Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Gerald Baker

‘A equivalência moral é, há muitos anos, o mais insidioso inimigo intelectual do poderio americano. A confiança que os americanos sentem em seu país como sendo algo objetivamente benigno para toda a humanidade sempre distinguiu sua política externa daquela de todas as grandes potências que o antecederam.

Durante mais de meio século de supremacia mundial americana, essa reivindicação vem sendo solapada -às vezes falsamente, outras vezes com razão- por atos hediondos que, à primeira vista, parecem ser imorais. Alguns desses atos, como Hiroshima ou como o apoio dado a ditadores vis durante a Guerra Fria, foram produtos de avaliações morais conscientes e calculadas segundo as quais o fim desejável justificava o meio abominável. Outros, como My Lai, foram lapsos indefensáveis de comportamento humano individual que macularam a honra de todo um país.

Desde que invadiram o Iraque, um ano atrás, os EUA vêm enfrentando o sofisma sedutor da equivalência moral. Na Alemanha, George W. Bush e seu aliado Tony Blair são rotineiramente tachados por políticos e comentaristas de criminosos de guerra, por não terem obtido a aprovação da ONU antes de empreenderem sua ação militar, e essa crítica é proferida dentro de uma comparação implícita com o passado da Alemanha. O fato de não terem sido encontradas armas de destruição em massa é visto como fruto de uma mentira deslavada dos EUA e do Reino Unido, comparável às alegações soviéticas de que sua agressão descarada foi lançada para apoiar os assoberbados húngaros ou afegãos. A morte de alguns milhares de civis no Iraque vem sendo citada pelos críticos dos EUA, através da operação de algum cálculo moral inexato, como ‘prova’ de que, para os iraquianos, Bush é moralmente indistinguível de Saddam Hussein.

A esse misto tóxico agora vem somar-se o simbolismo grotesco de Abu Ghraib. Mesmo na prosa seca do oficialês do Pentágono, as acusações do relatório sobre o sistema de prisões administrado pelo Exército são chocantes. Iraquianos foram sujeitos a abuso sexual, tortura e morte.

E, o que é muito mais contundente ainda, todos nós já vimos as imagens bizarras e dantescas de corpos humanos nus empilhados como carne de cavalo diante de soldados americanos com as bocas abertas em sorrisos imbecis, soldados esses cuja depravação é tão difícil de compreender quanto é abominável. Ou, então, a imagem dolorosa do prisioneiro encapuzado, atados a fios elétricos, como um passarinho confuso encurralado por um predador.

Mas a afirmação, que agora virou comum no mundo árabe e até mesmo em boa parte da Europa, de que essas imagens constituem a prova final de que a América é a equivalente moral ao Iraque de Saddam, precisa ser gentilmente contestada. Saddam nunca foi prestativo a ponto de prover ao público fotos daquilo que seus homens faziam em Abu Ghraib.

E há um tom de indignação chocada nessas revelações, especialmente nos EUA, que me parece um pouco ingênuo. Presume-se que a tortura não seja algo raro no Iraque e no Afeganistão. A guerra é um trabalho sujo que diariamente coloca homens e mulheres diante de escolhas terríveis que a maioria de nós não precisa fazer nenhuma vez na vida.

No filme ‘Questão de Honra’ (1992), o coronel dos marines Nathan Jessup (Jack Nicholson), acusado de maltratar um soldado, se explica: ‘Minha existência, embora seja grotesca e incompreensível a vocês, salva vidas. Vocês não querem a verdade. Porque, lá no fundo, em lugares que não são assunto em festa, vocês querem que eu esteja naquela parede, precisam de mim naquela parede’.

Entretanto não basta simplesmente afirmar a diferença moral entre a América de Bush e o Iraque de Saddam. Estamos diante de um teste grave do caráter da América. Será preciso empreender uma ação. Todos os responsáveis por esses crimes precisam ser tratados com a força plena da Justiça militar, como aconteceu com o fictício coronel Jessup -até o mais alto escalão do comando militar. Se só os nanicos sofrerem medidas disciplinares sérias, isso não será o suficiente para lavar essa mancha. É porque a América não é Saddam que ela precisa mostrar que sabe lidar com quem infringe seu código ético.

Não tenho dúvida de que, no final, os EUA serão aprovados nesse teste. Mas o que só pode estar em dúvida muito mais séria neste momento é se o país possui a habilidade de liderança e a competência pura e simples necessárias para dar garantias aos iraquianos e aos próprios americanos.

A marca do tratamento dado pelo governo Bush à ocupação do Iraque não tem sido a crueldade desumana, mas a incompetência abissal. Desde o momento em que as forças americanas entraram em Bagdá, um ano atrás, a ocupação vem se caracterizando por arrogância desmedida, julgamentos equivocados, surdez política, parcimônia, inconsistência e cálculos equivocados. Sua busca por um acordo político tem sido tortuosa e, inacreditavelmente, mesmo nesta fase adiantada, improdutiva. A maneira como vem cuidando da segurança, desde a pilhagem de Bagdá até o impasse em Fallujah, no mês passado, vem sendo caótica e indecisa. Apesar da retórica, a ocupação passa a impressão de que lhe falta disposição ou conhecimentos.

Como disse Walter Russell Meade, estudioso da política externa dotado de visão eternamente otimista, ‘a América começou no Iraque dispondo de uma larga margem de erro. Desde então, não parou de consumir essa margem’. Em última análise, o que vai solapar a liderança dos EUA não é a falta de confiança em suas boas intenções, mas a descrença quanto a sua capacidade de colocá-las em prática.’



O Estado de S. Paulo

‘Rumsfeld desculpa-se e avisa que há mais fotos’, copyright O Estado de S. Paulo, 8/05/04

‘Chamado a depor num comitê do Senado, o secretário americano da Defesa, Donald Rumsfeld, assumiu ontem toda a responsabilidade pelo escândalo das torturas no Iraque, pediu desculpas e, já prevendo dias ainda mais sombrios, antecipou que há uma porção de fotos e vídeo de abusos ainda não divulgados. ‘Se eles forem levados ao público, obviamente isso vai tornar as coisas ainda piores’, afirmou.

Até o momento, só foram exibidas pela mídia fotos de tortura e humilhação sexual de prisioneiros, mas nenhuma fita de vídeo foi levada ao ar. Logo que o secretário começou a falar ao Comitê dos Serviços Armados das Forças Armadas, um grupo de manifestantes na sala gritou: ‘Demitam Rumsfeld!!!’

Esse mesmo chamado foi feito por vários congressistas do Partido Democrata e jornais americanos, incluindo os influentes New York Times (ler na página A19) e Boston Globe, bem como a revista britânica The Economist.

Os deputados e senadores estão furiosos por terem se inteirado do caso dos abusos de prisioneiros por intermédio da imprensa, em vez de o Pentágono tê-los informado sobre as investigações em andamento, como é praxe no Congresso. Ontem, o quadro de descaso se agravou com a denúncia do Comitê Internacional da Cruz Vermelha de que um ano atrás já advertira funcionários dos EUA sobre as torturas, que não considera casos isolados, mas resultado ‘sistemáticas’ (ler mais na página A20).

Mas Rumsfeld frisou em seu depoimento que não vai renunciar. Ele não pareceu abalar-se quando os manifestantes pediram sua saída do calmo. Continuou sentado, demonstrando calma. Indagado se poderia permanecer em seu cargo e ainda manter poder, Rumsfeld respondeu que, se acreditasse no contrário, ‘renunciaria em um minuto’. ‘Não vou renunciar simplesmente porque pessoas tentam fazer disto uma questão política’, declarou. No dia anterior, o presidente George W. Bush enfatizou que Rumsfeld continua no cargo.

‘Quero ser claro. Eu me equivoquei ao não reconhecer a importância de levar um caso de tamanha gravidade aos mais altos níveis, incluindo o presidente e os membros do Congresso’, disse Rumsfeld. ‘Como secretário de Defesa, sou o responsável e assumo total responsabilidade.’

Depois de dizer que se sentia muito mal com o que aconteceu com os presos – ‘Eles são seres humanos’ – , o chefe do Pentágono pela primeira vez se desculpou.

‘A todos aqueles que foram maltratados por membros das Forças Armadas dos EUA, eu ofereço minhas mais profundas desculpas.’ No dia anterior, o próprio Bush pediu desculpas ‘pela humilhação’ infligida a prisioneiros iraquianos.

Rumsfeld anunciou a criação de um grupo de ex-altos funcionários que será encarregado de averiguar os inquéritos sobre os abusos contra os presos e determinar se novas investigações serão necessárias. Os resultados terão de ser entregues em 45 dias.

‘Estou buscando uma maneira de conceder uma compensação adequada para aqueles presos que sofreram tais abusos e crueldade brutais e penosos nas mãos de uns poucos membros das Forças Armadas dos EUA’, adiantou. ‘É a coisa certa a fazer.’

Vários senadores pressionaram Rumsfeld durante o depoimento. John Warner, republicano, frisou que o comitê precisava saber ‘quem sabia o quê, quando e o que havia sido feito sobre isso (o caso das torturas) e por que os membros do Congresso não haviam sido propriamente informados’.

Respondendo a uma pergunta de outro senador, Carl Levin, democrata, Rumsfeld garantiu que não apenas os soldados responsáveis pelas torturas senão punidos, mas também seus comandantes. Outro republicano, o senador John McCain, quis saber que instruções haviam sido dadas para os policiais militares que aparecem nas fotos de torturas, uma vez que um relatório militar interno revela que os guardas da prisão de Abu Ghraib tinham orientação de ‘amolecer os presos’ para que eles ‘cooperassem’ nos interrogatórios.

Foi uma sessão tensão, na qual os republicanos se mostraram até mais duros do que os democratas, embora não tenham pedido a renúncia de Rumsfeld.

Também depondo no mesmo comitê, o chefe do Estado-Maior Conjunto dos EUA, general Richard Myers, negou que o Exército tenha tentado ocultar as informações sobre os abusos. Mas admitiu ter pedido à TV americana CBS – a primeira a exibir as fotos – que adiasse a divulgação para que ‘não estimulasse mais violência’ e não pusesse em perigo os soldados das forças da coalizão e os estrangeiros feitos reféns pela guerrilha. Depois de ter aceitado adiar a apresentação por alguns dias, a CBS levou as fotos ao ar no dia 28. (Reuters, AP, AFP, EFE e DPA)’

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‘Cresce pressão para renúncia de Rumsfeld’, copyright O Estado de S. Paulo , 7/05/04

‘Quase todos os congressistas democratas, alguns republicanos, grande parte dos órgãos de imprensa e emissoras de rádio e TV elevaram ontem o tom dos pedidos para que o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, renuncie. Um dos mais atuantes ‘falcões’ da administração de George W. Bush, Rumsfeld tem sido responsabilizado pelo escândalo da tortura de prisioneiros iraquianos.

Depois de classificar como abomináveis os casos de tortura, Bush reiterou ontem – embora sem a convicção que costuma marcar suas afirmações – que Rumsfeld seguirá como como chefe do Pentágono. Mas, sob a condição de não serem identificados, dois assessores da Casa Branca disseram à rede de TV CBS que Bush chamou a atenção de Rumsfeld por não ter sido informado mais cedo dos casos de abuso.

Alguns analistas, como Tom Curry, da emissora de TV MSNBC, não apostam na continuação do secretário no cargo, caso sua presença no governo se converta em prejuízo eleitoral num ano em que Bush tentará obter um novo mandato, na eleição de novembro. ‘No passado, secretários da Defesa sobreviveram a catástrofes piores do que os abusos na prisão de Abu Ghraib. Mas, a apenas seis meses da eleição, Bush e seus estrategistas estão avaliando quanto a permanência de Rumsfeld pode prejudicar as chances do presidente de conquistar um segundo mandato’, escreveu Curry.

‘Não vou dizer ao presidente o que ele deve fazer, mas é óbvio que há muitas explicações que o secretário Rumsfeld e outros nos devem’, declarou o senador republicano John McCain. Por todo o país, jornais locais como o St.

Louis Post-Dispatch publicaram ontem editoriais pedindo a saída de Rumsfeld por ele não ter evitado os abusos e pela demora na investigação dos fatos.

Colunistas dos principais jornais nacionais, como The New York Times (ler abaixo) e The Washington Post seguiram a mesma linha.

A capa da influente revista semanal britânica The Economist, na edição que saiu às bancas ontem, estampa: ‘Renuncie, Rumsfeld!’ Numa enquete online realizada pela MSNBC, 67% dos quase 70 mil que votaram eram favoráveis à saída de Rumsfeld.

‘Rumsfeld é realmente um bom secretário de Defesa. Serviu bem ao país. Foi o secretário durante duas guerras’, disse Bush durante uma entrevista coletiva ao lado do rei da Jordânia, Abdala. ‘Ele continuará em meu gabinete.’

Rumsfeld deve depor hoje na Comissão de Serviços Armados do Senado. Ontem, ele cancelou o discurso que faria num evento na Filadélfia para, aparentemente, preparar-se para o depoimento.

Nancy Pelosi, líder da minoria democrata na Câmara, defendeu a ‘remoção imediata’ de Rumsfeld do cargo. E o senador democrata Tom Harkin exigiu: ‘Se (Rumsfeld) não renunciar agora, o presidente deve destituí-lo.’

O candidato democrata nas eleições de novembro e principal oponente de Bush, John Kerry, preferiu voltar suas baterias para o próprio Bush, exortando-o a assumir sua responsabilidade. ‘Quanto estava na Marinha, o capitão do navio era o responsável por tudo que acontecia e cabia a ele arcar com essa responsabilidade’, disse Kerry, ex-marinheiro na Guerra do Vietnã. (Reuters, AP, AFP, EFE e DPA)’

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‘Parlamento convoca diretor do ‘Mirror’ para falar sobre fotos’, copyright O Estado de S. Paulo, 6/05/04

‘A Comissão de Defesa do Parlamento brutânico convocou ontem o diretor do tablóide sensacionalista The Daily Mirror, Piers Morgan, a prestar declarações ‘em breve oportunidade’.

Morgan enfrenta crescentes pedidos por sua demissão, se for comprovado que as fotos de iraquianos sendo torturados por soldados britânicos que ele publicou são falsas.

Morgan garante a autenticidade das cinco fotos em preto e branco publicadas no fim de semana. Entre as fotos está a de um militar britânico urinando sobre um preso iraquiano em um caminhão. Fontes militares e meios de comunicação sustentam que alguns detalhes não batem com os dos soldados britânicos no Iraque, como os tipos de fuzil, de caminhão ou de uniforme.

Morgan diz que obteve as fotos de soldados do Regimento Real de Lancashire.

Conservadores e trabalhistas criticaram o Mirror por publicar as fotos sem autenticá-las antes. Morgan também está sendo criticado por ter pago – acredita-se 20 mil libras – aos soldados por sua história. (EFE e The Guardian)’



O Globo

‘A rotina da humilhação’, copyright O Globo, 8/05/04

‘Uma nova série de fotos de abusos de prisioneiros iraquianos por militares e guardas penitenciários americanos foi revelada ontem pelo jornal ‘The Washington Post’ e organizações de direitos humanos afirmam que o que foi descoberto até agora pode ser apenas a ponta do iceberg. As fotos digitais foram obtidas na investigação realizada pelo major-general Antonio Taguba, do Exército dos Estados Unidos, sobre os abusos na prisão iraquiana de Abu Ghraib sob jurisdição das forças americanas, e embasaram em parte seu relatório.

O material foi obtido com membros da 372 Companhia de Polícia Militar, uma unidade de reserva do Exército. Uma das fotos mostra um prisioneiro nu deitado no chão com uma coleira segurada por um soldado ao redor do pescoço. Numa outra, vê-se um prisioneiro nu encapuzado algemado à grade de uma cela, e uma terceira mostra um preso nu algemado ao beliche com roupa íntima feminina cobrindo-lhe a cabeça. Há, ainda, fotos que mostram prisioneiros simulando atos sexuais. O ‘Washington Post’, no entanto, afirmou não descartar a possibilidade de que algumas delas sejam encenações.

Por sua vez, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha – órgão que por tratados internacionais tem acesso a prisioneiros – informou ontem em Genebra, na Suíça, ter alertado repetidamente o governo americano para que tomasse providências sobre abusos em Abu Ghraib. Nos EUA, uma ONG de direitos humanos levantou a possibilidade de que a violência contra prisioneiros pode ser bem mais ampla do que se imagina. Segundo a Equipes Pacificadoras Cristãs, que opera no Iraque desde 2002, cerca de 80% dos presos que seus funcionários entrevistaram sofreram algum tipo de abuso – de espancamento a privação de sono. Os EUA estimam que 40 mil pessoas foram presas desde a queda de Saddam Hussein em abril de 2003, e dez mil ainda permanecem sob custódia americana.

AI pede investigação independente

A Anistia Internacional (AI) pediu uma investigação independente para averiguar a extensão dos abusos cometidos em Abu Ghraib, jogando suspeita sobre o trabalho feito até agora pelos militares americanos.

– O tipo de investigação de que estamos falando é muito mais do que os militares estão até agora realizando sobre si próprios Não sei do que eles são capazes, mas é fora de questão que a verdade vá emergir de suas investigações – duvidou Nicole Choueiry, porta-voz da AI para o Oriente Médio.

Além das críticas das ONGs de direitos humanos, o governo americano continuou a sofrer a barragem de ataques dos editoriais da imprensa, que o acusam de ter demorado a reagir. Três dos mais importantes jornais americanos – ‘The Washington Post’, ‘The New York Times’ e ‘USA Today’ – reforçaram o coro dos descontentes. O ‘Times’ criticou a entrevista do presidente George W. Bush a duas emissoras árabes anteontem, dizendo que por momentos ele deu a impressão de estar repreendendo o mundo árabe ‘por não haver compreendido as boas intenções dos Estados Unidos’ em libertar o Iraque.

Em Washington, a Câmara de Representantes dos Estados Unidos aprovou, por 365 votos a 50, uma resolução deplorando os abusos cometidos contra prisioneiros no Iraque e exigindo justiça. Já alguns senadores pediram que o Pentágono proceda à demolição da prisão de Abu Ghraib.

Em seu primeiro comentário sobre o escândalo, o procurador-geral John Ashcroft disse que alguns casos de abusos praticados por civis podem cair sob a jurisdição de seu departamento. Com o Washington Post’