Um dos únicos debates temáticos travados no primeiro round das eleições deste ano centrou-se numa questão subjetiva, manifestada em expressões vagas, difusas e um tanto obsoletas como ‘opinião pública’ e ‘formadores de opinião’.
Não foram os candidatos que trouxeram o tema à mesa de discussões, ele foi provocado, espicaçado e mantido na agenda pelo grande orquestrador e animador-mor da política brasileira: Luiz Inácio Lula da Silva.
Opinião pública é hoje uma figura retórica, assim como comunidade e sociedade (embora no passado, sobretudo quando empregadas em alemão, Gemeinschaft e Gesellschaft, tivessem aparência mais científica). As noções de nação ou povo também poderiam ser utilizadas, mas opinião pública soa melhor e encaminha a discussão para o fascinante tópico do Quarto Poder, a imprensa, que o presidente levou aos palanques à revelia dos candidatos.
Outras ferramentas
Quando se fala em opinião pública é inevitável lembrar os formadores de opinião. E ao optar pelo enfrentamento com os formadores de opinião, tal como D. Quixote o presidente Lula investiu contra moinhos de vento. Todos são formadores de opinião: os propriamente ditos e os por eles formados. Inclusive o próprio exterminador dos formadores de opinião – o presidente.
Os formadores de opinião tropeçaram no primeiro turno. Em sua esmagadora maioria afiançaram que a candidata Dilma Rousseff ganharia na primeira rodada de votação. Não que fossem lulistas ou petistas – os opinionistas regulares da imprensa, rádio, TV e internet estavam fixados, imantados nos resultados das sondagens de opinião.
Obsessão antiga, há mais de uma década este observador a designava como pesquisite (quando o caso era mais grave) ou pesquisismo, quando se tratava de distorção sazonal. A cobertura dos fatos eleitorais e a análise dos seus efeitos comportam o emprego de outras ferramentas além do acompanhamento das enquetes dos institutos especializados. São importantes, não podem ser descuradas, mas não devem polarizar as atenções como tem acontecido.
Margem de erro e autoengano
Como resultado desta fixação, Dilma era a ganhadora já no primeiro turno. Ninguém – ou quase ninguém – prestou atenção ao fenômeno por enquanto o mais importante destas eleições: Marina Silva. Mantida na faixa de um dígito, às vezes oscilando para dois e sempre disfarçados pelas tais ‘margens de erro’, a candidata verde ficou colocada no nicho dos utopistas monotemáticos, tal como acontecera em 2006 com Cristóvam Buarque e o seu justificado culto à Educação.
Quando Marina Silva era senadora, ou quando foi ministra, a mídia não conseguiu enxergar naquela figura frágil, discreta, elegante e articulada a vitalidade e a determinação que mudariam o curso desta eleição. E agora, ao longo do pleito, os formadores de opinião foram iludidos pelas ‘margens de erro’ que, somadas, deram uma memorável surra nos abalizados previsores, profetas e adivinhadores. Não fizeram as contas ou fizeram as contas erradas.
Marina Silva perdeu ganhando (para usar o seu próprio jogo verbal), ela é o fato novo da política brasileira, quem quer que vença o segundo turno. O bloco dos ‘formadores de opinião’ terá que encarar que os verdes – como acontece na Europa – deixaram de ser os bichos-grilo, estão geralmente na vanguarda da política, da economia, da ciência e da cultura.
Como a imprensa nativa se deixou levar pelas aparências aritméticas, a internacional foi atrás. Os correspondentes estrangeiros aqui sediados ou de passagem não tiveram a coragem de alertar os porteiros das respectivas redações que uma surpresa estava sendo gestada. Os formadores de opinião d’além-mar capitularam diante dos seus leitores que, atormentados pelos fantasmas da recessão mundial, agarram-se à esperança de assistir no Novo Mundo à sagração do ‘país do futuro’ liderado por um ex-metalúrgico. Não perceberam que este mesmo país do futuro pode ser uma caixinha de surpresas – como dizem os futebolistas – em matéria de valores e princípios.
A edição de segunda-feira (4/10) do El País – seguramente o jornal estrangeiro com maior circulação doméstica – é exemplo da miopia internacional: Dilma Rousseff na capa em grande estilo, páginas dois e três com imensas fotos de Lula e Dilma, títulos e destaques em tom hagiográfico, nenhuma menção ao candidato tucano e apenas o subtítulo sobre Marina como ‘factor decisivo’ [sic]. OK, o fuso horário era desfavorável (matéria fechada com apenas 40% dos votos apurados), mas na edição anterior, domingo, a tônica do ‘já ganhou’ era idêntica.
Aberrações e distorções
Nossos formadores de opinião têm problemas com as togas: gostam de se imaginar juristas e, quando não conseguem, deixam-se fascinar pelas firulas e malabarismos jurídicos de alguns magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF). Uma pressão firme e decidida da mídia para forçar a Suprema Corte a decidir o destino dos fichas-sujas antes de 3 de outubro teria evitado este constrangedor pleito sub judice, com milhões de eleitores sem saber o destino dos seus votos e as lideranças políticas às cegas sem saber como se comportar diante da possibilidade de ver impugnadas tantas candidaturas.
Nossa mídia ainda não consegue encarar o STF com naturalidade. Evidentemente conhece as manhas do alto corporativismo, pressente que um dia precisará de pareceres e votos que podem ser decisivos para os seus interesses, e trata esta corte com uma complacência que não adota no trato do Executivo ou do Legislativo. Se o chamado Quarto Poder se considera tutor/avalista/fiscal dos demais, não deveria abdicar de firmeza nas eventuais cobranças das altas esferas judiciárias.
O STF – e/ou seu presidente – foi omisso, não respondeu como devia ao magnífico movimento cívico que resultou na aprovação da Lei da Ficha Limpa. Os meritíssimos não olharam o calendário nem atentaram para o empate que se prenunciava. Deixaram rolar.
Neste episódio os formadores de opinião passaram à opinião pública – ou que nome tenha – uma mensagem leniente. Também se abstiveram de examinar com rigor o que está acontecendo na esfera digital (chamada de blogosfera antes do surgimento das redes sociais). Como os jornais e revistas convenceram-se de que vão desaparecer no formato impresso nas próximas décadas, começaram a investir nas versões digitais e não lhes interessa radiografar com a necessária severidade o bas fond cibernético que tanto louvam e agora freqüentam. Acham que é assim mesmo: no passado os pasquins manuscritos faziam o diabo com suas vítimas, agora a vileza é tuitada em 140 caracteres.
Não caberia aos impressos deter-se para examinar as aberrações e distorções de um processo que poderá arrastá-los inevitavelmente para o esgoto?
Até agora não sabemos o que aconteceu neste primeiro round eleitoral nos subterrâneos digitais. É assunto, não pode ser descartado. Ou, porventura, os formadores de opinião dos veículos impressos estão com medo de enfrentar seus rivais ‘conectados’?
O processo sucessório termina em 31 de outubro, mas Dona Opinião Pública não merece ser abandonada. Mesmo que adote outro nome. Que tal cidadania?
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Em tempo [incluído às 17h42 de 5/10]: A capa da edição corrente da revista inglesa The Economist traz uma foto do presidente Lula, em comício, erguendo o braço de uma sorridente Dilma Rousseff sob a concisa manchete ‘Brazil’s handover’ — o que, em tradução livre, pode ser entendido como se o presidente estivesse ‘passando o bastão’ para a candidata oficial. Como anotou Ancelmo Gois em sua coluna de O Globo (5/10, pág. 28), ‘faltou [a revista] combinar com os eleitores que votaram no domingo’.