No dia 24 de abril de 2015, o estudante do Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Evanilson Santos Andrade, defendeu a monografia denominada Amazônia: A nova colônia – A Trajetória de luta de Lúcio Flávio Pinto no contexto amazônico.
Em primeiro lugar, considero muito salutar que um estudante, seja de graduação ou pós-graduação de uma universidade amazônica, volte seu interesse para o estudo de autores (do passado e do presente) que contribuíram (e vêm contribuindo) para estudar a Amazônia, seja no campo da cultura, como no da sociologia, história e antropologia.
A nossa pós-graduação não pode ficar indiferente a esses autores e seus estudos devem servir de estímulo para a produção de novas ideias e conceitos, sempre aberto a debates, pois é através deles que surgem novas e criativas perspectivas que nos ajudarão pensar e repensar a realidade onde estamos inseridos, principalmente numa região como a Amazônia, onde prevalecem ideias exóticas e um imaginário que, na maioria das vezes, nada tem a ver com a diversidade desta vasta região.
Somos uma colônia dentro desse mundo globalizado? A ideia de Amazônia não terá nascido dentro de um contexto globalizado, que desarticulou e dizimou toda uma cultura milenar durante todos esses séculos? Como compreender os seus nexos econômicos, políticos e culturais? O que é estrutural, histórico, e os que são as representações que os atores sociais que aqui vivem fizeram (e fazem) de suas existências e do contexto social em que viveram e vivem nos dias de hoje? Que narrativas têm sido produzidas por seus estudiosos ao longo do tempo? É o “paraíso perdido”, como na representação euclidiana, que está à “margem da história”, ou a “ultima fronteira” colonizada e saqueada pelo capitalismo selvagem e predador nessa época de financeirização em que vivemos? Como podemos vislumbrar seu futuro?
Foi esse foi um de seus “demônios” (para usarmos uma expressão do professor Marcelo Seráfico, um dos professores arguidores) que Evanilson Santos teve de enfrentar durante o debate ocorrido no dia 24 de abril na sua defesa. “Demônios” (ou “visagens”, para usarmos um termo bem regional), diga-se de passagem, que atormentam vários pesquisadores quando enveredam pelo campo da pesquisa, tentando compreender a realidade social com toda sua complexidade, como é o caso da Amazônia.
A Amazônia objeto de pesquisa
Em primeiro lugar, considerei oportuna a escolha feita pelo pesquisador em focar a sua atenção no significado do vasto e polêmico trabalho que o jornalista e sociólogo paraense Lúcio Flávio Pinto vem desenvolvendo desde longas décadas na Amazônia e que tem repercutido nacional e internacionalmente, apesar de poucos, principalmente aqui no Amazonas, conhecerem as suas obras.
Lúcio Flávio Pinto edita quinzenalmente um pequeno jornal chamado Jornal Pessoal, que já ultrapassou mais de quinhentas edições. Nele, não só trava duros embates com as oligarquias regionais, como também já publicou vários livros, como relata Evanilson na sua dissertação, a maioria deles editados em Belém do Pará. Narra nessas publicações não somente os rastros da destruição (título de um de seus livros), mas os dilemas sociais e existenciais (muitas vezes trágicos) de ser jornalista numa região colonizada, onde a verdade e os fatos são normalmente ocultados pela pequena, mas poderosa e violenta oligarquia.
É ela que dita as ordens para a bugrada, característica, aliás, da história deste país, onde, como pensava com certo otimismo o sociólogo Francisco de Oliveira, em 2002, teríamos varrido da cena política “algumas velhas e novas oligarquias e umas quanta sinistras personalidades em si mesmo oligárquicas”. E perguntava: “Podemos esperar não voltar a ver os controladores de pequenas e vastas regiões e essas caras medonhas na política ostensiva, e no controle de bastidores do acesso a bens públicos e recursos estatais, velhas e novas raposas do patrimonialismo brasileira?”
Treze anos depois, nessa rocambolesca história brasileira, as velhas (e novas) raposas estão ai como podemos observar no atual cenário brasileiro e a Amazônia, em particular.
Lúcio Flávio faz, como ele mesmo afirma, um jornalismo na linha de tiro, enfrentando grileiros, madeireiros, intelectuais, donos de jornais, governantes, as velhas e novas raposas, assim como intelectuais e, por isso, paga um preço alto, pondo em risco a sua própria vida.
Acompanhando a sua trajetória, percebe-se que o jornalista e sociólogo faz parte de uma geração que alguns chamam de “romântica” – hoje em extinção – para a qual a existência e a consciência estão embaladas pelo desejo de mudança, pela utopia e um compromisso histórico, ético, naquele sentido de que nos falava Marx, quando afirmava nos seus anos perigosos de vida nômade de juventude que “a história chama estes de grandes homens que se enobrecem trabalhando pelo universal. A experiência louva como mais feliz aquele que tornou mais pessoas felizes. A própria religião ensina que o ideal pelo qual lutamos se sacrificou pela humanidade, e quem ousaria negar tal afirmação? Quando escolhemos uma vocação na qual podemos contribuir para a humanidade, os fardos não podem dobrar porque eles são apenas sacrifícios para todos. Então, não experimentamos nenhuma alegria pequena, limitada, egoísta, mas a nossa felicidade pertence a milhões, nossos feitos serão silenciosos, mas eternamente eficazes, e lágrimas ardentes de homens cairão sobre nossas cinzas” [Ver Karl Marx, Vida e Pensamento, David McLellan, Editora Vozes, Rio de Janeiro, Petrópolis].
O jornalista e sociólogo, nos seus 65 anos, enfrentou (e enfrenta) não só agressões e dissabores, pois quem vive na “linha do tiro” sabe os riscos a que está sujeito. Os fardos, como disse acima Marx, são pesados demais, mas trazem muitas gratificações e alegrias, mesmo que limitadas.
Lúcio Flavio Pinto é reconhecido pela sociedade brasileira e internacional. Foi várias vezes premiado aqui e no exterior. Um combatente que, no exercício de seu jornalismo, barrou a entrega de mais de 5 milhões de terras para um grileiro paranaense no seu Jornal Pessoal, quinzenário de pequeno formato, com 12 páginas, dois mil exemplares, que circula em Belém, publicando matérias que jamais sairiam na chamada grande imprensa, principalmente a local, dirigida por poucas famílias que ditam os rumos econômico, cultural e político da região.
Por sua intrepidez, Lúcio respondeu e responde no judiciário a vários processos, simplesmente por revelar os bastidores da imensa máquina publicitária movida pela família Maiorana. Já foi violentado com truculência, não só simbolicamente, mas de fato, quando um dos donos do jornal O Liberal o agrediu covardemente em um restaurante em Belém do Pará, fato que teve repercussão nacional e internacional.
Alguns escreveram teses sobre ele, adquiriu visibilidade nacional e internacional, mas não se tornou uma “celebridade”, como esses personagens criados pela mídia, ricos e famosos.
Um intelectual que produziu a si mesmo?
Tem razão Evanilson, quando, ao utilizar Foucault, afirma que os sujeitos, quando capazes de práticas que produzem a si e aos outros, não aparecem mais como identidades ou categorias subordinadas e sujeitadas a um comando apenas, principalmente quando o poder quer submetê-lo, silenciá-lo, domesticá-lo.
Lúcio Flávio Pinto – diz Evanilson – procura em suas análises subverter essa condição. A linguagem que usa, como ficou demonstrado, não se fecha em uma linguagem acadêmica ou própria das instituições privadas e públicas que exploram a Amazônia. Sua linguagem procura adentrar em um campo de problematização mais consistente que diz respeito à natureza do fato jornalístico, ou seja, na investigação das marcas dos acontecimentos, na análise de documentos em busca de uma verdade que surge do conflito social, posto que os conflitos reúnem vários interesses divergente.
Ou seja, mesmo não usando a estratégia analítica foucaultiana, eu diria que Lúcio Flávio não só não se fecha na linguagem acadêmica, sempre movida pelo desejo de verdade, mas sabe, como um bom jornalista, que as versões sempre partem de “lugares” que têm a pretensão de produzir verdades, principalmente quando elas são produzidas pelo poder, seja do Estado e suas instituições.
Só que a inspiração que alimenta as análises de Lúcio Flávio Pinto parece não ter muito a ver com o filósofo francês, mas, com o grande pensador da sociologia do conhecimento que se chamava Karl Mannheim (1894-1947), que ele leu e debateu muito ao longo de sua vida acadêmica na Escola de Sociologia Política de São Paulo. Mannheim afirmava que os intelectuais têm como tarefa realizar a “síntese das perspectivas parciais”. Dai a importância do planejamento democrático para um ordenamento racional da sociedade. Não esse planejamento autoritário, como tem sido conhecido no país, principalmente na época da ditadura, com seus planos megalomaníacos para a Amazônia, que acabaram em tragédias, como os projetos de colonização e o brutal desmatamento que prossegue até os dias de hoje.
O planejamento concebido e defendido por Lúcio Flávio está mais perto da perspectiva mannheiniana, que, como observa, a socióloga Marialice M. Foracchi, “não decorre de planos isolados da realidade social mas incide sobre conexões independentes da mesma, possibilitando, pois, uma consciência real e total do processo histórico. Portanto, significa, também, uma nova capacidade intelectual totalizadora para explicar situações não regulamentadas que perturbam o equilíbrio social”. [A autora, (falecida em 1972), escreveu sobre as obras de Karl Mannheim na coleção “Os Grandes Cientistas Sociais), coordenado por Florestan Fernandes (nº 25), editada pela Editora Ática]
Como observaram Bottomore e Outhwiate, no Dicionário do Pensamento Social, “Mannheim acreditava que a sociologia do conhecimento estava destinada a desempenhar importante papel na vida intelectual e política, sobretudo em uma época de crise, dissolução e conflito, mediante um exame sociológico das condições que deram origem a ideias, filosofias políticas, ideologias e diversos produtos culturais concorrentes. [Não podemos esquecer que Karl Mannheim viveu numa época de crise profunda na Europa. Frequentou as universidades de Berlim, Budapest, Paris e Friburgo e na Universidade de Heidelberg até 1933, quando teve que emigrar e procurar refúgio na Inglaterra, fugindo do nacional-socialismo na Alemanha nazista.] Explorou de modo persistente a ideia de que a sociologia do conhecimento é, de qualquer forma, central a toda estratégia que pretenda criar uma aproximação entre política e razão, e essa busca é o denominador comum que liga os seus vários ensaios na sociologia do conhecimento, (…) pois ela “convoca os intelectuais a cumprirem a sua vocação maior, que é a realização da síntese”.
Ele – e nisso Lúcio parece partilhar essa ideia – acreditava na razão, no planejamento como “um processo histórico-social que expressasse a realidade social em dois sentidos conjugados: sendo produto dela, é também recurso intelectual para melhor compreendê-la, resolvendo os problemas que nela se colocam”.
Quando lemos mais detidamente os artigos de Lúcio Flávio, principalmente os que tratam dos problemas amazônicos e de nosso país, de uma maneira em geral, percebe-se a preocupação do jornalista e sociólogo com o planejamento e a crítica persistente aos projetos feitos ao sabor dos improvisos (e, muitas vezes, embalados pela demagogia populista).
O pano de fundo de sua crítica à ocupação da Amazônia, por exemplo, não é por meio de jargões adjetivados, produto, como se diz aleatoriamente, do capitalismo. O seu confronto e os debates, assim como seus escritos, são construídos sempre através das observações sistemáticas sobre a realidade. Para isso, recorre aos documentos oficiais e não oficiais, o que já se produziu e o que está sendo produzido sobre o contexto em que investiga, assim como as narrativas dos sujeitos envolvidos na história, buscando os seus nexos e suas consistências lógicas, procurando, assim, novos sentidos e abordando os fenômenos sempre de forma racional.
Também acredita na ciência, na sua difusão na universidade, como foi proposta por ele nos chamados “kibutzim científico”, imaginados como meios capazes de acelerar o processo civilizatório na Amazônia, que, apesar de sua riqueza natural, não é capaz de utilizar o conhecimento científico a serviço de seu desenvolvimento, tornando-se assim subordinada aos interesses estrangeiros.
Daí as suas ácidas críticas ao modelo de desenvolvimento da Amazônia baseado no extrativismo mineral, que usa tecnologia exógena, e exporta mineral bruto para suas matrizes.
Como Mannheim, Lúcio acredita que, numa sociedade moderna e globalizada em que vivemos, o conhecimento científico e tecnológico é alavanca vital para o avanço civilizacional, dai a grande importância que dá à escola, vista por ele “como “sociedade transitória”, cujas funções primordiais se relacionam com o preparo dos indivíduos para a vida social, seja ajustando-os aos seus papéis nos grupos secundários, seja ajustando-os a melhorar às condições de convivência nos grupos primários. [Ver o comentário feitos por Foracchi nas páginas 28 a 39 no livro citado anteriormente.]
O “processo civilizatório”, para usarmos uma expressão do sociólogo Norberto Elias, do qual Mannheim esteve muito próximo, sempre foi um tema de preocupação de Lúcio Flávio, mas Evanilson, por trabalhar com outros referenciais, não compreendeu direito quando o autor afirma que “a Amazônia comporta todos os tipos de interesses, dos mais nobres, dos reais aos imaginados, dos pessoais aos corporativos e governáveis. Por isso é um tema de civilização (…) que serve de marco de referência para os graus de civilização”, que, para Lúcio, significa maior racionalidade, a criação de uma cultura que saia do senso comum, que gere “solidariedade entre os humanos, a despeito de suas enormes – e às vezes brutais – diferenças”.
O jornalismo crítico: os embates com a lei
Tem razão Evanilson ao constatar que Lúcio, ao se defrontar com o direito, não o renega. Na verdade, ele não nega a instituição jurídica, produto, como ele certamente diria, parte do processo civilizatório, da secularização da cultura e uma forma de resolver os conflitos.
Quando pressionando pelas difíceis e problemáticas instâncias jurídicas com seus complexos códigos, Lúcio tem como preocupação não só fundamentar a sua defesa e penetrar nas suas entranhas extremamente complexas e cheias de labirintos e perceber as suas contradições, o uso leviano que se faz dele, devido a certas interpretações que se pretendem verdadeiras, principalmente quando entram em cena interesses privados, que usam as leis em função de seus próprios interesses, como é costume nesse país do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
Há inúmeros casos por ele narrado nos quais revela como a lei é burlada. Isso fica evidente no seu livro chamado Grileiros mais juízes – Ameaças às terras do Pará, onde mostra a situação kafkiana nos tribunais, a justiça como cúmplice e inúmeras mazelas, essas “anomalias” que envergonham a justiça paraense e a brasileira de uma maneira em geral.
Apesar dos atropelos e do preço que o jornalista paga por exercer com dignidade e ética o seu jornalismo na região, o valor de seu embate não se deve somente ao seu heroísmo e a demonstração evidente da ignorância e truculência das classes dominantes locais, cujos interesses se entrelaçam com grupos nacionais e internacionais. Seus inúmeros artigos e livros têm o mérito de nos apresentar, sem rodeios, a versão não oficial dos fatos que compõe a história contemporânea da Amazônia.
O que o Lúcio faz com maestria, também é trabalhar os fatos, checando-os, testemunhando-os, fazendo uma espécie de cartografia dessa guerra, seus atores, o desenrolar dos acontecimentos, desmontando evidências e fazendo aquilo que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamava de “desconfiança epistemológica”.
Foram inúmeros os livros que Lúcio Flávio Pinto escreveu sobre a Amazônia. Poderíamos citar alguns, como O Jornalismo na Linha do Tiro (De grileiros, madeireiros, políticos, empresários, intelectuais & poderosos em geral), Editora Jornal Pessoal; Carajás, o Ataque ao Coração da Amazônia, Editora Marco Zero & Studio Alfa Fotoletra e Editora (Coleção Nossos Dias, 1981); Contra o Poder (20 anos de Jornal Pessoal: Uma paixão amazônica), Edição do Autor, Belém, 2007; Amazônia Sangrada (de FHC a Lula), Edição Jornal Pessoal, Belém, 2008; Grileiros mais juízes – Ameaças às terras do Pará, Editora O Estado do Tapajós, Santarém, 2012; A Agressão – Imprensa e violência na Amazônia, Edição Jornal Pessoal, 2008; A História Censurada, Edição Jornal Pessoal, Belém, 2009; Memória do Cotidiano, (várias edições, onde relata fatos do passado da cidade paraense).
Lúcio Flávio Pinto publica com certa regularidade o Dossiê Jornal Pessoal, no qual reúne artigos sobre determinados temas específicos relativos à política no Pará (nº 7), a Cabanagem (nº 9), a imprensa no Pará (nº 8), assim como outros que escreveu sobre diversos assuntos. Sobre o mesmo autor e o tipo de jornalismo que desenvolve na região já foram escritas muitas teses, como foi citado por Evanilson Santos na sua dissertação.
O sociólogo paulista José de Sousa Martins, ao prefaciar um de seus livros, publicado pela Editora Hucitec, dizia com propriedade que Lúcio Flávio fazia um jornalismo sociológico que se diferenciava do jornalismo comum da grande imprensa.
Não precisamos de muito esforço para perceber a veracidade dessa constatação. Lúcio nos oferece dados aos borbotões para compreendermos a complexa trama tecida entre o Estado e os interesses privados na região; os crimes de encomenda e seus mandantes, como o excelente trabalho jornalístico sobre o assassinato do ex-deputado pelo PC do B, Paulo Fontelles, em uma rodovia nas proximidades de Belém, matéria que recebeu uma premiação nacional de jornalismo.
No Guerra Amazônica faz denúncias sérias, como dos presos que eram levados para “interrogatórios” de barco, à noite, para a Ilha de Cotijuba, em frente a Belém. Em outro momento relata com detalhes o assassinato de um “colunável” local que usava sua empresa de câmbio e turismo como fachada para o seu principal negócio: a cobertura do narcotráfico internacional, através do qual intermediou, em 199l, a “passagem de 100 milhões de dólares em cocaína para o exterior”.
Lúcio desvenda o mundo social da classe dominante local, um mundo aparentemente limpo que ocultava (e oculta) o submundo delinquente, com tentáculos subindo aos patamares do poder e da chamada alta sociedade.
Isso foi noticiado em uma época em que pouco se falava de lavagem de dinheiro nesse rendoso e próspero comércio ilegal de cocaína, cuja rota principal, como se sabe, passa hoje pela Amazônia.
Os seus livros, também, tornam evidentes, através dos dados que oferece, como se dá na vida real a relação entre o “Brasil legal”, que a grande imprensa, na maioria das vezes, esconde, e o “Brasil real”, esse que se constrói nos bastidores das grandes negociatas, na delinquência, onde o público e o privado se mesclam nesse submundo que movimenta bilhões de dólares e alimenta uma parcela da elite dominante local nas suas relações simbióticas com grandes grupos nacionais e internacionais.
O sociólogo ou historiador que um dia desejar escrever sobre a história da riqueza da elite dominante local não pode desconhecer a imensa quantidade de fatos, suficientemente checados e publicados, que esse jornalista nos oferece.
A delinquência que alimenta a história dessa riqueza regional, como o próprio autor nos diz, tem muitos “tentáculos” que nunca saberíamos pela “história oficial”, como, por exemplo, o rombo equivalente a 30 milhões de dólares que um ex-presidente do Banco da Amazônia, Augusto Barreira Pereira, deu na instituição, sob a convivência e o silêncio da grande imprensa local.
Esses “tentáculos”, essas ramificações, são apoiados em muitas outras denúncias e compõem um grande painel fartamente documentado com fatos, números e personagens. O mais curioso (e trágico) é o desconhecimento e o silêncio cúmplice de amplos setores da sociedade local, o anestesiamento da consciência política, mesmo daqueles que têm conhecimento dos fatos narrados pelo autor.
Lúcio Flávio não é o Asterix na sociedade local, como o caricaturou um jornalista paraense residindo em São Paulo. Sua perseguição é o ônus que paga por ir contra a corrente dessa cultura da delinquência, que, paradoxalmente, adquiriu formas mortíferas mesmo nesse período de aparente democracia em que vivemos. A gratidão e o reconhecimento de seu trabalho não ocorrem nos salões por onde circulam os delinquentes de colarinho branco, com sua jagunçada pronta para qualquer “serviço” de seus mandantes.
O que o torna uma figura ímpar no jornalismo brasileiro é sua capacidade de indignação, aliada ao seu compromisso ético inquebrantável de ser jornalista e sociólogo, mesmo no meio da promiscuidade da classe dominante, o que não é uma tarefa, diga-se de passagem, para qualquer um.
Se a sua inspiração é o jornalismo desenvolvido pelo americano I. F. Stone, no semanário I. F. Stone’s Weekley, que publicava desde 1952, “um jornalzinho feio e pobre”, mas lido até na Casa Branca, que também escrevia uma história diferente do “enredo oficial”, tudo bem, esse é seu ideal do que é ser jornalista.
Mas só esse modelo de Stone não caracteriza Lúcio nessa Guerra Amazônica. A América do Norte é radicalmente diferente de nossa América Latina, onde jamais um presidente da república lê um jornalzinho “feio e sujo”. Os “coronéis”, sejam os de barranco, os novos ricos metidos em jogadas escandalosas e roubando os cofres públicos, os caciques formadores de opinião, talvez façam o contrário da classe dominante americana: os jornaizinhos “feios sujos e malvados” têm um destino trágico: vão direito para a latrina ou vão caçar quem comete essa ousadia, como fazem os Maioranas em Belém do Pará.
Não estão interessados no conhecimento, no debate livre, ideal que a sociedade moderna e burguesa parecia idolatrar. São iconoclastas e predadores não só na Amazônia, onde a guerra é cruel, mas em todas as regiões do Brasil, onde o iluminismo não chegou, pois, como dizia a filósofa Olgária Matos, o tempo da onça não está longe daqui.
O Brasil não conhece o Brasil, muito menos a Amazônia
Quando fui aluno de graduação em Ciências Sociais, na PUC de São Paulo, lá pelos finais dos anos 1970, conheci um sociólogo que anda meio sumido. Recordo-me que de vez em quando, durante as férias, ele se embrenhava pelos “fundões” do Brasil.
Lúcio conheceu esse professor, que se chama Luiz Alfredo Galvão, que também ministrou cursos na Faculdade de Sociologia e Política, onde Lúcio estudou. Ele conhecia o marxismo e o leninismo ortodoxo, principalmente o da III Internacional, versão PCB, que chegou ao Brasil e o desconstruía (para irritação dos esquerdistas dogmáticos) idolatrado na época. Seus argumentos eram bem fundamentados e provocativos, e gostava sempre de dizer que sociólogo e antropólogo não conhecem o Brasil, nem como turista nem como estudiosos de sua sociedade. Enquanto tomavam como modelo a revolução russa e os escritos de Lênin desse período, desconheciam por completo o solo onde estavam pisando.
Lúcio revela num de seus livros o desejo quando ainda estudava na Faculdade de Sociologia e Política: estudar os intelectuais de 20 e 30 chamados de direita: Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Lourival Fontes. Todos atentos a Nelson Werneck Sodré, Caio Prado Junior, Sérgio Buarque de Holanda (…), incluindo Gilberto Freyre, que conheciam o Brasil melhor dos que os de esquerda. Os pensadores conservadores, como Paulo Prado, conheciam o Brasil melhor que os de esquerda.
Ele já compreendia o valor do debate cultural como oxigenador da democracia, tão presente no pensamento mannheiniano. Influenciado por seus mestres menos ortodoxos, sabia, também, que o sociólogo, sem o contato com o mundo social em que está inserido, torna-se um acadêmico burocrático, estéril (para não dizer inútil), principalmente hoje, em que as universidades transformaram-se em verdadeiros “condomínios” e “muros”, segundo a denominação de Chistian Ingo Lenz Dunker, no seu recente e polêmico livro chamado Mal-Estar. Sofrimento e Sintoma, editado pela Boitempo. Ele nos mostra como a vida brasileira está governada por uma razão sistêmica tutelada por tecnoespecialistas, a quem ele chama de síndicos, ou gestores, mais preocupados com a burocracia e os currículos Lattes do que o debate e a vida cultural.
Creio que essa insatisfação com a sociologia de gabinete, copiada, muitas vezes, de modelos teóricos de outros continentes, não daria conta de conhecer a realidade do país e da região onde estava inserido, por mais sofisticada que essas teorias se apresentassem.
Como dizia o esquecido professor Luis Alfredo Galvão na época: “não se faz sociologia sem dados empíricos, sem um conhecimento desse Brasil. Temos que tirar a bunda das cadeiras e conhecer esse país”.
Suponho, portanto, que esse período em São Paulo, em que Lúcio transitou com desenvoltura entre a sociologia e o jornalismo, e o contato com o trabalho de Stone, foram elementos fundamentais para que decidisse mergulhar na realidade amazônica, tarefa que desenvolve com grande inteligência e desenvoltura excepcional. Sua ousadia, ou, para alguns, a sua loucura, tem método, como dizia o poeta inglês.
Ele revela isso claramente na página 26 em um de seus livros, quando de forma cáustica nos diz:
“O brasileiro continua a viver como caranguejo, arranhando o litoral, para usar a imagem quinhentista. É sempre o pensamento do litoral voltado para fora do Brasil. O Brasil não conhece o Brasil. A penetração para o Oeste, mais destrói do que conscientiza. A descoberta do Brasil não passa de movimentos espasmódicos e cheio de exotismo. É o fundador, o descobridor querendo que a paisagem original se transforme de acordo com sua visão de colonizador. Isso me levou a desistir da grande imprensa, que, segundo ele, é muito pior do que na época do regime militar”.
É admirável o trabalho que Lúcio Flávio Pinto faz na Amazônia. Conheço poucas regiões onde existam jornalistas dessa extirpe e com tamanha ousadia e inteligência. Se em cada lugar do país existisse jornalista como ele, teríamos parte importante da história não oficial do Brasil contada e perceberíamos com mais clareza como é tecida a dominação de classe, sem generalizações apressadas e teorias fora do lugar.
Vivo atualmente no Amazonas, apesar de ser paraense, onde os meios de comunicação e seus poderosos donos controlam as informações sobre o Estado. Imagino a falta que faz um jornalista com o perfil desse sociólogo-jornalista. A história dessas duas regiões ainda está para ser contada. O paraense tem sorte, pois tem uma quantidade de dados em suas mãos e trata de escrevê-la, pois assunto não falta. Um outsider na imprensa amazonense faz muita falta e, por isso, dormitamos no silêncio cúmplice de governos que se dizem democráticos no meio de uma imensa miséria rural e urbana.
Os dois irmãos do Norte, apesar de uma besta e preconceituosa rivalidade, possuem histórias similares. Somos caboclos descendentes de índios, somos, como Lúcio, filhos de migrantes tangidos pela seca em busca de um eldorado que está sendo devassado.
O tempo dirá que destino teremos: o eterno subdesenvolvimento, a eterna colônia, que Evanilson chamou na sua dissertação de “mundial”?
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Benedito Carvalho Filho é sociólogo, professor da Universidade Federal do Amazonas