A América Latíndia, lugar fictício descrito pelo escritor Ignácio de Loyola Brandão no romanceZero, cuja instabilidade socioeconômica e o regime autoritário integravam um mosaico tragicômico, assemelha-se, vez e outra, com a nossa América Latina. Aqui, os ideais reacionários, aparentemente cadavéricos, ressurgem das profundezas, exortados pela grande mídia dos trópicos, a fim de servirem de alegoria a um infindável baile momesco. Na atual conjuntura, o golpe de Estado perpetrado em Honduras, embora não tenha agradado à comunidade internacional, foi ovacionado pela imprensa tupiniquim.
Não há nenhuma novidade neste fato. Pois, como bem analisou o colunista Mauricio Dias (CartaCapital, 2/9/2009), o professor aposentado de teoria política da UFRJ Wanderley Guilherme dos Santos, renomado cientista político, já havia dito que ‘a exemplo de toda a imprensa, denominada grande, latino-americana, jamais hesitou em apoiar todas as tentativas de golpe de Estado, quando estas significavam a derrubada de presidentes populares ou o fechamento de congressos de inclinação mais democrática’.
Ora, esta foi justamente a atitude tomada por diversos veículos diante da instauração, no último dia 28 de julho, de um governo militar em Honduras, sob o comando de Roberto Micheletti, e a consequente deposição do presidente José Manuel Zelaya. A revistaVeja, por exemplo, ainda que seja dissimulada no que diz respeito à sua função social, não poupou esforços para evidenciar o seu caráter ultraconservador.
Reeleição de futuros presidentes
Na capa da edição do dia 30 de setembro, a revista semanal da editora Abril exibiu a seguinte manchete: ‘O imperialismo megalonanico’, em referência ao asilo dado pela embaixada brasileira em Tegucigalpa ao presidente Zeleya. Segundo aVeja, agindo desta forma, o Brasil, supostamente instigado pelo presidente venezuelano Hugo Chávez, estaria contrariando sua ‘tradição diplomática’.
Em meio às linhas grotescas da matéria de capa, o leitor pode deparar com vaticínios do tipo: ‘Com as eleições marcadas para o próximo dia 29 de novembro, o governo interno [leia-se, ditadura] que derrubou Zelaya se preparava para reconduzir o país à normalidade democrática.’ Coincidentemente, este fora o mesmo discurso utilizado pelos generais brasileiros – e largamente difundido pela imprensa – na ocasião do golpe de 1964 que, talvez por força do destino, perdurou até 1985.
Apoiando-se na Constituição hondurenha, cujo artigo 374 torna inválido qualquer plebiscito ou referendo que possibilite a renovação do mandato presidencial, os golpistas acusam Manuel Zelaya de tentativa de continuísmo. Para o professor de Direito Constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano, em artigo publicado naFolha de S.Paulo (30/9/2009), ‘Zelaya tem afirmado que sua proposta é de possibilitar a reeleição de futuros presidentes, e não dele próprio. Assim, ele não teria apoiado, promovido ou incitado o continuísmo do atual presidente – ele próprio.’
A realidade e a imprensa
Salvo raras exceções, o importante papel desempenhado pelo governo Lula na geopolítica mundial tem recebido total desprezo pela mídia. A boa desenvoltura do país diante de uma das piores crises econômicas dos últimos anos, a astuciosa política externa, que inclui o caso de Honduras, com vistas a adquirir uma vaga no Conselho de Segurança da ONU e, sobretudo, as transformadoras, embora insuficientes, ações sociais de nada valem aos megalonanicos oligarcas das comunicações.
A imprensa nativa tem todo o direito de ter opiniões e preferências políticas. O problema é que, conforme afirmara Wanderley Guilherme, ‘há muito da realidade que não está na imprensa e há muito do que está na imprensa que não está na realidade’. Resta saber se, a exemplo do país da América Central, os arqueólogos-verde-e-amarelo têm como meta a procura, incansável, de fósseis do totalitarismo.
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Estudante de Jornalismo das Faculdades Integradas Helio Alonso e repórter do suplemento culturalO Prelo, da Imprensa Oficial do Estado do Rio de Janeiro, Niterói, RJ