Todos os anos, 12 mil novos jornalistas saem para o mercado de trabalho no Brasil. E não é para menos. Atualmente existem cerca de 450 cursos e 500 pedidos de abertura acumulados junto ao MEC. Somente entre 2000 e 2004, o número de cursos de graduação no país cresceu 70%. Mesmo assim, esta avalanche de profissionais despejada no mercado anualmente – mesmo subtraindo, é claro, aqueles que migram para outras áreas depois de se graduar, além do grupo que não consegue emprego – não está dando conta de atender toda a demanda de informações gerada pela sociedade.
Esta argumentação foi manifestada recentemente pela segunda maior agência de notícias do mundo, a Associated Press . Seus quatro mil jornalistas, espalhados por 240 escritórios em 96 países, são insuficientes para uma cobertura global mais ampla, conforme justificou a AP depois de firmar uma parceria com a Now Public , uma iniciativa canadense que já conta com 60 mil contribuintes voluntários na produção de notícias distribuídos em 140 países.
Seja pelo glamour da profissão ou pela motivação de contribuir para a ‘democratização’ da informação, o fato é que pessoas de outras áreas querem ser jornalistas. Cidadãos comuns estão incomodados com sua posição de espectadores da notícia. Eles querem ser narradores dos fatos.
Daqui em diante se ouvirá falar muito em ‘jornalismo cidadão’ ou ‘jornalismo participativo’. Na Coréia do Sul, o site OhmyNews já possui aproximadamente 40 mil colaboradores. Dos 20 milhões de blogs existentes nos Estados Unidos, 34% são definidos como jornalísticos, embora boa parte seja mantida por outros profissionais.
Qualquer indivíduo, independente da área de atuação ou formação, que desejar produzir notícias já tem até um manual. Em 2006, Ana Carmen Foschini e Roberto Romano Taddei lançaram Jornalismo Cidadão, Você Faz a Notícia, um dos títulos da coleção ‘Conquiste a Rede’. Na obra, os autores ensinam os passos básicos para a elaboração do texto, construção do lide, e oferecem dicas para o trato com as fontes e técnicas de entrevista. Ana e Taddei afirmam que ‘os profissionais da comunicação têm agora milhares de aliados na tarefa de apurar fatos, conhecer novidades, reunir e comentar informações’.
Aliados ou concorrentes?
Tratar deste assunto é desconfortável para muitos membros da classe. Embora a iniciativa seja recente, a questão remonta a uma velha discussão: a da obrigatoriedade ou não do diploma para o exercício jornalístico. De acordo com o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, José Augusto Camargo, a profissão é descaracterizada se passar a ser desempenhada por qualquer pessoa: ‘Eles não fazem jornalismo. Emitem opinião. Um jornalista tem que informar seguindo regras, lógicas, técnicas e ética profissional. Caso contrário, entrará no mundo do `opinionismo´ e reduzirá o jornalismo a uma coleção de opinião das pessoas.’
Em agosto de 2006, o Globo Online criou o Eu-Repórter. Além de fotos e vídeos, o cidadão pode enviar também textos para a redação. Aloy Jupiara, um dos editores-executivos do veículo online, defende que ‘o principal aspecto do jornalismo participativo é democratizar a informação e integrar o cidadão, é um processo de compartilhamento da informação’.
A elaboração do conteúdo noticioso, contudo, não deve ficar alheia à inspeção de um profissional, na concepção de Jupiara.
Mesmo assim, as tomadas de posições a respeito desta questão são divergentes. Além de presidente da Federação Nacional dos Jornalistas, Sérgio Murillo de Andrade integra o Comitê pela Democratização da Comunicação de Santa Catarina e participa dos debates e lutas promovidos no Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Mas ele acredita que existe uma responsabilidade que o jornalista não pode dividir com o cidadão. ‘Todo mundo pode fazer comunicação. Mas jornalismo só é feito por jornalistas, como quem faz medicina são médicos, engenharia são engenheiros, psicologia são psicólogos.’ Onde entra, então, o espectador nesta história? Simples. O cidadão é a fonte das informações, sempre foi – assim como o trabalho do jornalista sempre teve caráter cidadão. Basta que os veículos de comunicação reflitam realmente a pluralidade de opinião.
Segundas intenções
No Brasil, a sindicância em prol da regulamentação profissional é assídua. Órgãos da classe têm realmente razão em se preocupar com a situação. A responsabilidade social, em muitas empresas de comunicação também se tornou uma máscara para camuflar os interesses comerciais. Um dos projetos bem-sucedidos de incorporação do cidadão às redações, o OhmyNews, antes mesmo de se projetar internacionalmente, há dois anos, lucrava mais de US$ 2 milhões por ano com publicidade.
De acordo com o presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, muitos veículos ferem a lei de Direitos Autorais em nome da produção de baixo custo: ‘Garantem fotos, por exemplo, a baixíssimo custo e ainda podem, numa eventualidade, utilizá-las para a revenda. Isso é perverso. Elas se valem desse desejo das pessoas de se ver refletidos nos veículos de comunicação. Fazem as pessoas assinar sessão completa de direitos, o que é ilegal. Então, tem um caráter econômico, de exploração.’ Em segundo lugar, Camargo salienta que o jornalismo-cidadão pode ser incorporado como uma estratégia a fim de burlar as leis trabalhistas. Isso é crime. O artigo 19 da Regulamentação da Profissão de Jornalista estatui que ‘constitui fraude a prestação de serviços profissionais gratuitos, ou com pagamentos simbólicos.’
Em 2006, a Universidade de Barcelona promoveu a 3.ª edição do Congresso Online – Observatório Para a Cybersociedade. Na ocasião, dois jornalistas brasileiros, Tiago Soares, um dos coordenadores da ONG Rede Livre, e Rafael Evangelista, editor da revista ComCiência, abordaram sobre ‘Jornalismo Livre: uma proposta para a incorporação da liberdade na prática jornalística’. Mais que desejar a democratização da informação – algo que, por definição, é antagônico a qualquer corporação de mídia, para quem poder sobre a informação é ferramenta de lucro – ou a aproximação de leitores, Soares acredita que as empresas de comunicação que investem no filão se interessam pelas possibilidades econômicas abertas pelo conteúdo-cidadão. Afinal, este costuma ser geralmente cedido por seus autores a custo baixo (ou zero).
Já na opinião de Evangelista, mais do que a simpatia dos leitores, elas estão interessadas em canalizar o trabalho que era feito livremente em blogs, podcasts, wikis, entre outros meios, para os canais já constituídos: ‘Interessa a elas que o tempo e o trabalho que os leitores dedicam aos seus espaços pessoais sejam canalizados para os espaços que elas controlam, que elas dominam, que são vendidos aos seus anunciantes. A idéia é fazer com que os canais independentes não rivalizem com as publicações tradicionais, pelo contrário, passem a alimentá-las.’
Leis do jornalismo
Num contexto onde tantos indivíduos querem ser jornalistas, seja por hobby ou paixão, cabe sempre lembrar algumas regras básicas que o ofício requer. Isso vale não só para os dublês, mas para os já constituídos também:
1ª – Jornalismo é uma prática permanente, não pode ser exercida quando der vontade.
2ª – Um jornalista deve ser cético. Não pode acreditar em tudo. Pelo contrário, deve duvidar de todos.
3ª – A neutralidade deve fazer parte do exercício diário do jornalismo.
Não dá para deixar de fora também a máxima do escritor colombiano Gabriel García Márquez: ‘Ninguém que `não tenha sofrido´ a `paixão insaciável´ do jornalismo pode conceber, sequer, o que é essa palpitação sobrenatural da notícia’. Quem se achar digno de seguir esta profissão, que passe primeiro pelos bancos escolares em respeito aos colegas.
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Jornalista, diretor de redação da Agência Brasileira de Jornalismo, do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp)