Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Feito de que jeito?

Pós-modernidade, momento de total quebra de paradigmas. Tudo é relativizado. Essa verdade está tão estabelecida, cristalizada, que já faz parte do senso comum. Senso comum que alguns dizem que se opõe à ciência, já outros afirmam ser o ponto de partida dela. Os limites entre científico e não-científico não são mais tão claros. A ciência é vista por uma perspectiva ‘crítica’ e ‘relativista’ (LATOUR, 1999, p.39) e essa instabilidade atual se corporifica agora no jornal Massa!, um veículo informativo, com um suposto e declarado compromisso com a verdade, portanto afim com os textos científicos que também assim se declaram.

Quando vista à distância, sua capa que traz sempre a estampa de uma modelo local, em poses ora menos, ora mais sugestivas, pode ser confundida com uma revista masculina. A distribuição, formato e coloração das fontes das manchetes pode nos lembrar dos tabloides, contudo a proposta é de se fazer um jornalismo mais próximo das camadas soteropolitanas populares (classes C e D).

O termo popular tem várias acepções e a ideia de povo do Massa! é que esse é o espaço da ausência, que ele não tem acesso a informação que lhe interessa, nas palavras de Ranulfo Bocayuva, diretor-executivo de jornalismo do grupo, é ‘um público ávido por leitura, que até agora, verdadeiramente, não contava com um jornal pensado para ele’.

Uma visão imutável, fixa e homogênea

O enfoque assistencialista se faz presente na seção Geral, na subseção Ombro Amigo, em que há solicitações de naturezas variadas: um tanque de água doméstico, uma doação alimentícia, um guarda-roupa e material de construção (Massa!, 25 de novembro de 2010, p.06); cama hospitalar, um aparelho tensiômetro, um computador usado e uma vacina (Massa!, 22 de novembro de 2010, p. 06).

É um direcionamento para aquela noção prévia de ‘popular’ e de ‘povo’, uma noção que traz, dentre outros, as ideias de menos escolarização e portanto menos ênfase às informações escritas, à completude textual, mais ênfase às imagens, às cores. E esse modo de ver seus potenciais consumidores, permite ainda que esse jornal traga já em sua capa, não o cuidado com a informação, com a veracidade e com a completude dela, mas para os elementos imagéticos, para as cores quentes vermelho e amarelo, mais predominantemente, e o fundo preto comum para as manchetes de maior destaque. O apelo maior está na escolha em se ocupar, aproximadamente um terço do espaço da capa, para uma fotografia de corpo inteiro, de uma modelo que corresponda aos estereótipos de mulher ideal (objeto), com poses e roupas provocantes.

Como o próprio conceito de estereótipo, a utilização desse recurso se repete. A etimologia agrupa as definições gregas para stereos (sólido) e tipo (modo) O estereótipo é um termo que saiu do campo semântico da tipografia e se estendeu para a área da Psicologia Social, tendo ampliados alguns de seus traços de significado. Em tipografia, é uma placa metálica de caracteres fixos que funciona para imprimir de modo seriado. Do mesmo modo, o estereótipo, como ideia a respeito de uma comunidade ou de um local funciona como uma visão imutável, fixa e homogênea, produzida em série, de modo reiterado. O estereótipo vacila entre o conhecido e o que deve ser ansiosamente repetido. (BHABHA, 2005, p.104). Sendo assim, no corpo do jornal, e em diferentes edições, ter-se-á o uso de imagens. Sobretudo imagens de artistas ou jogadores de futebol, ou mulheres artistas, ou mulheres comuns…

A acepção do termo

A informalidade na linguagem é admitida e tida como necessária para que se atinja o público consumidor formado pelas classes C e D: ‘O novo produto, que é o primeiro jornal popular da Bahia, aposta na linguagem coloquial’ (matéria online de divulgação do jornal, de Cleidiana Ramos).

É um jornal então que não poderia ser encontrado em livros didáticos como exemplo da função referencial, estaria mais como exemplo de função conativa. Seus textos, embora se apresentem em terceira pessoa, não procedem ao apagamento de um enunciador, é um jornal parcial, que deixa explícita a sua visão de interlocutor.

Utiliza-se o valor de R$ 0,50 como atrativo. O atendimento a demandas mercadológicas pelo preço e formato do jornal que segue tendências atuais. É o jornal submetido desde o suporte até os gêneros nele veiculados às mudanças da sociedade em que se encontra. Porém, juntamente com a desvalorização monetária, vem a desvalorização da referência: que surge periférica, o centro é o apelo, é a espetacularização da notícia, fenômeno já visto na televisão soteropolitana com programas como Se liga Bocão, apresentado por José Eduardo, e Que Venha O Povo (QVP), ancorado pelo jornalista Casemiro Neto. Então o importante não é democratizar o acesso à informação, fazendo-a chegar de modo que contemple satisfatoriamente as especificidades de cada classe social. O importante é massificar a notícia, espalhá-la ao maior número possível de pessoas, e para isso o preço e as técnicas de apresentação das informações são meticulosamente pensadas.

O seu nome Massa!, em si, já traz uma noção de valor, tanto se verificada a acepção do termo, uma gíria soteropolitana que expressa a aprovação em relação a algo (ex: o show de ontem foi massa!) quanto se for percebida a intenção de aproximação com determinado público-alvo, o qual tem a sua identidade construída de um modo específico, construção essa que mobiliza valores os quais perpassam muito mais questões subjetivas que objetivas. Aliás, a ‘massa’ pode ser percebida como a própria população que forma o núcleo consumidor desse jornal.

Cultura popular e cultura hegemônica

Além da informalidade apresentada no título do próprio jornal, que nada reflete a impassividade de títulos como Correio e A Tarde (este último, aliás, do mesmo grupo que o Massa!), podem ser vistos outros indícios: Na seção ‘Polícia’, num texto de duas colunas e seis linhas, intitulado ‘Pelo direito de ser gay!’, encontra-se espaço e necessidade para a definição entre parênteses de homofobia (‘raiva de homossexuais’) e na seção ‘Viver Bem’, numa nota sobre depilação, encontra-se o seguinte enunciado: ‘ (…) Toda vez que a mulher depila totalmente a região, o buraquinho por onde os fios saem fica aberto e serve de entrada para bactérias’, com uma escolha lexical que acrescida da aplicação do diminutivo remete às explicações voltadas para o público infantil.

Ainda repercutindo as imagens concebidas de seus interlocutores, tem-se as manchetes do Massa!, em 22 de novembro, na ‘seção Polícia’ tem-se ‘Bicho pega nas ruas de Simões Filho’, na seção ‘Economia Popular’ de 25 de novembro, ‘Cuide bem da sua grana‘. É uma informalidade trazida por gírias que faz presença nesse jornal.

Pode-se encontrar uma correspondência direta entre a seleção temática que impregna essa produção jornalística e àquelas que moldam os programas populares televisivos e Stuart Hall, ao qualificar a pós-modernidade, aponta para a explicação de uma dessas escolhas temáticas:

‘Devemos ter em mente a profunda e ambivalente fascinação do pós-modernismo pelas diferenças sexuais, raciais, culturais (…) não há nada que o pós-modernismo mais adore do que um certo tipo de diferença: a bit of the other (expressão que no Reino Unido possui não só uma conotação étnica como também sexual)’ (HALL, 2003, p. 319).

Fazendo em adição, uma leitura dos valores expressos pelo jornal, é quase inevitável pensar no conceito de hegemonia de Hall.

O Massa! tem como direção três conceitos: o aspiracional, que é se transformar em instrumento para a melhoria da qualidade de vida do leitor; o de serviço ao trazer as coberturas do dia-a-dia da cidade; e o de cumplicidade por se colocar sempre ao lado do público, expressando suas necessidades e fiscalizando as instituições para que prestem um bom serviço.

Esse jornal mascara uma suposta abertura aos saberes do povo por meio da manutenção de uma visão hegemônica. Seria um exemplo daquilo que Hall trata, da relação tensa entre cultura popular (que abarca conceitos de cultura de massa, de cultura tradicional e práticas contemporâneas de produção e consumo culturais) e cultura hegemônica. Há uma contradição, embora seja dito que há uma preocupação com as camadas mais populares e que essa preocupação regeria o tratamento do conteúdo do jornal, o que se observa é que o Massa! é mais adequado à imagem de povo que se tem, e não à realidade da população. Não é feito do jeito que comporte as diferentes ânsias das camadas populares. É feito do jeito deles, do modo como os editores e toda uma elite baiana quer. De fato: de segunda a sábado. Massa! Feito do seu jeito!

******

Graduada em Letras Vernáculas (Licenciatura) pela Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA