Nas últimas três semanas, acompanhamos um verdadeiro fenômeno midiático: a súbita e inexplicável transformação do padre Júlio Lancellotti, de vítima de uma pequena quadrilha de delinqüentes, em terrível criminoso de pedofilia e desvio de dinheiro da comunidade.
Grande parte da imprensa condenou o sacerdote em suas manchetes sem qualquer respaldo da Justiça (até porque as investigações correm em sigilo), proferindo sentenças como estas: ‘Ex-interno diz que fazia sexo por dinheiro com padre’; ‘Igreja blinda padre e se protege’; ‘Padre Júlio passa de vítima a réu’; ‘Batista teria conhecido e iniciado um relacionamento amoroso com o padre na instituição’; ‘‘Eles chegaram a ter relações sexuais dentro da igreja’, disse o advogado de Batista’.
Diogo Mainardi chegou a batizar o padre de ‘Michael Jackson da Mooca’, como nos conta Gabriel Perissé em excelente análise publicada no Observatório da Imprensa.
Na quinta-feira (8/11), a Polícia Civil de São Paulo calou todas essas manchetes – o inquérito concluiu que o padre foi, realmente, vítima de extorsão das quatro pessoas presas preventivamente após denúncia que o próprio padre fez, em agosto deste ano, quando roubado em cerca de R$ 80 mil. Concluído o inquérito, a polícia indiciou, portanto, o ex-interno da antiga Febem Anderson Batista, 25; sua mulher, Conceição Eletério, 44; e os irmãos Evandro e Everson Guimarães. Além desses, a polícia investiga Marcos José de Lima, conhecido de Batista, também acusado de extorquir dinheiro do padre.
Confiança no esquecimento
O que mais incomoda nessa história toda é o circo montado por parte da mídia, que parecer ter-se ‘esquecido’ de que o próprio padre Júlio havia feito a denúncia contra a quadrilha primeiro e que, em sua denúncia, ele dizia estar sendo chantageado para pagar ou ser acusado de pedofilia. Também parece ter-se esquecido que o próprio padre, ao perceber a sinuca de bico em que se havia metido, fez longas gravações com os agora indiciados, os quais, em momento nenhum, faziam referências ao suposto ‘caso amoroso’.
A diferença de tratamento dada à fala do padre e à do advogado de Batista é gritante. O próprio padre comenta, exasperado, o tratamento que ganhou da mídia, em seu discurso proferido no dia 3 de novembro: ‘Só que quando a mãe falou, foi manchete de meia página dos jornais. Quando ela negou, foi uma chamada lá dentro, na décima página do jornal. Quando agora dizem que eu tenho relacionamento com uma dessas pessoas. Se eu tivesse, por que eu gravaria? Ele poderia em algum momento da gravação dizer: ‘E o nosso caso? Você agora esqueceu?’’
Agora que a polícia terminou seu inquérito a favor do padre, fica esse gosto amargo na boca dos editores dos jornalões. Ou, pior: não fica gosto nenhum porque eles confiam no esquecimento e na falta de discernimento de grande parte da população leitora. Cabe a nós mostrar que não é bem assim. E levantar o questionamento mais importante desse caso, três semanas depois que a novela começou: qual o interesse por trás dessa guinada que a mídia deu, transformando padre Júlio de vítima em réu?
Outra possibilidade sórdida
Porque o que sabemos do padre Júlio Lancellotti é que ele trabalha há vários anos em projetos para ajudar moradores de rua (‘Povo de rua’, da Arquidiocese de São Paulo) e crianças com Aids (ONG Casa Vida) e que ele é reconhecido no mundo todo por entidades que lutam pelos Diretos Humanos. Mas também sabemos que ele sempre foi um ativista político ligado ao Partido dos Trabalhadores, fez campanha para Lula e oposição a José Serra (PSDB) e a Gilberto Kassab (PFL). Teriam os jornalões algum interesse político no tratamento ideológico de suas manchetes?
Há ainda outra possibilidade sórdida para essa questão: padre pedófilo vende muito mais do que um ex-interno da Febem chantagista. Neste caso, talvez seja a hora de mandar benzer algumas redações pelo país afora, porque não é de hoje que o capitalismo suplantou a moral e a ética.
Leiam o excelente artigo O Padre, o Bandido e a mídia, de Fernando Soares Campos!
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Jornalista, Belo Horizonte, MG