Ninguém critica diretamente a proposta do governo para a educação superior. A melhor proposta já feita até agora para enfrentar a injustiça e o preconceito na sociedade é a idéia de cotas para estudantes de ensino público nas universidades públicas. Mas se a imprensa continuar a tratar do assunto como "cotas", e ostentar, exibir, reclamar as demais mudanças, poderemos fracassar com o mais ambicioso e mais bem-feito projeto de inclusão social do Brasil.
A proposta não pode ser vista como cotas, mas como questão de Justiça. Não se trata de cotas, trata-se de ação afirmativa. A expressão cota, no caso, é mera "tecnicalidade", para usar um termo jurídico. Se a proposta for tratada como "cotas" pela mídia, a mídia manterá o estigma do preconceito e estimulará as coisas a permanecerem como estão. As edições dos jornais de sábado (15/5) são exemplares. Fiquemos com O Globo e a Folha.
"Educadores criticam proposta de cotas de 50%", é o título em seis colunas que abre a página 12 do jornalão carioca. No texto da matéria, ninguém critica a proposta. O lead afirma que aqueles que o jornal procurou para dar opinião consideraram a proposta "interessante" mas "insuficiente". Ora, enquanto o Brasil permanecer uma sociedade injusta, qualquer proposta de justiça será insuficiente. Se a proposta é interessante, como diz O Globo, é preciso que a sociedade seja esclarecida, informada, e tenha condições efetivas de julgamento.
No Globo, os críticos da proposta não a criticam. O lead deixa claro – "embora não tenham condenado o projeto…". É cômodo afirmar que a proposta é boa, mas condená-la ao fracasso se desacompanhada.
A Folha muda de assunto na capa do caderno Cotidiano, mas o leitor só ficará sabendo no texto do abre ou na página 3. O título em seis colunas, editorializado, é o seguinte: "Universidade tenta suprir formação falha". É preciso seguir em frente na leitura para saber que a matéria não se refere às cotas, mas aos adultos que buscam ensino superior. Na página 3,quando aparece a matéria sobre a proposta do governo, mais uma vez o noticiário crítico sem críticas claras. "Cotas vão estimular corrida à escola pública", escancara o título de página da Folha, em seis colunas. O desconforto dos jornais com a proposta é evidente.
Recordação
Vale a pena recordar os anos iniciais deste Observatório. Em 1996 e 1997, os jornais criticaram de peito aberto a proposta de rodízio de automóveis em São Paulo. Quando foram aferir a opinião da população, 98% dos paulistas eram favoráveis. Na proposta primeira, o governo de São Paulo limitava o acesso ao centro dos automóveis por preocupação ambiental. Já no ano seguinte, a prefeitura paulista faria proposta assemelhada.
Este caso é mais grave, pois entre a proposta, sua efetivação e a percepção dos resultados não correrão dias, como no rodízio, mas anos. A imprensa terá muito mais tempo para bater. A sociedade precisa ficar atenta.