A cobertura da grande imprensa brasileira sobre a morte do ex-presidente argentino Néstor Kirchner se pautou por duas formas de enquadramento que deixam claros os processos de funcionamento da cobertura jornalística de assuntos internacionais: construir uma realidade externa que seja compreendida pelo público interno. No caso, a realidade política no país vizinho é assim explicada aos tupiniquins: a) a Argentina é um país de cultura política machista, onde a presidente é um fantoche do marido; b) o ex-presidente é populista, assim como a sua presidente-fantoche, assim como toda a política argentina. Não é nada estranho que este dois processos, ao final, acabarão por serem referências de uma mesma cadeia de entendimento.
É óbvio que o processo de mediação realizado pelo jornalismo só irá se efetivar a partir de construções inteligíveis ao público. A busca de elementos que se integrem ao senso comum da sociedade é chave para as notícias que tratam de acontecimentos que se passam fora das fronteiras do país. Mas a simplificação atingiu extremos impressionantes. Em geral, pouco foi e está sendo dito sobre a recuperação econômica da Argentina durante os anos de Nestor Kirchner na presidência – devemos lembrar que o país deixou para trás uma crise de enormes proporções, fazendo com que o peso se revalorizasse a duras penas. Além disso, a estabilidade política também foi uma importante conquista do Pinguim, o jocoso apelido do ex-presidente, pois com sua posse a Casa Rosada fechou as portas às hospedagens-relâmpago que a caracterizaram no final do século passado e início deste.
Contudo, quem acompanhou a mídia televisiva nacional ficou com a impressão de que um caudilho da pior estirpe bateu as botas e que a Argentina agora navega num mar de incertezas. Após o inexorável ‘calote’ (termo repetido ad nauseam e nunca explicado como a única forma de renegociação que a Argentina podia fazer devido à sua bancarrota), Néstor K. era mostrado como o líder por trás da sua esposa Cristina. Não importa que seja senadora de destacada trajetória no país: é fato consumado que sua excelência é submissa.
Jornalismo como instância de comparação
A ideia de que Néstor Kirchner era um populista controlador é bem corroborada pelas imagens da comoção argentina. Não bastassem exemplos históricos (afinal, usa-se a história de maneira vulgar para se justificar qualquer posição) tratando os argentinos como iludidos por políticos aproveitadores, a imagem dos cidadãos portenhos indo à Casa Rosada é tratada como um fator de preocupação, pois agora o país havia perdido seu grande guia. De uma hora para outra, a Argentina se torna uma nação de desesperados.
Não se pode esquecer que, nesta tentativa de explicar o que acontece lá fora, as empresas irão manter suas convicções ideológicas. Assim, e em função da recém terminada disputa eleitoral no Brasil, insinuações de um ‘grande líder’ por trás de uma presidente-fantoche não devem ser tomadas inocentemente. Engraçado notar que, no processo para fazer funcionar o enquadramento, a notícia acaba validando posições que os jornalistas, pessoalmente, negariam terminantemente exibir. Um exemplo, visto a partir dos telejornais globais Jornal Nacional e Jornal da Globo: diz-se, repetidas vezes, que a política argentina é machista. Devemos acreditar que ninguém, muito menos um jornalista, admitiria socialmente uma posição machista. Porém, os repórteres Carlos de Lannoy (JN) e José Roberto Burnier conseguiram seguir à risca o corolário macho: trataram Cristina Kirchner como uma inepta marionete, que depende das ordens de seu marido e que ocupava o cargo só para esquentar a cadeira para a volta de Néstor. Burnier chegou a dizer que ‘Cristina não se interessa por assuntos econômicos’. Faltou comentar que Cristina ‘não vai dar conta’.
O jornalismo internacional é um espaço riquíssimo para estudo sobre o funcionamento das estruturas sociais, políticas, culturais e econômicas da sociedade. No caso das notícias sobre a Argentina, são exemplares as relações entre as visões que tradicionalmente os brasileiros têm dos argentinos com as determinações da empresa midiática. E a morte de Néstor Kirchner nos apresenta uma situação bastante relevante: ao tratar um acontecimento de alta relevância em um país que é a nossa principal referência no espaço mundial, o jornalismo serve como instância de comparação. O problema está em como se constroem os termos deste processo.
******
Mestrando em Comunicação e Informação (UFRGS) e especialista em Relações Internacionais (PUC-Minas)