Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em busca da narrativa jornalística

O trajeto percorrido pelo jornalismo, desde suas primeiras manifestações práticas até hoje, tem sido objeto de intensas pesquisas e estudos elaborados por teóricos que pretendem criar uma teoria própria do jornalismo. Por ora, a maior parte dos estudos já realizados se desenvolve a partir de três vertentes científicas: a sociológica, a antropológica e a lingüística. A escola francesa é a que oferece as bases sólidas para os estudos dedicados a pesquisar o discurso e a narrativa jornalística, mas, muito antes de tais pesquisas ganharem espaço e atenção considerável na academia, o filósofo alemão Walter Benjamin já havia relacionado jornalismo e narrativa em 1936, quando escreveu: a imprensa é a grande responsável pela decadência da narrativa.

Em seu texto intitulado ‘O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov’, Benjamin afirma que a arte de narrar está a caminho da extinção em decorrência de um fenômeno social identificado por ele ainda na primeira metade do século 20: as ações da experiência foram gradativamente desvalorizadas e as pessoas foram privadas de uma capacidade que parecia universal e inerente ao homem, a capacidade de intercambiar experiências. Segundo Benjamin, as imagens do mundo exterior e também do mundo ético sofreram sérias distorções – eventos como a Primeira Guerra Mundial seriam os responsáveis por tais distorções, pois expõe cada indivíduo, física e psicologicamente, a situações-limite que restringem, e às vezes anulam, a capacidade de comunicar e compartilhar experiências, já que são estas as fontes a que o narrador recorre.

Instrumento importante e legítimo

Benjamin define dois tipos fundamentais de narrador: aquele que viaja e adquire experiências próprias, também conhece as de outros indivíduos e depois conta o que vivenciou, e aquele que não viajou nunca, mas conhece bem sua história e tradições, que são passadas de geração a geração. Embora as fontes de onde adquirissem o que era narrado fossem distintas, as duas narrativas apresentariam a característica dos narradores natos: o senso prático, definido por Benjamin como o ato de narrar experiências que apresentem alguma utilidade aos ouvintes. Sobre a natureza da narrativa, ele escreveu:

‘Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. Mas, se `dar conselhos´ parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. […] O conselho tecido na substância viva da experiência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção’ (Benjamin, 1994: 200).

A arte de narrar relacionada diretamente com o lado épico da verdade já definhava na década de 1930, segundo Benjamin, em decorrência da evolução das forças produtivas e industriais. A primeira manifestação dessa mudança de cenário foi o surgimento do romance, separado da narrativa porque está vinculado ao livro. A narrativa é de tradição oral, pois o narrador conta o que viveu e o que outros viveram, e essas experiências narradas incorporam-se às experiências dos ouvintes. Já o romance é de tradição escrita e individual. Enquanto a narrativa oral e épica pretende aproximar narrador e ouvinte e agregar experiências umas às outras, o romance acaba por contar histórias individuais, pouco próximas da realidade, que se segregam das demais. Tal ruptura teria ocorrido lentamente e culminado na ascensão da burguesia, que transformou a imprensa em um de seus instrumentos mais importantes e legítimos. No capitalismo, ganhou destaque um tipo de comunicação cuja origem, embora antiga, jamais havia influenciado a narrativa até então: a informação.

Fait-divers ehardnews

Benjamin detecta na informação difundida pela imprensa a grande causa da decadência da narrativa porque esta tinha origem e continuidade nas experiências próximas e distantes que eram contadas e recontadas, o saber narrado possuía autoridade independente de tempo e espaço, enquanto aquela era selecionada e lapidada de acordo com o tempo presente e o espaço próximo.

‘[…] a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível `em si e para si´. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio’ (idem: 203).

Quando Benjamin caracteriza a informação como compreensível ‘em si para si’, está se referindo às explicações que geralmente acompanham uma notícia, o que torna cada história muito menos surpreendente do que se ela fosse apenas narrada, já que o princípio básico da arte de narrar é evitar explicações. As histórias noticiadas são facilmente digeridas, pois as acompanham explicações e interpretações desnecessárias na narrativa. ‘O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação’ (idem: 203). Mas, a grande diferença entre narrativa e informação é, segundo o autor, o fato de que o valor atribuído à informação é proporcional ao seu frescor, ou seja, quanto mais nova for, mais valor ela possui. No entanto, esse valor é também muito breve, daí a necessidade de a informação se explicar rapidamente, enquanto ainda é nova e interessa a alguém. Já a narrativa não é ameaçada pelo tempo, sua força é conservada e mesmo depois de muito tempo ainda é capaz de ser evocada em diversas situações e contextos, pois a mensagem que carrega nunca é definitiva, é sempre suscetível a novas interpretações.

Definida por Benjamin como uma forma artesanal de comunicação, a narrativa, ao contrário da notícia, ‘não está interessada em transmitir o `puro em si´ da coisa narrada como uma informação ou relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele’ (idem: 205). Esta definição ampara várias pesquisas em jornalismo sobre a narrativa jornalística: é a razão pela qual teóricos afirmam que a narrativa só existe nosfait-divers, e não nashardnews, pois aquelas abordam assuntos de interesse humano e permitem que o tema seja tratado com maior subjetividade, enquanto estas se concentram no fato a ser noticiado e em dados, sem permitir maior contextualização ou interpretação.

Exegese substitui explicação

Além disso, as matérias de interesse humano são, geralmente, atemporais, podem ser lidas amanhã ou no próximo ano, característica da verdadeira narrativa, segundo Benjamin, enquanto as matérias duras tem prazo de validade, devem ser publicadas tão logo o fato ocorreu.

‘[…] o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento dashort story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento de várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas’ (idem: 206).

Por fim, Benjamin reflete sobre o trabalho do historiador e do cronista (o narrador). O trabalho do historiador é registrar da forma mais fiel possível os acontecimentos que marcam as sociedades ao longo dos séculos e para realizar tal tarefa, recorre aos registros oficiais, aos não-oficiais, a depoimentos, cartas, enfim, todo material comprovadamente verdadeiro que possa fornecer elementos que comprovem o que registra a história. O historiador não pode tomar um fato e representá-lo como um modelo da história mundial. Já o cronista faz exatamente isso: cria modelos, representantes clássicos da história do mundo e do homem – o verdadeiro narrador não se preocupa com uma explicação que possa ser verificada, com a cronologia dos fatos, ao contrário, a substitui pela exegese, que se concentra na forma como tal narrativa vai se inserir no fluxo inexplicável de acontecimentos que constituem a vida.

Imagens abrangentes e representativas

As observações de Benjamin acerca da narrativa são válidas, embora muito questionadas por vários teóricos do jornalismo que, diante da afirmação de que a imprensa é a grande responsável pela decadência da narrativa, dedicaram-se a estudar a Teoria da Linguagem a aplicá-la ao jornalismo para provar que existe, sim, uma narrativa própria e legítima do jornalismo. Benjamin define os dois tipos fundamentais de narrador em seu ensaio, mas faz uma ressalva: a partir destes dois tipos básicos surgem outros, e é através desta brecha que os estudos da narrativa jornalística ganham consistência.

É necessário perceber a diferença básica entre a narrativa original e em extinção, descrita por Benjamin, e a narrativa jornalística, que consiste na funcionalidade de cada uma. A narrativa oral não tem compromisso com a verificação e explicação dos acontecimentos/experiências que narra, pois seu objetivo primeiro é transcender a barreira do tempo e do espaço, sendo transmitida geração após geração com o intuito de aconselhar e oferecer aos seus ouvintes modelos da história das sociedades. Já a narrativa jornalística tem o dever de narrar os fatos com a maior exatidão possível (exatidão, não a objetividade), através da verificação e explicação dos mesmos, pois sua função não é criar modelos que representem um conjunto imenso de acontecimentos, mas oferecer o esclarecimento de que existem realidades e contextos diversos nos quais a história do homem se desenrola. A função das notícias ultrapassa a função da narrativa de Benjamin, pois seu papel não é apenas o de compartilhar informações sob a forma de experiências vividas, mas de fornecer à sociedade elementos que contribuam para a construção da realidade social.

‘[…] o objetivo primeiro das notícias é derivado do papel dos jornalistas como construtores da nação e da sociedade, e como gerenciadores da arena simbólica. O objetivo mais importante das notícias, portanto, é fornecer à arena simbólica e à cidadania imagens abrangentes e representativas (ou construtos) da nação e da sociedade’ (Gansapud Soares, 2001: 26).

Imaginário sobre política e corrupção

Compreendidas desta forma, as notícias deixam de ser apenas informação de fatos e se transformam em produtos culturais. Assim, a informação, citada por Benjamin como a forma de comunicação que decretou o fim da narrativa, não é o mais importante nos veículos de comunicação, mas sim a notícia, ou seja, a forma que a informação toma depois de moldada pela narrativa jornalística. Rosana Soares (2001: 29) afirma que, somente quando se tornam narrativa e passam a fazer parte do discurso público, as mídias deixam de ser um simples meio técnico a partir do qual se produz e reproduz mensagens e se transformam em mediadoras e construtoras da realidade discursiva e da arena simbólica.

Se a informação com a qual o jornalismo trabalha é moldada pela narrativa jornalística e desta forma contribui para a construção da realidade, então seu valor não é breve, como alega Benjamin. Embora as notícias tratem, geralmente, de assuntos e temas atuais, a partir de acontecimentos específicos que forneçam informações específicas, tais acontecimentos não irrompem do nada, sem um contexto propício e um conjunto de elementos que possibilitem que eles aconteçam. Segundo Lacan, uma significação remete sempre a outra significação, então, os acontecimentos noticiados têm relação direta com outro conjunto imenso de significações, e o papel do jornalismo é tornar a percepção da realidade mais ampla, possibilitar que os acontecimentos sejam relacionados – é a isto que podemos chamar de discurso, que só é possível se constituir através da narrativa.

O sujeito da enunciação faz uma série de escolhas, de pessoa, de tempo, de espaço, de figuras, e conta ou passa a narrativa, transformando-a em discurso. O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa ‘enriquecida’ por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia (Barros, 1999: 53).

O discurso, no entanto, não se dá em uma só notícia. São conjuntos de inúmeras notícias que, embora partam de um fato específico, abordam o mesmo tema que formam os discursos jornalísticos. Como enfatizou Soares (2001: 30), ‘o jornalismo não busca o novo todo dia, mas a algo que se repete e, ao se repetir, torna-se uma referência permanente àquilo que faz o comum de todos’. Neste aspecto, a narrativa jornalística apresenta semelhanças à narrativa de Benjamin, pois, embora não crie modelos de representação clássicos, é um dos mediadores da arena simbólica, como já foi dito, ou seja, permeia o discurso público, dá origem a laços sociais, proporciona um compartilhamento de informações e experiências comuns a todos e, mais que isso, oferece significações comuns acerca do que acontece na sociedade. O caso Renan Calheiros, por exemplo, pode não ser lembrado daqui a um século, como Benjamin afirma que as verdadeiras narrativas o são, mas é uma pequena peça que, somada a tantas outras, conformou um discurso que faz parte do imaginário social sobre política e corrupção. A notícia, enfim, trabalha com o universal, mas constrói certa realidade em partes, que são a reprodução do que foi estabelecido no decorrer dos anos (Bird e Dardenne, 1993).

‘O conteúdo da dicotomiahard/soft

Sobre a necessidade de a informação noticiada ser verificada, característica da notícia que Benjamin afirma afastá-la ainda mais da narrativa verdadeira, Lyotard (apud Soares, 2001: 38) observa que existe no jornalismo dois tipos de saberes, o científico e o narrativo. O primeiro se sustenta na argumentação e na prova de que é verdadeiro o que afirma, já o saber narrativo, que é formado por um conjunto de regras que constitui um vínculo social, se autolegitima pela própria forma de narrar.

‘As narrativas jornalísticas apresentam, portanto, discursos ambíguos na medida em que são sustentadas por esses dois saberes. […] ao descrever os fatos reais e tentar ancorá-los na estrutura narrativa por meio de recursos discursivos próprios de embreagem e desembreagem […], estabelecem-se como conhecimento científico, buscando provas e argumentos para sua fundamentação. Por outro lado, ao utilizar as regras narrativas como formadoras de vínculos sociais que legitimam, por elas mesmas, a narrativa, estabelecem-se enquanto um saber narrativo que procura legitimar o próprio desempenho’ (Soares: 2001: 38).

Se o jornalismo possui esses dois tipos de conhecimento, então a afirmação de Benjamin pode ser questionada, além disso, a narrativa jornalística necessita ser permeada pelo saber científico, pois sua razão de existir é outra, e não apenas a de se perpetuar ao longo dos séculos, sofrendo alterações a cada geração em que é evocada.

Sobre a característica que Benjamin diz ser somente da verdadeira narrativa, que é a de abordar ações de experiência diversa, repassando conhecimento toda vez que é narrada mais uma vez, por um outro narrador que agrega a ela novas experiências e de outros, Rodrigues (2002: 220) contrapõe, escrevendo sobre o discurso, que, como já foi dito, é produto da narrativa:

A característica distintiva do discurso midiático é o fato de o âmbito da sua legitimidade não ser delimitado pelas fronteiras de um domínio restrito da experiência. Enquanto o âmbito da legitimidade de outros tipos de discurso é limitado a um dos domínios específicos da experiência, o âmbito de legitimidade do discurso midiático é transversal ao conjunto de todos os domínios da experiência moderna. Para dar conta desta distinção, dizemos que os discursos não midiáticos são esotéricos, ao passo que o discurso midiático é esotérico.

Ora, não há por que existir dúvida sobre as origens diversas das informações que constituem a matéria-prima das notícias e da narrativa jornalística.

Fundamentados em fragmentos dos estudos dos autores acima citados e de inúmeros outros, é inevitável concluir que Benjamin antecipou-se precariamente ao afirmar que a informação era a grande responsável pela decadência da narrativa, junto com a possibilidade de sua reprodução com o surgimento e fortalecimento da imprensa. No entanto, Bird e Dardenne sugerem uma divisão que não descarta, de forma alguma, a existência da narrativa jornalística, mas suscita questionamentos sobre a possível existência de duas formas narrativas na prática jornalística:

‘A forma narrativa do registo provém essencialmente da forma discursivalogos, que os filósofos socráticos distinguiram domythos, ou estória (Fisher, 1985), e ficou identificado como objectiva, em todas as formas de narrativa, sejam elas história, notícia ou ciência social. Desenvolveu-se a percepção de que o registo era a verdadeira forma de informar, enquanto a estória era simplesmente diversão, e no jornalismo as duas tornaram-se distintas, tanto na forma como no conteúdo da dicotomiahard/soft‘ (Bird e Dardenne, 1993: 270).

A construção de uma teoria própria

Esta dicotomia já é conhecida dos jornalistas, e talvez quando Benjamin escreveu seu ensaio estivesse se referindo àshardnews como responsáveis pelo fim da narrativa, já que elas tratam a informação de forma mais dura, direta, como um relato (embora isso não signifique que não exista aí a narrativa), enquanto assoftnews permitem um pouco mais de subjetividade, pautas não tão vinculadas a datas, a fatos imediatos.

A discussão sobre dar mais espaço às matérias de interesse humano ou de trabalhar ‘pautas-hard‘ de forma a humanizá-las mais, para aproximar o leitor, para permitir que este compreenda e visualize melhor o que está sendo noticiado, ainda é recente e as possíveis soluções para este impasse esbarram, entre outros, em um obstáculo que, se não ultrapassado, impedirá o avanço de todo o resto:

‘Os jornalistas encontram-se incomodamente repartidos entre o que eles consideram dois ideais impossíveis – as exigências da realidade, que consideram alcançável através de estratégias objectivas, e as exigências da narratividade. Defrontam um paradoxo: quanto mais objectivos forem, mais ilegíveis se tornam, quanto melhores contadores de estórias forem, melhor resposta terão dos seus leitores, embora aqui os jornalistas tenham receio de trair seus ideais. Deste modo, os jornalistas escrevem alguns registos, contam algumas estórias e muito que é algo de ambos’ (idem: 273).

No âmbito pragmático, quando o jornalismo for mais conhecido justamente por aqueles que o praticam diariamente, talvez se torne possível encontrar soluções palpáveis para a questão da narrativa jornalística – que muitos profissionais simplesmente desconhecem que exista – e da dicotomiahard/soft. Quanto à contribuição dos estudos sobre a narrativa jornalística para a construção de uma teoria própria do jornalismo, Soares (2001: 140) encerra: ‘Considerar o jornalismo como sendo construído fundamentalmente a partir das regras de operação e funcionamento das estruturas narrativas e discursivas já começa por deslocá-lo do campo teórico das ciências sociais, em que geralmente tem sido colocado, para aproximá-lo das teorias das linguagens.’

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Jornalista, Florianópolis, SC