A entrevista concedida pela atriz Fernanda Montenegro à jornalista Sonia Racy (Estadão, 04 nov 07) foi uma verdadeira epifania.
A palavra ‘epifania’ veio do grego, passou pelo latim e chegou à língua portuguesa no século XV. Designa o momento decisivo em que o significado essencial de alguma coisa é percebido por um, por poucos ou por muitos. Às vezes, o essencial está num detalhe que passa ignorado pela maioria, mas é notado por poucos, às vezes por um olhar solitário.
Devido às influências do latim da Igreja, que incorporou com insidiosa objetividade e grande competência os cultos pagãos antigos, a palavra ‘epifania’ é mais conhecida como a festa dos Reis Magos, que não eram reis, nem magos, nem eram três e levaram cerca de 800 anos para nascer e ter nomes. (Ver meu artigo A Lenda dos Reis Magos, JB, 6/01/04).
Fernanda no Estadão
Vamos à entrevista. Sabemos que título e chamada são provavelmente obra do editor da página. O Estadão deu em letras garrafais: ‘NÃO SOU VIVANDEIRA DE GOVERNOS’.
A língua portuguesa é tão fascinante que requer uma outra parada, desta vez para comentar o título. Vivandeira designou originalmente a mulher do vivandeiro, o sujeito que, principalmente em tempos de guerra, vendia víveres aos militares, abastecendo as tropas. A mulher também o acompanhava e às vezes o ajudava no ofício. Nasciam desse convívio informações privilegiadas da caserna e por certo um intenso leva-e-traz, mexericos, fofocas etc.
Mas ‘vivandeira’, como observou Elio Gaspari, é também ‘expressão trazida ao vocabulário político brasileiro pelo marechal Humberto Castelo Branco, em agosto de 1964, no auditório da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Reclamando dos civis que chamavam seu governo de militarista, disse o seguinte:
– Eu os identifico a todos. E são muitos deles, os mesmos que, desde 1930, como vivandeiras alvoroçadas, vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e provocar extravagâncias do poder militar‘.
E agora? A atriz Fernanda Montenegro disse a frase destacada pelo editor, depois de declarar que, passadas as eleições, situação e oposição trabalham em conjunto: ‘Aí todo mundo se cala ou se compõe – e vamos vivendo. E eu não quero falar sobre isso, compreende? Estou falando, mas não domino o texto dessa peça, não estou por dentro da ‘informação’. Em matéria de política, eu não sou e nunca fui vivandeira de partidos nem de governos‘.
‘Então, no que você acredita?’, pergunta a entrevistadora. E a atriz: ‘Na arte e no trabalho‘.
E Sonia Racy perguntou também: ‘Estamos sendo governados por um ex-operário. O que acha disto?’.
A resposta é a epifania do começo deste texto: ‘Vê-se no rosto de Lula, no brilho de seus olhos, que ele é o homem mais feliz deste País. Está feliz porque conseguiu o impossível. Temos de entender a viagem desse homem. Ele vive o seu milagre em total arrebatamento‘.
‘Ele faz milagre no País?‘, pergunta Sonia Racy. E a atriz: ‘Aí já é outra coisa. Eu vejo o fenômeno desse personagem espantoso. Ele é um ator de extraordinário carisma, que tem a casa cheia todo dia. Tanto que tem mais de 60% de aprovação. Tem uma platéia infindável, está virando um mito. Mas a educação vai mal e a saúde vai pior‘.
Por fim, a entrevista diz mais nas entrelinhas, nas doces coerções da jornalista que levam a atriz a revelar o que não queria, quer dizer, chegamos ao cerne da etimologia de ‘entrevista’: uma fresta pela qual muitas coisas podem ser vistas. Ou poucas, mas importantes! É dessas leituras que nunca olvidamos, que, ainda que não guardemos o recorte do jornal, ele ficará em algum canto de nossas lembranças para que as opiniões da grande atriz possam ser no futuro melhor analisadas e melhor compreendidas.