Uma confusão tem sido recorrente no debate que cerca a obrigatoriedade do diploma para jornalistas: tomar por sinônimas as expressões ‘liberdade de expressão’ e ‘exercício profissional’. Entretanto, existe um abismo entre as duas coisas.
Em resposta ao meu post que criticava a ideologização da discussão (ver ‘A discussão está muito ideologizada‘), o jornalista Mauricio Tuffani afirma que o que está em jogo no Supremo Tribunal Federal é…
‘…uma concepção do direito de liberdade de expressão que tem um significado muito maior que aquele insistentemente repetido por muitos sindicalistas e professores de jornalismo. Trata-se de um direito que não pertence apenas à categoria dos jornalistas, mas a toda a sociedade’ (ver ‘O estreitamento da razão‘).
Mas é evidente que o direito à livre expressão não é e não pode ser um privilégio de jornalistas. Este direito é extensivo a todas as pessoas, na medida em que garante a elas a troca de idéias, a manifestação do pensamento, a formulação de opiniões e juízos. É um direito previsto na legislação e em protocolos consagrados internacionalmente, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, como já citou Tuffani. O artigo 19, em especial, merece uma leitura mais atenta que a realizada pelo autor:
‘Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.’
Note-se que o artigo não menciona ‘produzir’ ou ‘elaborar’ informações. Isto é, o direito vige numa esfera ampla, generalista, e não restritiva ao mundo do trabalho. Jornalistas também são cidadãos, e também gozam do direito da livre expressão. Mas em sua condição profissional, produzem, elaboram, difundem informações com o propósito de abastecer a sociedade com dados que permitam uma compreensão melhor da realidade.
Habilitação legal
Não se pode esquecer também que o conjunto das atividades jornalísticas não se resume apenas à livre expressão. Há colunistas, articulistas, editorialistas que, sim, ocupam-se da formulação de idéias e da sua disseminação em escala massiva. Mas os demais profissionais do jornalismo não se expressam em suas lidas diárias. O que fazem é tentar oferecer ao público relatos dos acontecimentos que, porventura, foram alçados à condição de noticiáveis. Para alcançar essa situação, os fatos devem conter elementos que dialoguem com valores de noticiabilidade, elaborados no mundo do jornalismo e que, cotidianamente, ajudam a organizar essa atividade. Esses valores compõem um rol de saberes específicos da profissão, conhecimentos a que se tem acesso nas escolas de jornalismo.
Mas voltando à Declaração Universal, encontramos o inciso 2 do artigo 29 que é esclarecedor na tensão entre direito e lei.
‘No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática.’
Isto é, o direito à livre expressão se estende até a fronteira que inicia a demarcação de uma atribuição profissional, a regulamentação do exercício jornalístico, por exemplo. Note-se que não há contradição entre os artigos, mas complementaridade já que são contemplados o direito do cidadão comum a manifestar sua opinião e o direito do jornalista a exercer sua profissão (conforme o artigo 23).
Se recorrermos à Constituição Federal e ao próprio Tuffani, veremos que os dois direitos são também atendidos.
‘É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença’ (inciso IX do artigo 5º).
‘É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer’ (inciso XIII do artigo 5º).
Desta forma, insisto que não se deve tomar por idênticos o direito à livre expressão e o exercício profissional do jornalismo. Se assim o fizermos, poderíamos por extensão confundir o direito à justiça com o exercício da advocacia, ou o direito à saúde com a prática da medicina. Em todos esses casos, o direito mais geral não colide com a atribuição profissional, que depende de qualificação técnica, de habilitação legal e de competências e habilidades específicas. Misturar as coisas é fazer prevalecer um estrabismo que prejudica nossa visão e compreensão. Embaçar as fronteiras entre ambos provoca, isso sim, o estreitamento da razão.
Justificativa social
Se o que está em discussão no STF no imbróglio sobre o diploma é a concepção de direito à liberdade de expressão, esse debate não pode desconsiderar o lugar estratégico que a mídia (seus veículos, sistemas e profissionais) ocupa na vida social atualmente. Cada vez mais central na existência contemporânea, a dimensão da comunicação social precisa dispor de profissionais altamente capacitados para fazer as mediações necessárias entre os fatos e os públicos, contribuindo para o entendimento e o desenvolvimento humano e social.
O jornalista e professor Eugenio Bucci formulou uma definição de jornalismo que é, ao mesmo tempo, ampla e precisa: o jornalismo é uma atividade que existe para satisfazer um direito do cidadão comum, o direito à informação. Neste sentido, essa atividade profissional – exercida por pessoas capacitadas e habilitadas – encontra justificativa social, utilidade pública e dimensão coletiva para a sua existência.
Dito dessa forma, o estrabismo insistente se dissolve e o campo de visão de abre para uma compreensão melhor do que temos adiante.
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A exigência do diploma e os mini-Berlusconis — Monitor da Imprensa
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Professor do curso de Comunicação Social – Jornalismo e do Mestrado em Educação da Universidade do Vale do Itajaí; responsável pelo projeto Monitor de Mídia e integrante da Rede Nacional dos Observatórios de Imprensa (Renoi); editor do blog Monitorando