Dados estatísticos e números sem fim. É isso que se encontra na mídia, seja eletrônica ou impressa, sobre os sórdidos resultados da quarta edição do exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp). Nem mesmo o alto índice de reprovação (61%) leva a sociedade a refletir sobre a qualidade do ensino médico no Brasil. Mais uma vez pode-se dar a velha desculpa de que a mídia veicula apenas o que atrai a atenção da grande massa.
E quem poderia se interessar pela formação daqueles que lidam com vidas humanas diariamente? Os dados são alarmantes. Se hoje, você vai a um hospital com o bacilo da tuberculose, e é atendido por um médico recém-formado, a chance de que seu diagnóstico não seja feito corretamente é de 56%. Se o paciente for seu filho que apresenta um quadro de criptorquidia, a chance de que ele fique estéril devido a uma falha de procedimento é de 84%. São desnecessários mais argumentos para fomentar uma reflexão sobre a formação do profissional da área médica.
No Brasil, a principal barreira para se tornar médico é o vestibular. Vencido esse embate, o tão sonhado título é quase certo. As universidades não apresentam grandes obstáculos à formação de seus alunos de medicina. Basta que eles freqüentem as aulas e sejam minimamente domesticados. E isso se aplica a qualquer instituição de ensino, seja ela pública ou privada. Uma máxima recorrente no meio acadêmico é a de que quem faz a formação do estudante é o próprio estudante. Isso é bom e ruim ao mesmo tempo. Bom se o estudante for aplicado, dedicado e preocupado em exercer a profissão com um mínimo de dignidade. Ruim, se o futuro médico está mais interessado no recheado holerite, no prestígio e glamour, ou simplesmente quer o diploma sem nem saber o porquê do que em melhorar e recuperar a saúde do paciente.
‘Clientes’, e não ‘pacientes’
O resultado do exame aplicado pelo Cremesp revela que a maioria dos estudantes se encaixa no segundo grupo. Isso prova que as instituições de ensino médico devem, e com gritante urgência, melhorar e tornar mais rígido seu método de avaliação para os discentes.
Um grande auxílio na melhoria da formação médica seria a obrigatoriedade de um exame semelhante ao aplicado pela OAB. Assim como os recém-formados em Direito não são advogados até que passem no exame da ordem, os estudantes de medicina deveriam receber seu registro somente após passarem, obrigatoriamente, por um exame que avalie a sua capacidade para exercer adequadamente a profissão.
A população não se interessa pelo assunto e a mídia é omissa, preocupando-se apenas em repassar os dados estatísticos, sem promover uma reflexão mais aprofundada.
As repercussões do problema saltam aos olhos de qualquer cidadão mais atento. O número de denúncias contra médicos saltou de 1.874 em 1998, para 4.498 em 2007. A média diária de denúncias passou de 5,1 para 12,3 em dez anos. Os pacientes têm desaparecido dos hospitais e clínicas e cada vez mais os médicos lidam com ‘clientes’. E como o cliente sempre tem razão, mas nem sempre sabe o que é melhor para si próprio, a medicina vem sendo exercida sob a égide dos seus desregulados solicitadores, que nem sempre gostam do resultado de suas solicitações.
Quem paga é o cidadão
Só para citar um exemplo, vejamos o caso da medicina estética. Com certa quantia de dinheiro, você pode obter o nariz de uma estrela de Hollywood mesmo que ele nada tenha a ver com seu rosto. Por isso, a maior parte dos processos contra cirurgiões plásticos não se dão devido a cirurgias que não foram bem sucedidas. Na maioria das vezes, a ‘cliente’ tem o que queria, mas aquilo não era o melhor para ela. E então? A culpa é de quem? Na dúvida, processe seu médico.
Milhões são investidos todos os anos em pesquisas na área médica. A tecnologia tornou-se uma grande aliada. Diagnósticos estão cada vez mais rápidos e precisos. Cortes grotescos e cicatrizes eternas já são coisas do passado; hoje, a moda é a micro-cirurgia e a laparoscopia. A medicina está avançando. Certo? Infelizmente, isso não pode ser tomado como verdade absoluta e inquestionável. De que adiantam máquinas de ultima geração e robôs-médicos, sem profissionais capacitados para operá-los? Além do que, essa realidade tecnológica mais parece tema de ficção cientifica na grande maioria dos hospitais brasileiros.
No Sistema Único de Saúde o que impera soberano é o método tradicional de diagnóstico, com o bom e velho raio-X tido como prioridade entre os exames por imagem devido ao baixo custo. Só depois vem a tomografia. Ressonância magnética é um luxo dispensável em grande parte dos diagnósticos feitos nos hospitais públicos brasileiros. Mas, paradoxalmente, tais exames são usados com freqüência acima daquela realmente necessária. Isso porque, um bom diagnóstico não depende de aparelhos de última geração, e sim, de um profissional bem preparado que, com manobras propedêuticas básicas, pode chegar ao diagnóstico adequado.
Quem paga é o contribuinte, pois os gastos com saúde consomem boa parte da receita de qualquer verba pública. Quem paga é a família de mais uma vítima de hediondo erro médico. Quem paga é a criança com paralisia cerebral devido a um parto mal feito. Quem paga é todo e qualquer cidadão que, em dado momento de sua vida, necessite de um hospital ou clínica.
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Estudante de Medicina, Sorocaba, SP