólico foi publicada em um domingo, no dia 20 de março de 1982, pelo jornal O Estado de S. Paulo).
Observa-se que a década de 1980 para os católicos romanos foi uma década tensa e bastante corrosiva – e a mídia, obviamente, não ficou para trás. Escândalos financeiros e administrativos eram, constantemente, estampados nas principais manchetes ao redor do globo. Após a falência do Banco Ambrosiano, a súbita – e intrigante – morte de João Paulo I, e com a forçada demissão, algum tempo depois, de Paul Casimir Marcinkus, estabelece-se a calmaria. Passaram-se três décadas e, no entanto, a incógnita permanece: a “concordata” entre o Vaticano e as mídias ainda estaria vigente, ou o conflito se intensificou?
Sendo a mais antiga e influente instituição humana ainda em atividade, a Igreja Católica Apostólica Romana adquiriu com o passar dos séculos prestígio e importância para com o hemisfério ocidental. Dos tempos niceanos aos nossos dias, esse grande aparato sacerdotal enfrentou dilemas, lutou contra aquilo que o afligia e, algumas vezes, impôs aquilo que acreditava estar correto. Temerosa, passou por tempos em que sentiu o gosto da miséria, mas também por tempos em que ostentou a opulência e a abundância extrema. Parafraseando o historiador irlandês Eamon Duffy, quando Ratzinger se tornou o 262º papa, em 2006, a dinastia que representava já sobrevivera não só aos impérios romano e bizantino, mas também aos da Gália carolíngia, da Alemanha medieval, da Espanha, da Grã-Bretanha e do III Reich de Hitler, sem contar o império soviético. Hoje, talvez, ela enfrente o fulgor violento não de um império potente, mas de uma expressiva acusação moral de seus próprios integrantes e de seus aguçados observadores.
Política de obstrução jurídica
Emaranhado em uma teia de relações que se fiam entre governantes e governados, o Vaticano se vê imerso em uma das mais intensas crises desde a Reforma protestante, ocorrida no século 16 – crises reportadas pelos principais jornais do mundo. No raiar do milênio, após diversas notícias reportarem endêmicos casos de abusos sexuais envolvendo clérigos católicos, além de manchetes noticiando complôs administrativos e corrupção financeira encrustados no Instituto de Obras Religiosas (IOR) – o Banco Vaticano – muitos foram os questionamentos, pouco foi veemente solucionado. O pontífice Bento 16, por outro lado, critica o papel da imprensa “acusadora” enfatizando que algumas mídias “completamente gratuitas, vão muito além dos fatos, dando uma imagem da Santa Sé que não corresponde à realidade”.
Pensemos: estariam essas mídias – jornais, revistas, colunistas, telejornais – dando uma “imagem que não corresponde à realidade”? Desde as condolências de Karol Wojtyla para com o passado sombrio da Igreja Católica (seja seu papel imperialista-cruzadístico, inquisitorial, ou como assídua censuradora), têm-se em mente que os guias espirituais da Colina Vaticana desligaram-se do mundo, de seus conflitos, facciosismos e conspiracionismos em geral. Para que possamos compreender tal equívoco, vamos analisar brevemente dois “focos de escândalo”: a crise do celibato sacerdotal e o recente conflito entre os membros mais íntimos e poderosos da Sé romana – todos violentamente noticiados nos anos de 2010, 2011 e 2012.
No que diz respeito à pedofilia, enquanto a Santa Sé se defendia dos advogados das vítimas ainda com impetuosidade, descobria-se que uma conspiração ardilosa e bem arquitetada desmantelava-se. No ano de 1962 – ironicamente, o mesmo ano em que João 23 presidia as primeiras assembleias do Concílio do Vaticano II – era redigido pelo Santo Ofício o documento intitulado Crimen Sollicitationis (Crimes de Solicitação). Assinado pelo cardeal italiano Alfredo Ottaviani e enviado para todos os bispados do mundo, o documento permaneceu envolto de uma aura de segredo que poucos compreendiam – além disso, sua titulação jamais foi publicada no boletim oficial, conhecido como Acta Apostolicae Sedis. Instruindo o alto clero como prosseguir em caso de escândalos sexuais, o documento expressa uma secreta política internacional de obstrução jurídica, visando ao controle de informações e ao acobertamento de escândalos envolvendo sacerdotes católicos. As vítimas eram coagidas a silenciar-se por tempo indeterminado – até mesmo as testemunhas eram obrigadas a permanecerem caladas. Todos os escalões da hierarquia deveriam perpetuar tal complô. Caso isso não ocorresse, a pena era de excomunhão imediata.
As Cartas Secretas de Bento XVI
Durante mais de vinte anos, o homem encarregado de zelar pela obediência aos termos do documento foi o cardeal alemão Joseph Ratzinger, hoje Bento 16. Nota-se que tal crise não é regional, pois já na década de 1950, na Holanda, padres castravam jovens por suas incansáveis denúncias. Em 1960, a irlandesa Marie Collins tinha treze anos quando foi abusada pela primeira vez. Em Brasília, no ano passado, o padre evangelista Moisés Figueiredo foi acusado de estupro e abuso contra seis crianças. Já nos Estados Unidos, o monsenhor William Lynn foi condenado por acobertar diversos escândalos sexuais de que tinha conhecimento.
Outro caso ocorreu recentemente: Paolo Gabriele, ex-mordomo de Bento 16, foi condenado pela justiça vaticana a 18 meses de cárcere, em uma cela no próprio Estado pontifício, por ter “vazado” informações e correspondências sigilosas para o autor e jornalista investigativo italiano Gianluigi Nuzzi. Entretanto, a história oficial publicada pelo Osservatore Romano, periódico oficial da Santa Sé, e pelo secretário de Estado, o cardeal Tarcísio Bertone, não condiz com algumas especulações que foram rapidamente levantadas por analistas internacionais, alguns teólogos e colunistas mundo a fora. Afinal de contas, estaria a cúria romana envolvida no vazamento? Teria o papa Bento 16 inimigos internos?
Complôs entre os ilustres membros da Igreja Católica não são uma novidade. Desde a Renascença, poderosas dinastias – como os Médici, Borgia, Peruzzi, Farnese etc. – e grupos de bispos e cardeais se engalfinham para a conquista do reluzente trono de São Pedro, posto máximo da Cristandade. O livro de Nuzzi, recém-publicado, Sua Santidade – As Cartas Secretas de Bento XVI, mostra a debilidade da monarquia pontifícia. Mostra também que aqueles que habitam o Palácio Apostólico, velhos políticos com o gallero cor-de-sangue, não são tão santos quanto aparentam ser.
Normas não escritas
Muitos ousaram questionar se o próprio secretário de Estado, o cardeal Bertone, não estaria envolvido. A revista de notícias semanal alemã Der Spiegel afirmou que“essas especulações por vezes estão relacionadas com lutas por poder entre as altas autoridades da Igreja italiana, que visam a colocar seus candidatos favoritos em boas posições para a próxima eleição papal. (…) Defensores dessa teoria salientam que após os recentes escândalos de pedofilia, houve um período no qual as pessoas dentro da Igreja estavam pedindo a renúncia de Bertone”.
De acordo com Gianluigi Nuzzi, “no Vaticano, a verdade nunca é uma só”. Ainda assim, clérigos, teólogos e fieis exaltam o famoso Concílio do Vaticano II, ocorrido nos primeiros anos da década de 1960, por ter sido o responsável pela implantação da renovação e a modernização nas estruturas eclesiásticas católicas, de João 23 a Bento 16. Por outro lado, a imprensa (virtual e impressa) e a própria história da Igreja nos mostram o outro lado da moeda. Mostram um Vaticano imerso nas conjunturas tortuosas do sistema-mundo, nas maquinações da política internacional e suas estapafúrdias intrigas internas, movidas pelas finanças e pelo poder.
Quando citei um trecho do jornal dominical Estadão, de 1982, me intriguei com a seguinte afirmação: “Para sobreviver [no Vaticano] é necessário ‘manter o nariz limpo’ e, sobretudo, não falar com jornalistas”. Manter o nariz limpo, de acordo com o próprio jornal “significa observar certas normas não escritas”. Já o “não falar com jornalistas”, obviamente já conhecemos a resposta. E a resposta não é tão santa quanto muitos ainda teimam em acreditar.
Referências
NUZZI, Gianluigi. Vaticano S.A.
DOYLE, T. Patrick. Padres, Sexo e Códigos Secretos.
DUFFY, Eamon. Santos e Pecadores.
Folha de S.Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1161424-vaticano-comeca-a-julgar-ex-mordomo-acusado-de-vazar-papeis.shtml: “Vaticano começa a julgar ex-mordomo acusado de vazar papéis”.
O Estado de S. Paulo, 28/03/1982. “Vaticano, a cidade dos paradoxos”.
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[Luis Felipe Machado de Genaro é estudante de História, Ponta Grossa, PR]