Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Em cena, uma negra de joelhos

Noite de segunda-feira, 16 de novembro de 2009. Exibição de novela. Na cena, duas personagens discutem. Uma negra e outra branca. A primeira chora e ouve passivamente as ofensas da última… minutos a fio. A negra, evidentemente, ajoelha-se diante da personagem branca para pedir perdão por uma culpa questionável. E, por fim, recebe uma bofetada da mesma, em uma subserviência irritante.

Em um primeiro momento, a descrição parece referir-se a alguma novela ‘de época’, na qual o tempo e o espaço ficcional situam-se em um Brasil escravocrata e a mulher do senhor de engenho esbofeteia uma de suas mucamas. No entanto, fala-se aqui de mais um capítulo da novela Viver a Vida, cujas personagens concentram-se no Rio de Janeiro do século 21, e que as atrizes Lília Cabral e Taís Araújo, Teresa e Helena, respectivamente, contracenam um dos momentos mais fortes e infelizes da teledramaturgia brasileira.

Antes da estreia da supracitada novela, de autoria de Manoel Carlos, a ser exibida pela Rede Globo de Televisão no chamado horário nobre da sua programação, muitos celebravam o fato de, pela primeira vez, uma atriz negra interpretar o papel principal em uma produção com tais características. Porém, o que antes parecia um ponto positivo, atualmente ajuda a colaborar com a contundente exigência da cabeça de Helena em uma bandeja, por parte do público. Personagem esta que é um presente de grego para qualquer atriz, uma vez que protagoniza uma trama que parece legitimar estereótipos sobre a figura do negro cristalizados no imaginário da população brasileira.

A mulher facilmente manipulável

Alguns aspectos apresentados na novela são bastante questionáveis e suscitam várias reflexões, tais como: a personagem principal fazer parte da única família fenotipicamente negra, e ajudá-la financeiramente através da profissão, na qual obteve grande ascensão, depois da realização de um aborto (ato condenável, para muitos indivíduos), que alegou ter feito sob pressão; a mesma ser vista como ‘interesseira’ por ter se casado com um homem branco e rico e, após engravidar do mesmo, ser acusada de estar realizando o famoso e antigo ‘golpe da barriga’ (nesse caso, nota-se a incoerência do próprio enredo, pois a mesma também é narrada como rica e já está casada); e ser ‘incriminada’ por um acidente que fisicamente não provocou.

Esses pontos, jogados no enredo de uma maneira que parece subestimar a inteligência e o posicionamento crítico do telespectador, podem corresponder à visão que há muito tempo foi criada, e, desde então, teorizada e propagada sobre o negro, sempre ligando-o a situações negativas. Em Helena, é reproduzida a imagem da mulher que não tem domínio do seu próprio corpo e de suas próprias vontades, sendo facilmente manipulável. Assumiu uma culpa que não lhe pertencia, e por isso vem, ao longo dos capítulos, humilhando-se diante de parte da massa branca e burguesa da novela, inclusive de seu próprio marido. Seu casamento é um golpe, sua gravidez, uma estratégia, e o amor de seu marido ‘é qualquer coisa, menos um amor verdadeiro, é insegurança’, na fala da personagem Teresa.

Imaginário discriminatório

É triste ver que a culpa pela fraca qualidade da novela, cujo enredo se perdeu ao longo do tempo e a maioria dos profissionais parece nunca ter atuado antes, pesa, hoje, sobre uma possível má atuação de Taís Araújo. E, como se já não bastassem todos os problemas estruturais do folhetim, a população negra ainda é obrigada a ‘tomar um tapa na cara’ junto com a personagem. Pergunta-se, diante disso: O que tal cena nos quer comunicar? Quais lugares de poder quer reafirmar? Por que, quando não há um sub-papel em uma novela qualquer, há, nas entrelinhas (ou nas linhas), discursos imagéticos que se remetem sempre a um lugar de inferioridade do sujeito negro?

Na representação artística, pensada como linguagem, nada é neutro ou inocente. Uma exposição com esse teor de discursivo, como ocorre em Viver a Vida, possibilita leituras que colocam no âmbito da naturalidade problemáticas que são amplamente discutidas e combatidas, e que se apresentam de segunda a sábado, em um horário no qual a grande maioria da população consome um produto chamado novela.

É lamentável observar que, em plena semana de comemorações da consciência negra, celebrada no dia 20 desse mês, uma grande parcela de indivíduos, que passou e passa por diversas condições difíceis, ocasionadas por uma segregação racial e social histórica, recebeu esse desagradável presente em rede nacional e viu, mais uma vez, a continuidade do reforço a um imaginário discriminatório de bases ideológicas e hegemônicas. Mais lamentável ainda é constatar que os atores negros migram das novelas com temática escravocrata para assumir os mesmos papéis de submissão na contemporaneidade, pondo a si e a nós todos de joelhos.

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Estudantes de Letras Vernáculas da Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA