‘Que pecado ou concessão grave o programa Ensaio estaria cometendo se, logo no início, tivesse apresentado o sambista Diogo Nogueira, um músico relativamente desconhecido, como filho do bem mais famoso e falecido João Nogueira? Quantos telespectadores a mais o programa teria, se o clipe de fotos de família ilustrado por um tocante depoimento de Diogo, em vez de abrir o segundo bloco, também estivesse no início do programa?
Será que dar um pouco mais de informação sobre Diogo, além do sobrenome, com o objetivo de conquistar a atenção de telespectadores não cativos do Ensaio, seria desfigurar o prestigiado formato do programa? E por que não dar, ao telespectador, não apenas o direito de conhecer as perguntas do entrevistador, mas também a possibilidade de ele entender melhor algumas respostas, como o impressionante relato de Diogo sobre o dia em que passou quase uma hora tentando salvar o pai com massagem cardíaca e respiração boca-a-boca?
Proponho essa reflexão por estar convicto de que facilitar a vida o telespectador – evitando hermetismos excludentes, tentações de patota e lacunas inúteis – não significa necessariamente banalizar o programa, em termos estéticos ou culturais. Pelo contrário, significa tentar cumprir a missão básica de uma emissora pública, que é a de democratizar seus conteúdos e usar todos os recursos para fazer com que esses conteúdos tenham mais visibilidade e penetração no contingente de cidadãos que , em última análise, sustentam essa emissora.
É possível, com certeza, facilitar a vida do telespectador sem prejuízo algum para o formato do Ensaio. Não se trata, evidentemente, de mexer naquela fotografia límpida, no fundo neutro, na iluminação delicada e intimista ou nos closes que nos deixam em contato direto com o artista e sua música, sem qualquer penduricalho visual de inspiração ‘emetevista’ ou não. Muito menos na qualidade da captação do áudio e na edição, sempre marcada por momentos antológicos, como o ‘dueto’ que juntou João Nogueira, o filho Diogo e seus timbres espetacularmente semelhantes na música ‘Espelho’.
Trata-se, apenas e sempre, de tornar conteúdos bons mais acessíveis e, conotações negativas à parte, mais massificados. Não há no Brasil, a propósito, veículo de comunicação que cumpra esse papel de forma mais eficiente que a televisão.
Altos e Baixos da Semana
Conheça os pontos positivos e negativos da programação exibida na última semana. Saiba quais atrações da TV Cultura ganharam destaque e as que ainda podem melhorar.
Lina para todos
(Metrópolis, 22 de agosto)
A reportagem sobre o evento de relançamento do livro ‘Lina Bo Bardi’, bem-ilustrada com depoimentos do editor Marcelo Ferraz, falas e canto de Adriana Calcanhoto – uma fã devotada – e com o material de arquivo da emissora com a própria Lina foi um interessante diálogo da televisão com a arquitetura, a música e a literatura.
Dose certa
(Jornal da Cultura, 25 de agosto)
A cobertura do evento comemorativo dos dez anos do Banco do Povo Paulista foi um bom exercício de jornalismo na delicada fronteira do interesse público com a informação de interesse governamental: abriu espaço para um executivo defender o peixe do banco – e, indiretamente, a parceria que o governo estadual faz no projeto – mas também habilitou o cidadão-telespectador a entender melhor o assunto ao eleger, entre as declarações do indiano Muhammad Yunus, convidado principal, Prêmio Nobel da Paz de 2006 e inspirador desse tipo de crédito, a advertência: ‘Micro-crédito e governo não têm boa química. O governo deve criar ambiente propício, mas não se meter na parte operacional’.
Três em um
(Pé na rua, 26 de agosto)
A equipe do Pé na Rua conseguiu uma proeza ‘três em um’, no bom sentido: primeiro, uma pauta de ‘serviço’ com as dicas importantes para que uma festa surpresa dê certo. Depois, aproveitar o aniversário da apresentadora Gabi para um interessante making of dos bastidores do programa e da TV Cultura, que sempre interessam ao telespectador. E, finalmente, captar toda a autenticidade da reação de Gabi quando ela foi realmente surpreendida pela festa preparada pela família, pelos amigos e pelos colegas de trabalho.
Viva a diferença!
(Vitrine, 26 de agosto)
A bem-produzida reconstituição, estilo documentário, do reencontro de João Gilberto com o grupo de amigos paulistanos que ele convocou, via Monica Bergamo, na véspera do show em São Paulo, merece um destaque especial pelo notório esforço de produção, pelo material de arquivo e pela qualidade da edição. Como bônus, a matéria contribuiu para fazer contraponto à cobertura deslumbrada e cheia de colunismo provinciano que tomou conta da mídia em geral em relação a esse show.
Equilíbrio
(Jornal da Cultura, 26 de agosto)
De um lado, o princípio de que ‘a vida é inviolável’. De outro, o de que ‘as leis devem estar a serviço da felicidade’. O debate em estúdio promovido pelo Jornal da Cultura, sobre a audiência do STF que precede a decisão daquele tribunal sobre o direito ao aborto quando o feto é anencéfalo, escolheu dois porta-vozes eficientes e adequados à televisão: o desembargador José Renato Nalini, contra, e o professor de genética médica Thomas Gollop, a favor. O doutor Gollop, aliás, mostrou que conhece a força das imagens na TV, ao usar de forma muito eficiente dois cartazes que mostravam um crânio e o resultado de um eletroencefalograma de um feto anencéfalo. Mesmo assim, não houve golpes baixos de retórica e o telespectador, qualquer que seja sua opinião sobre o assunto, certamente ficou muito bem-informado sobre a polêmica.
Fronteira difícil
(Tal & Qual, 26 de agosto)
O novo horário de exibição do Tal & Qual, no final da noite, é bem mais adequado à sua proposta de conteúdo. Os textos de introdução, apresentados pelo carismático Amaury Wilson, continuam revelando um saudável e criativo esforço para que os assuntos latino-americanos conquistem o telespectador médio brasileiro. Mas a contradição mais aguda do programa, a julgar pela edição de 26 de agosto, continua sendo sua incapacidade de transpor as sólidas fronteiras culturais, históricas, comportamentais e temáticas, que, queiramos ou não, existem entre nós, brasileiros, e nossos hermanos co-participantes do projeto.
Como é que é?
(Jornal da Cultura, 25 de agosto)
Continuam, infelizmente, muito confusas as telas de gráficos usadas para as análises de José Roberto de Toledo sobre a corrida eleitoral. Desta vez, na tela sobre o impacto da propaganda eleitoral nas pesquisas, os números eram tão pequenos que não se sabia, por exemplo, se a avaliação de Kassab tinha pulado de 35% para 40% ou para 48%, como certamente pareceu nas casas que têm televisões menores – a maioria, em se tratando de TV aberta. O uso de um tipo de número no qual o zero tem um corte transversal confunde muito. No caso da ‘pizza’ que mostrava a escolha eleitoral dos que achavam a administração Kassab ótima ou boa, houve certamente outro nó, só atenuado pelo fato de Toledo explicar que ‘Kassab não consegue transformar a boa avaliação dele em voto’.
Falta de tempero
(Roda Viva, 25 de agosto)
A ‘pimentinha’ que faltou no Roda Viva, para usar a palavra escolhida pelo próprio apresentador Alexandre Machado, só apareceu na última pergunta do último bloco. A história tinha sido até destacada no perfil inicial da entrevistada Samantha Power, escritora, jornalista e ex-assessora de Barack Obama. Tratava-se da briga feia que ela teve com a senadora Hilllary Clinton, a quem chamou de ‘monstro’. Com todo esse inegável atributo jornalístico, a história foi deixada – por todos os entrevistadores – para as despedidas, depois de uma entrevista que, embora cheia de informações interessantes, terminou dando a sensação de que durou um pouco mais do que merecia. E o telespectador que resistiu até o final, esperando os detalhes da famosa briga, acabou indo dormir sem saber como ela aconteceu, já que Samantha se limitou a dizer, sem que ninguém perguntasse mais nada, que se arrependia muito do barraco.
Virados pra onde?
(Metrópolis, 25 de agosto)
Pelo menos no episódio mostrado em 25 de agosto, o bom texto da série internética ‘Virados pra Lua’ às vezes não faz a gente se esquecer da precariedade da captação de áudio – que ‘borra’ totalmente os diálogos mais gritados, tornando-os ininteligíveis – e do convencionalismo pouco inspirado da fotografia e da cenografia.
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Assunto de fôlego (4/9/08)
(Roda Viva, 1º de setembro)
O desafio era grande e arriscado: aprofundar e ir além da espetacular exposição midiática a que Maurren Maggi foi submetida depois do ouro em Pequim. Talvez por esse motivo – e também pelo fato de o Roda Viva ter um formato bem diferente do dos programas esportivos tradicionais, a conversa começou dura e marcada por hesitações tanto da entrevistada, aparentemente assustada com aquela famosa cadeira giratória, quanto dos entrevistadores.
Quem agüentou o início frio, porém, teve algumas recompensas. Aos poucos, todos foram ficando mais à vontade para, literalmente, passar a limpo, de trás pra frente e de frente para trás, a carreira, as idéias e os bastidores de aventura olímpica de Maurren.
A dose, que incluiu dieta de atleta, a relação com o ex-marido Antonio Pizzonia, questões relacionadas à vaidade feminina e histórias de mãe da famosa Sophia, além, claro, da detalhada análise feita por Maurren do cenário olímpico brasileiro antes e depois de Pequim, pode ter sido exagerada para aqueles telespectadores do Roda Viva acostumados a assuntos e entrevistados mais solenes e engravatados. Mas o programa também contribuiu, com a ajuda fundamental dos especialistas Hélio Alcântara (TV Cultura), Luiz Fernando Gomes (Lance!), Sérgio Xavier Filho (Placar) e Antônio Prada (Terra), para que que o esporte olímpico brasileiro em geral – e o atletismo em particular – fossem discutidos de forma rica e abrangente.
É claro que o combustível da conversa foi o fascínio e a curiosidade que Maurren, como todo mito do esporte, passou a despertar entre os brasileiros. Mas esse é o papel do carisma em qualquer atividade, não apenas no esporte, política inclusive.
O programa mereceu, no entanto, alguns reparos: a bancada superior do cenário vazia e a inevitável sensação de abandono e desprestígio que esta visão provocou, a reportagem-perfil de Maurren exibida no início – uma edição burocrática e sem um som ambiente sequer, fossem palmas, gritos, declarações dela ou mesmo música incidental – e, como sempre, a ausência de uma pergunta de mea-culpa de algum jornalista presente sobre o comportamento da mídia brasileira no tempo em que Maurren foi condenada e esquecida.
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Almanaque de desafios (3/9/08)
(Almanaque Educação, 2 de setembro)
‘Nossa tarefa é surpreender, divertir, levantar questões e abordar temas que possam auxiliar pais, professores e alunos’. A frase de uma das atrizes da trupe circense que ancora o novo programa, dita no final da exibição de estréia, dá uma idéia não apenas da absoluta relevância da proposta do Almanaque Educação, mas do enorme desafio que será transformar essa proposta em conteúdo de TV aberta para exibição às 19h30m – um horário não muito comum para produções de cunho didático e educativo.
Na estréia, à parte a ótima idéia de usar um terraço do centro de São Paulo como cenário ou ‘janela para o mundo’, o objetivo de surpreender ficou um pouco comprometido pela opção de ancoragem no estilo – e ao som de – teatro infantil filmado, uma fórmula definitivamente não surpreendente de se falar com as crianças, em contato direto ou pela televisão. No caso da incursão da trupe do programa no centro de São Paulo, promovendo uma gincana com os transeuntes, à falta de surpresa da idéia juntou-se o complexo desafio de filmar, acompanhar e explicar essa gincana de forma a torná-la, na edição, contagiante não apenas para os participantes, mas para quem estava em casa, assistindo. Não foi bem assim, infelizmente. Televisão, mais do que nunca, no caso, nem sempre reproduz com eficiência o que sentimos no contato direto que o teatro – mesmo o teatro de rua – nos dá.
No que diz respeito ao objetivo de divertir, os melhores momentos podem ser creditados aos ágeis videografismos e animações do quadro ‘Pílulas do saber’ – charges rápidas e bem-humoradas adequadíssimas à televisão. O quadro ‘Telejornal’, no entanto, além ser outro formato não surpreendente, funcionaria melhor se o entendimento das charges – no caso, uma boa brincadeira com as previsões mais furadas da história da tecnologia – não dependesse da inserção de caracteres longos e quase incompreensíveis como ‘Ruthenford Hayes, presidente norte-americano – 1876’ e ‘Presidente de banco alertando o advogado de Henry Ford – 1903’.
No caso do compromisso de ‘levantar questões e abordar temas que possam auxiliar pais, professores e alunos’, os obstáculos foram a temática e, principalmente, estrutura narrativa. Em vez de um texto atraente e inteligível para todos esses públicos desejados – tarefa difícil mas não impossível – o Almanaque Educação foi uma espécie de reunião de compartimentos que não se comunicavam. Saltava de uma aula de química quase infantil para uma visita do Centro de Referência em Educação Mário Covas, onde um dos atores informava, por exemplo, que ‘os jesuítas foram os mentores da educação formal no Brasil’. Depois, pulava de uma reportagem burocrática de telejornal sobre a importância do papel dos pais na educação para uma entrevista intelectualmente rebuscada com Antonio Nóbrega sobre as origens de sua música e de sua dança. Mais à frente, saltava novamente de duas resenhas cinematográficas de filmes relacionados à educação – ‘A língua das mariposas’ e ‘Ao mestre com carinho’ – para a gincana circense no centro de São Paulo.
Por todos esses aspectos, o Almanaque Educação, pelo menos em sua estréia, revelou-se menos um novo programa com identidade própria e mais uma cesta de boas intenções com um potencial consideravelmente baixo de sensibilizar camadas expressivas de telespectadores do seu horário de exibição. Para se ter uma idéia da facilidade com que um programa com essas características pode ser abandonado pelo telespectador às 19h30m, basta imaginarmos como se comportaria, diante dele, uma família paulistana da classe C, D ou E que tivesse apenas um aparelho sintonizado em TV aberta, caso de 88% dos domicílios de São Paulo.
Há muito o que fazer e refletir, portanto, para que o programa cumpra, efetivamente, em escala de audiência de TV aberta, seu objetivo de ‘surpreender, divertir, levantar questões e abordar temas que possam auxiliar pais, professores e alunos’.
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(Provocações, 29 de agosto)
O auxílio luxuoso dos textos de João Cabral de Melo Neto, Mário da Silva Brito, Homero Homem, Lúcio Cardoso e Darcy Ribeiro – infelizmente creditados apenas no encerramento e não no momento em que foram citados – não impediu que o especial ‘Abujamra em Brasília’ fosse, quase sempre, uma colagem desconexa bem menos estimulante do que as revelações e verdades que ele costuma arrancar dos entrevistados quando ocupa, soberano e eficiente, o cenário tradicional do programa.
A fragmentação e o notório recurso a entrevistados do arquivo do programa, como o ex-senador Saturnino Braga e o rapper Gog e seus respectivos comentários sobre Brasília, também sem o crédito com a devida data de exibição, em vez de provocar reflexão, humor ou prazer estético, resultaram num programa bem difícil de assistir. Principalmente porque o que era inédito – a incursão de Abujamra pelas ruas da capital federal, microfone em punho, tentando bons depoimentos de transeuntes, camelôs, balconistas e artistas de rua – ficou, infelizmente, nas obviedades previsíveis.
O problema de áudio que tornava incompreensíveis as perguntas de Abujamra, aliado às dificuldades inerentes e sempre subestimadas de condução desse tipo de enquete de rua, também contribuiu para a pobreza do resultado final. E, para completar essa jornada não muito feliz do Provocações, Abujamra tratou, a maior parte do tempo, de política. Assunto que ele não ama da forma como ama, por exemplo, o teatro e a cultura.
Daí, talvez, a prevalência do discurso do fígado sobre o brilho intelectual e o senso de humor.’