Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

O silêncio sorridente

E se o tráfico de drogas não fosse o grande inimigo público contemporâneo? Quem culparíamos pela violência sistêmica? Em quem e no que ancoraríamos o medo e a insegurança, valores tão caros à sociedade burguesa tão emocionalmente ligada à propriedade e à posse de bens? Tais questões têm me inquietado ao longo do desenvolvimento da pesquisa de meu trabalho de conclusão de curso (de título provisório “Drogas e Proibicionismo Midiático: quando a imprensa legitima o sistema penal”), o qual, ainda que careça de leituras – afinal, são tantas e diversas as abordagens teóricas sobre o tema –, já gera inúmeros questionamentos.

Para entender a questão central de tais inquietações é preciso que se observe que são inúmeras as naturezas dos crimes previstos no Código Penal Brasileiro. Tantos mais do que a Justiça e o sistema prisional são capazes de assimilar. Então, o Estado precisa de inimigos e, para que acreditemos que eles existem, suscita-nos temor. Assim, o sentido do medo já não se apresenta como mero fator psicológico; com o advento da sociedade moderna, ele altera o seu sentido e se difunde: o medo e a insegurança tornam-se peças preponderantes no jogo sociopolítico.

Para o teórico e estudioso do Direito Penal do Inimigo Günter Jakobs, inimigo é aquele que se afasta das normas impostas pelo Direito e não oferece garantias de que, algum dia, seguirá fiel à norma. O inimigo é também aquele que não deve ter seus direitos reconhecidos. Contra ele, justificam-se procedimentos além dos penais. E, em nome da segurança pública, são aceitáveis procedimentos que mais lembram os de guerra, com policiais militares fortemente armados entre civis, “caveirões” circulando entre comunidades.

“Compre”, “tenha”, “seja”

O inimigo é quem rompe com o contrato social que normatiza a vida dos indivíduos. Ele que já não é mais membro do Estado, é seu rival. Por isso, precisa ser duramente repreendido e combatido. Já não é reconhecido como sujeito de direito, mas objeto de coação, a qual se justifica e se legitima no medo que os indivíduos têm dos outros indivíduos. Na relação entre o “eu” e o “outro”, este representa o perigo e deve ser expurgado do corpo social. E é preciso que o “eu” monitore as ações do “outro” e as represálias por ele sofridas. Para isso, nada mais útil do que as imagens veiculadas em rede nacional, num grande espetáculo midiático travestido de telejornalismo e exibido em horário nobre, que faz crer que todas as favelas têm a configuração das do Rio de Janeiro, que a grande mazela das comunidades é o tráfico e não o histórico de desassistência e de esquecimento desses lugares por parte do Estado e que todo o local que tem usuários de drogas ilegais apresenta os mesmos índices de violências do Rio.

Neste espetáculo midiático, a ideia da existência de um inimigo é reafirmada a todo o momento por uma imprensa em coesão com o sistema penal, que legitima o discurso proibicionista e faz acreditar necessária a criminalização de algumas substâncias psicoativas, mas não de outras. Para isso, constrói discursos que ignoram as distinções compositivas de cada substância e equiparam seus efeitos sobre o cérebro humano como se os organismos dos usuários reagissem aos estímulos de igual maneira. Tal postura é claramente sintetizada no seguinte trecho do artigo “Mídia e Sistema Penal no Capitalismo Tardio”, de autoria do advogado e jurista brasileiro Nilo Batista: “Tal legitimação implica a constante alavancagem de algumas crenças e um silêncio sorridente sobre informações que as desmintam”.

Não só a alavancagem de crenças é constatada na cobertura midiática a reboque das instituições penais, mas também uma polarização da discussão sobre o tema drogas e segurança pública em torno de sentimentos e de emoções, de preferências, de gostos e de predileções, desvinculando da experiência do leitor-médio o sentido de continuidade e de tempo histórico. É constatado um estímulo à “memória imediata” atrelada prioritariamente aos fatos, que são construídos de modo a desvincular seus efeitos de suas causas geradoras. É também claro o temor social que se quer criar a partir da veiculação de imagens de câmera de segurança que mostram a ação violenta de um adolescente que vitima outro em busca de um par de tênis ou de um celular de última geração. O medo fomentado que justifica a recolocação do debate sobre a necessidade da redução da maioridade penal na agenda da mídia, mas que silencia frente às mensagens enviadas diariamente pela publicidade que gritam “compre”, “tenha”, “seja” e que pouco se interessa pelos meios utilizados para alcançar tais objetos de consumo.

O perigo é o “outro”

E não é apenas o sentimento de medo que é provocado pela mídia. Ela também suscita a descrença nas instituições, nos direitos humanos, nos antropólogos, nos sociólogos e em qualquer outro ator social que defenda ideias que a desminta. O fracasso histórico dos preventismos, dos proibicionismos e do sistema punitivo falido são, na maioria das vezes, silenciados pela mídia. O que importa é o que dizem as fontes autorizadas ao debate nos maiores veículos de comunicação do país. Autorizadas não pelo seu conhecimento científico ou empírico, mas por serem legitimadoras do discurso que se quer vender.

São fontes de fala monofônica, que fazem análises irresponsáveis, superficiais, baseadas num pseudoconhecimento da questão da segurança pública, da violência, da criminalidade e do uso de drogas. Mas também é inegável que essas são as fontes que satisfazem a espera de parte da sociedade despolitizada, que, com orgulho, intitula-se apolítica, mas que tem suas ideias politicamente direcionadas e seus argumentos ancorados na argumentação rasa que, invariavelmente, encerra-se em “li/assisti no veículo X”. É uma sociedade que quer se assegurar através do discurso midiático que o perigo é o “outro”, que deve ser punido não importa a sua idade ou a gravidade da ação que cometeu. Quer sentir que o “outro” está afastado, isolado, para além dos limites das paredes de sua casa e de seu convívio familiar. Esse sentimento de segurança assegurado pelas forças coercitivas e pela confiança num sistema capaz de dar conta de tantos inimigos, porém, é apenas um simulacro da realidade construído pelo Estado e, é claro, tão bem reverberado pela mídia.

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Anelise Schütz Dias é estudante de Jornalismo, Santa Maria, RS