Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A criação do delinquente

Um dos grandes desafios de nossa sociedade é enfrentar a questão da desigualdade social e a consequente violência urbana. Soluções são apontadas e percebemos que são reflexo de um pensamento disseminado na sociedade baseado em uma seleta divisão. Como os meios de comunicação tratam o problema, o que existe por trás do noticiário policial. O estudo traz uma análise crítica acerca do sistema penal e de como o noticiário policial atua na criação de um inimigo completamente desprezível perante a sociedade.

O sistema penal da sociedade burguesa é responsável pela criação da figura do delinquente. Trataremos do tema baseados na obra de Michel Foulcault e mostraremos como a prisão tem um papel importante na criação desse inimigo.

O inimigo

“Lá vinha a vítima da apartação social, consumido pelo efeito de algum tipo de substância tóxica, não conseguiu sustentar o peso do próprio corpo e desabou; desabou bem perto de uma janela de uma residência nobre; a janela foi imediatamente fachada e todas as portas também, um sujeito delirava, fazia muito barulho, devia estar se sentindo muito mal; depois de certo tempo conseguiu ficar de pé e, para o alívio dos moradores foi embora, para cair em algum outro pedaço de chão.” Por que as pessoas sentiram tanto medo de um indivíduo que mal conseguia ficar de pé? Simplesmente por que o inimigo estava ali, diante daquelas pessoas. Corpo magro, roupas sujas, era aquele que fora descrito no programa policial, e não estava preso, um perigo muito próximo.

“(…) Tinha do delinquente contornos bem determinados: apresentá-los como bem próximos, presentes em toda parte e em toda parte temíveis. E a função do noticiário policial que invade parte da imprensa e começa a ter seus próprios jornais. A notícia policial, por sua redundância cotidiana, torna aceitável o conjunto dos controles judiciários e policiais que vigiam a sociedade; conta dia a dia uma espécie de batalha interna contra o inimigo sem rosto; nessa guerra, constitui-se o boletim cotidiano, do alarme ou da vitória” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 35ª ed. Vozes, 2008).

Desde a revolução industrial a plena constituição o modelo burguês a sociedade está dividida em duas classes; a classe dominante, que é a dirigente, e a classe dos trabalhadores. Diante dessa organização surge o sistema punitivo da justiça burguesa, que não tem a finalidade de punir toda a classe dos trabalhadores, mas o potencial inimigo que venha surgir. A luta que se trava contra o inimigo criado nos programas policiais é a forma mais fácil que a classe burguesa encontra pra tornar o inimigo desprezível perante a sociedade. Esse inimigo é muito fácil de ser vigiado e punido, ele não é um inimigo político, é aqui que entra o Direito Penal e todo o Sistema Penitenciário, ambos invenções do capitalismo. Para Michel Foulcault a vitória do sistema penitenciário é transformar o potencial inimigo político em delinquente.

“A instituição de uma delinquência que constitua como que uma ilegalidade fechada apresenta, com efeito, um certo número de vantagens. É possível controlá-la (localizando os indivíduos, infiltrando-se no grupo, organizando a delação mútua): a agitação imprecisa de uma população que pratica uma ilegalidade de ocasião que é sempre susceptível de se propagar, ou ainda, aqueles bandos incertos de vagabundos que recrutam segundo o itinerário ou as circunstâncias, desempregados, mendigos, refratários que crescem às vezes – isso fora visto no fim do século 18 – até formar forças temíveis de pilhagem e de motim, são substituídos por um grupo relativamente restrito e fechado de indivíduos sobre os quais se pode efetuar vigilância constante” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 35ª ed. Vozes, 2008).

Tortura comum

Percebam que a função de todo o sistema penal é transformar um potencial inimigo político em mero delinquente, o que torna esse inimigo frágil demais. Ele não é político, é um estranho dentro da sociedade. A função do noticiário policial é mostrar para a população que o inimigo precisa ser vencido, ele cria o medo. Quando se diz que o sistema penitenciário não cumpre seu papel ressocializador; que a prisão está funcionando como “Universidade do crime” e que por isso não está cumprindo o seu papel estamos enganados, ressocializar nunca foi função da prisão, ela cumpriu sua missão ao transformar aqueles que não se adéquam ao sistema da burguesia em delinquentes, que não representa perigo ao domínio político da elite dirigente.

“É possível orientar essa delinquência fechada em si mesma para as formas de ilegalidade que são menos perigosas: mantidos pela pressão dos controles nos limites da sociedade, reduzidos a precárias condições de existência… os delinquentes se atiram fatalmente a uma criminalidade localizada, sem poder de atração, politicamente sem perigo e economicamente sem consequência” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 35ª ed. Vozes, 2008).

Não faltam casos, na própria mídia, onde policiais militares agridem pobres em comunidades carentes, é o retrato fiel do desprezo, da forma como a sociedade, através dos programas policiais, trata a figura do delinquente. Por que se fala tanto nos torturadores da ditadura militar? Por que os torturados eram da classe média, era o inimigo político do regime militar. Por que a tortura que é praticada hoje pela democracia não recebe o mesmo clamor social pelo seu fim? Por que as “pessoas comuns” clamam por mais severidade nas punições? Simplesmente porque os torturados agora são meros delinquentes.

Individualista e excludente

A cada ano no Brasil vemos aumentar os índices de violência urbana, o que explica esse fenômeno é justamente o tamanho das desigualdades sociais. De acordo com o Mapa da Violência 2010, “o Brasil passou de 13.910 homicídios em 1980 para 49.932 em 2010, um aumento de 259% equivalente a 4,4% de crescimento ao ano”.Do outro lado os 40% mais pobres ganham apenas 11% da riqueza nacional, de acordo com o IBGE. Existe, portanto, uma cortina de ouro que separa os 10% mais ricos do restante da população, principalmente dos 10% mais pobres, de acordo com o censo 2010 do IBGE Os 10% mais ricos da população brasileira ganharam, em 2010, 44,5% do total de rendimentos, enquanto os 10% mais pobres ficaram com 1,1%. Os excluídos, esses 10% mais pobres são aqueles transformados em delinquentes, é um estranho ao sistema burguês e possível é transformado em inimigo.

A população sente-se insegura, o que a faz pensar que necessita de mais segurança, orientados pelo noticiário policial, acredita-se que precisamos e mais policiais. A Polícia Militar é o instrumento de enfrentamento e um dos fatores para o aumento da criminalidade.

“A criminalidade não nasce nas margens e por efeitos de exílios sucessivos, mas graças a inserções cada vez mais rigorosas, debaixo de vigilâncias cada vez mais insistentes, por uma acumulação de coerções disciplinares. Em resumo, o arquipélago carcerário realiza, nas profundezas do corpo social, a formação da delinquência a partir das ilegalidades sutis, o ressarcimento destas por aquela e a implantação de uma criminalidade especificada” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 35ª ed. Vozes, 2008).

Pobres, inimigos do sistema, são transformados em delinquentes, está aqui a vitória do sistema penal burguês, ele criou uma criminalidade específica e possui mecanismos de tornar esse inimigo mal visto pela sociedade; essa criminalidade é contrária àquela que Foucault nos mostra que ocorrera no século 19, ou mesmo com o Cangaço, onde o criminoso é visto como “herói”, os cangaceiros inclusive ganham um certo misticismo.

Portanto, é mito burguês acreditar que mais força policial e mais severidade nas penas vão diminuir a criminalidade. O que diminui essa criminalidade é a diminuição das desigualdades sociais, inclusive com o fim da Polícia Militar e do Direito Penal. Infelizmente, ao invés de ser tornar mais cidadã e includente, nossa sociedade se torna mais individualista e excludente. Não precisamos de mais policiais armados nas ruas, precisamos, sim, de boas escolas para todos.

Conclusão

Enfrentar a desigualdade, modificar o sistema econômico-social que concentra a maior parte das riquezas nas mãos de poucos é o grande desafio a ser encarado pelos movimentos sociais do século 21, precisamos, também, transformar o pensamento de que necessitamos de um aparato punitivo cada vez mais forte; precisamos do engajamento público na luta pela educação pública, exigir o fim da Polícia Militar é dessa forma que eliminaremos a violência social do nosso cotidiano, precisamos romper a cortina de ouro que separa ricos e pobres de forma tão severa no Brasil.

Referências:

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 35ª ed. Vozes, 2008

Waiselfisz, Julio Jacobo Mapa da Violência 2012: A Cor dos Homicídios no Brasil / Julio Jacobo Waiselfisz – Rio de Janeiro: Cebela, Flacso; Brasília: Seppir/PR, 2012.

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[Luiz Rodrigues Junior é graduando em Direito pela UFRN]