O texto de cobertura da guerra antiterrorista construído pela revista Veja apresenta-se, em seu plano composicional, como um complexo sistema semiótico. Sendo o relato de uma guerra amplamente midiatizada, com profusão de imagens, esse texto é portador de uma rica intertextualidade entre o verbal e o visual, verbal e extraverbal, mas também entre história e memória. O relato é predominantemente imagético, sendo a superfície gráfica coberta de apenas 23% de texto verbal (Cf. Dorneles, 2004: p.71). Assim, a enunciação pela imagem, em interação com o texto verbal, torna-se um importantíssimo elemento de análise, o qual ora se desdobra como complemento do verbal, ora como ilustração, ora como uma antecipação do sentido pretendido no texto verbal.
O contexto imediato em que se encontra essa reportagem de Veja se estende da edição de 22 de janeiro a 16 de abril de 2003. A escolha da cobertura da guerra norte-americana contra o regime de Saddam Hussein, como um episódio da guerra antiterrorista, deve-se ao fato de que essa guerra foi objeto de ampla discussão na esfera pública, tendo uma importante participação da imprensa mundial, e que produziu por isso uma variedade de textos. A decisão do presidente norte-americano George W. Bush de depor Saddam com ou sem apoio das Nações Unidas transformou a guerra num ataque não só ao Iraque, mas também à ONU, à Otan e à União Européia.
Conceitos do discurso
Diante das expectativas do desdobramento do conflito, houve manifestações contrárias em diversas partes do mundo durante o mês de fevereiro de 2003. Isso transformou especialmente a terceira e quarta semanas daquele mês num momento histórico de grande relevância, em que a força das ruas buscou interferir no confronto político que separava os EUA e seus aliados do mundo árabe fundamentalista e dos povos contrários ao recurso militar americano na solução dos conflitos globais. O relato jornalístico da guerra é um registro de como esse conflito eventualmente será gravado na memória coletiva.
O relato da guerra precisa ser desmontado. É preciso identificar os elementos do contexto extraverbal e nomear os sistemas culturais e as memórias que o fundamentam, para identificação de seu processo de produção de sentido. De onde Veja retira as imagens e os signos de seu enunciado?
Ao falar do conflito em termos de uma luta do bem contra o mal, retratando os soldados norte-americanos como libertadores e heróis, com que textos da cultura a revista dialoga? Quais são os sistemas da memória coletiva ocidental que alimentam esse relato? Como Veja faz para transmitir a mensagem que transmite acerca da guerra? Quais são ainda as conseqüências culturais e históricas da posição hierárquica privilegiada ocupada na memória coletiva por esse discurso imperialista norte-americano?
Para analisar os processos de processos de produção de sentido, recorro aos conceitos de gêneros do discurso, dialogismo, contexto extraverbal, enunciado e enunciação de Mikhail Bakhtin e seu círculo.
Contexto extraverbal
Para Bakhtin, cada campo da atividade humana no uso da linguagem elabora seus ‘tipos relativamente estáveis de enunciados’, os quais ele chama de ‘gêneros do discurso’ (2003: p.262). A diversidade dos gêneros é praticamente infinita já que são inesgotáveis as situações e os campos da atividade humana no uso da linguagem. Bakhtin classifica dois tipos básicos de gêneros, os primários (ou simples), próprios da informalidade do cotidiano; e os secundários, estes mais complexos, ideológicos (2003: p. 264), elaborados ‘nas condições de um convívio cultural mais complexo e relativamente muito desenvolvido e organizado’.
Estes gêneros são predominantemente escritos, de natureza artística, científica e sócio-política, e incluem romances, drama, pesquisas científicas e gêneros publicísticos, entre outros (2003: p.263), além do jornalístico. Os gêneros simples e os secundários, no processo de sua formação, incorporam-se e reelaboram-se mutuamente. Quando um gênero primário é integrado num secundário, aquele adquire novo caráter, perdendo o vínculo imediato com a realidade de onde veio. A natureza do enunciado, seu tema, seu estilo e sua composição são fatores determinantes para sua compreensão enquanto discurso. Em outras palavras, o gênero do texto participa diretamente na definição de seu sentido. ‘Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem’ (2003: p.268).
Importante para esta análise é também o conceito de enunciado e enunciado concreto de Voloshinov e Bakhtin. Eles propuseram uma análise textual capaz de levar em conta não só as questões históricas relacionadas a uma obra, mas também os aspectos artísticos e formais, como partes indissociáveis do todo, na definição de seu significado, uma vez que ‘todos os produtos da criatividade humana nascem na e para a sociedade humana’ (1976: p.02).
Na busca de uma metodologia que integre a realidade social concreta ao discurso verbal e que possa definir as relações entre o discurso verbal e as condições em que é produzido, os autores russos definem como ‘contexto extraverbal’ o conjunto de elementos contextuais indispensáveis ao entendimento de toda comunicação verbal.
Articulação sócio-histórica
O contexto extraverbal do enunciado compreende três elementos: (1) o horizonte espacial comum aos interlocutores, a unidade do visível; (2) o conhecimento e a compreensão comum entre os interlocutores; e (3) a avaliação comum desses interlocutores acerca da situação que os envolve.
Estes elementos definem aquilo que os interlocutores vêem, sabem e avaliam em conjunto. O enunciado verbal depende desses elementos. Estes lhe dão sustentação, mas eles não aparecem, não são dados verbalmente. Eles constituem a enunciação, que se ‘integra ao enunciado como uma parte constitutiva essencial da estrutura de sua significação’ (cf. Voloshinov e Bakhtin, 1976: p.05). O que caracteriza os enunciados concretos ‘consiste precisamente no fato de que eles estabelecem uma miríade de conexões com o contexto extraverbal da vida, e, uma vez, separados deste contexto, perdem quase toda a sua significação’ (ibidem, p. 06).
Beth Brait e Roseneide de Melo, comentando o conceito de enunciado, enunciado concreto e enunciação, de Bakhtin e seu círculo, destacam que o sentido de enunciado e enunciação só é possível na ‘articulação’ com outros termos, categorias e noções da obra de Bakhtin, entre eles signo ideológico, gêneros discursivos, interação, texto, discurso, dialogismo, polifonia, tema e significação e esfera de produção, entre outros (cf. Brait e Melo, 2005: p.62).
À luz do princípio do dialogismo de Bakhtin, o texto só articula sentidos a partir de sua relação com outros elementos, sejam as relações do enunciado com a enunciação, com o contexto sócio-histórico que o engendra, sejam as relações entre os interlocutores, as relações do texto com outros textos, ‘que se entrecruzam, se completam’ (cf. Barros, 1997: p.27). Estes outros textos podem ser textos da memória que se entrecruzam no texto ou mesmo textos do contexto imediato, como os textos das páginas anteriores ou posteriores, onde certo texto se acha publicado numa edição jornalística.
Vermelho, elemento textual
A edição da cobertura da guerra antiterrorista considerada neste estudo é a de 26 de fevereiro de 2003, na qual o tema da guerra iminente foi matéria de capa, como em várias outras edições naquele contexto. Essa capa consiste de uma foto do presidente norte-americano, com expressão de tensão, durante discurso, atrás do selo da Presidência dos EUA, tendo ao lado a bandeira norte-americana desfocada, bem como o fundo da imagem. Entre a cabeça de Bush e a bandeira se inseriu a imagem de um tomate vermelho esborrachado, como um signo da rejeição e da agressividade das manifestações populares.
A esse conjunto segue-se a leitura do texto: ‘Por que Bush enfurece o mundo: manifestações globais igualam o presidente norte-americano ao ditador Saddam Hussein e ressurge nas ruas o antiamericanismo que faz dos EUA o vilão do planeta’. Dentro da revista, a matéria se desdobra em três textos principais, abertos com as respectivas chamadas: ‘Por que eles odeiam Bush?’, embaixo das fotos de manifestantes em Paris, Tóquio, Seul e Moscou; ‘Quem é o inimigo?’, entre as fotos de Bush e Saddam; e ‘O que vem depois de Saddam’, ao lado de ampla foto de um pobre comércio de rua em Bagdá, sobre a perspectiva da reconstrução do país no pós-guerra. Todas as páginas desse conjunto estão interconectadas pelo selo do tomate vermelho como se tivesse sido arremessado contra uma parede.
Além de a chamada que abre o conjunto apresentar uma interrogação (‘Por que eles odeiam Bush?’), que já sugere uma contradição por sua intertextualidade com as imagens dos manifestantes, o texto se inicia com a seguinte afirmação: ‘Sentimento em geral inconseqüente, o antiamericanismo ressurgiu na semana passada como uma força política global’.
Nessa edição de 26 de fevereiro de 2003, três matérias sobre a iminente guerra contra o regime de Saddam Hussein tratam as manifestações pela paz em todo o mundo e consideram essas manifestações populares como uma postura ingênua diante dos motivos dos conflitos entre os EUA e os regimes totalitários. Elas são seguidas de outras três matérias sobre temas diferentes, mas que mantêm entre si certas interações semióticas ou dialógicas. A primeira, com a chamada ‘Fome no socialismo’, sobre a miséria no governo de Kim Jong II, na Coréia do Norte; a segunda, com o título ‘Caça às bruxas’, sobre pressões de Hugo Chávez aos opositores a seu governo na Venezuela; e a terceira, com a chamada ‘O rei da cocada preta’, sobre o ‘poder imperial’ de ACM na Bahia. Essas seis matérias estão interligadas por alguns elementos textuais importantes: a cor vermelha do tomate, aplicado como selo das matérias sobre as manifestações populares contra a guerra de Bush, o vermelho do socialismo coreano estampado principalmente nas bandeiras, e o vermelho do chapéu de Chávez.
Vietnã, ontem e hoje
A cor vermelha aqui tem função textual, discursiva, integrando-se aos demais elementos e participando do processo de produção de sentido. Além do vermelho, as matérias aproximam Iraque, Coréia e Venezuela ao mostrar esses regimes sob o manto da miséria, estampada em imagens desses países, e da oposição aos EUA, pela qual os regimes políticos se aproximam dos manifestantes contra a guerra.
A intertextualidade entre as matérias ainda é reforçada por menções ao populismo desses regimes políticos, incluindo o ‘império’ de ACM, pelas imagens e estátuas públicas de Saddam, Kim Jong II e Luís Eduardo Magalhães (o filho de ACM), bem como pela opulência sugerida pelas imagens dos palácios e propriedades dos personagens em questão. A aproximação feita entre Saddam, Kim Jong II, Chávez, ACM e os manifestantes em Paris, Tóquio, Seul e Moscou, em contraste com os EUA, é um importante dado dialógico no processo de construção de sentido nesse texto da guerra.
Ao longo dos textos que abordam a guerra contra o Iraque de Saddam, tanto durante seus preparativos e discussão pública, quanto ao final do ataque principal, que durou algumas semanas, importantes memórias históricas são instauradas no texto verbal bem como no visual. Duas fotos do Vietnã ocupam o meio da segunda página dupla da matéria ‘Por que eles odeiam Bush?’ (26 fev. 2003, p. 38-39). A primeira em preto-e-branco mostra um cena de horror e sofrimento da guerra norte-americana contra os vietnamitas e a segunda, uma visão noturna de uma cidade vietnamita moderna, com a legenda ‘Vietnã ontem e hoje: há trinta anos o exército vietnamita lutou uma guerra sangrenta contra as forças armadas dos EUA. Hoje os vietnamitas se esforçam ao máximo para copiar o modelo econômico e o estilo de vida dos americanos’.
Memória da II Guerra
Diversas referências verbais e visuais são feitas aos regimes comunista, nazista, fascista, a personagens como Hitler, em todo o conjunto das matérias que tratam da guerra, no período em questão. Na página 39, da edição de 26 de fevereiro de 2003, falando sobre o ‘paradoxo’ do ódio global a Bush, a revista afirma categoricamente: ‘Comparar Bush a Saddam, concluindo que o americano é o Hitler da dupla, traduz má-fé ou ignorância’. Esse texto foi concluído com citações a Condoleezza Rice, conselheira de Segurança Nacional da Casa Branca, e ao filósofo francês Bernard-Henri Lévy, que consideraram Saddam uma ‘entidade do mal’, e o antiamericanismo, um fruto do ódio contra os Estados Unidos, próprio de totalitarismos como o ‘fascismo, o comunismo e o islamismo’ (26 fev. 2003, p. 40).
Na semana em que os norte-americanos derrubaram a principal estátua do ditador em Bagdá, cobrindo seu rosto com a bandeira dos EUA, Veja estampou numa matéria a chamada ‘Onde há democracia não há guerra’, sobre uma página dupla de fundo preto com uma enorme foto de Hitler. Logo abaixo do título, o texto se inicia com estas palavras: ‘Fascismo, comunismo, nazismo e todos os outros ismos totalitários produziram ao longo dos tempos algumas das mais pavorosas cenas de intolerância perpetradas pelo homem’.
Duas semanas antes, na matéria ‘Bush diz que o jogo acabou’, a revista previa o final da guerra nestes termos: ‘É possível que em poucos dias soldados da 101ª Divisão Aerotransportada estejam em Bagdá, com Saddam Hussein morto ou desaparecido, seu regime desmanchado e multidões de iraquianos saudando os libertadores’ (12 fev. 2003, p. 46, grifo do autor). Esse termo instaura claramente a memória da II Guerra Mundial, quando os EUA libertaram a Europa dos totalitarismos.
Tradição messiânica
Na matéria ‘Quem é o inimigo da dupla?’, a revista afirma que ‘devem torcer para a derrocada do fanatismo islâmico todos aqueles que não aceitam colocar em risco valores como democracia e liberdade de expressão’ (26 fev. 2003, p. 44). Na matéria ‘O que vem depois de Saddam’, mesma edição, p. 48, a revista fala da guerra como ‘uma oportunidade de espalhar o vírus da democracia numa região dominada por tiranias corruptas’, contrastando o ‘vírus da democracia’ aos vírus das supostas armas biológicas de Saddam.
A memória da II Guerra ainda é remontada nos termos usados por Donald Rumsfeld, então secretário de Defesa dos EUA, para se referir à Europa, os quais são reproduzidos por Veja: ‘Velha Europa’, em referência à Alemanha, França e Rússia, uma Europa ‘decadente’ que padeceu sob os regimes autoritários de Hitler e Stalin; e ainda ‘Nova Europa’, em referência à Inglaterra, Espanha, Itália, República Tcheca, Polônia, Romênia e Bulgária, uma Europa renovada pela aliança e o apoio às intenções belicistas de Bush contra Saddam e qualquer outro totalitarismo.
As construções ‘Velha Europa’ e ‘Nova Europa’ instauram ainda outra memória, na verdade uma tradição messiânica acerca do papel dos Estados Unidos como um instrumento ‘nomeado’ por Deus para a renovação do mundo, inclusive da Europa, o que para Rumsfeld estaria em curso durante o embate da guerra a Saddam, considerado um ‘anticristo’. Essa memória retoma a própria fundação da nação norte-americana, os primórdios dos pais peregrinos, que criam estar fundando o ‘Novo Mundo’, ao cruzar o Atlântico, como o povo eleito de Deus (cf. Bandeira, 2006: p.27-28).
A elite formadora de opinião
Por meio da imprensa, as afirmações de chefes do governo norte-americano também instauram memórias nesse relato da guerra. Condoleezza Rice chama Saddam Hussein de ‘entidade do mal’ (26 fev. 2003, p. 40). Bush pretende fazer a guerra por que se diz chamado ‘por Deus’ para preparar os caminhos da ‘volta do Messias’, cuja vinda ‘está próxima’ (p. 44). Além da memória das guerras aos totalitarismos, os chefes norte-americanos também nomeiam em seu benefício a noção de um mundo dividido entre o bem e o mal, no qual lhes cabe o papel de controlar o mal, os totalitarismos e fanatismos.
De forma constante e bem clara se nomeia a memória da II Guerra Mundial, produzindo o sentido de que os que faziam as manifestações contra a guerra não podiam se esquecer de que foram os norte-americanos que livraram a Europa dos regimes que produzem guerras e que, portanto, merecem agora o apoio global na guerra iminente. As memórias instauradas produzem ainda o sentido de que aqueles que se uniam às manifestações contrárias à guerra, na verdade estavam se unindo aos próprios regimes autoritários e isso é reforçado pela questão que abre a matéria ‘Por que eles odeiam Bush?’, sendo o presidente norte-americano aí colocado em lugar do país que representa.
Na consideração sobre o enunciado feito acerca desta guerra por Veja, é preciso procurar pelos elementos que compõem seu contexto extraverbal: (1) quais os interlocutores desse enunciado; (2) qual é o horizonte espacial comum a eles, ou seja, a unidade do visível que os cerca; (3) qual é o conhecimento e a compreensão comum entre eles acerca dos fatos em questão; e (4) qual é a avaliação comum desses interlocutores acerca da guerra iminente (Cf. VOLOSHINOV e BAKHTIN). Veja não se dirige ao povo comum, à população como um todo.
Por isso mesmo chama de ‘inconseqüente’ o sentimento que move as multidões para as ruas na tentativa de impedir a guerra. A revista pretende ou fala de fato a uma elite, a formadores da opinião pública, com quem ela procura criar uma relação de interação e confiabilidade, mediada pelos textos da revista e das cartas publicadas na respectiva seção. Esses dois interlocutores (a revista, composta por sua equipe editorial e por seus proprietários, e formadores da opinião pública brasileira, entre eles políticos, executivos, professores, empregadores, profissionais liberais, entre outros) compartilham um horizonte espacial comum que é o Brasil.
Texto editorialístico
Tanto a revista quanto seu público sabe da iminência da guerra. Os interlocutores compartilham conhecimentos comuns acerca da guerra. No relato da guerra, Veja não presta informações.
As informações já foram dadas nos jornais diários e online. Nesse caso, o texto de Veja, baseado em agências e na informação corrente da semana, não levanta dados, não reflete pesquisa. Apenas julga e avalia, em textos editorialísticos, os fatos em questão. A avaliação comum que fazem os interlocutores é de que a nação brasileira, a opinião pública, pode manifestar-se contrariamente à guerra ou não, pode engrossar o coro das manifestações antiamericanas, eventualmente acirrando o espírito retaliador norte-americano, como este se manifestou contra os países europeus do grupo da ‘Velha Europa’.
Nessa base, o que Veja pretende ao tratar da guerra é estabelecer uma plataforma de análise e julgamento, direcionando a opinião, por meio de seus formadores, os leitores da revista. O periódico se propõe a dizer o que a opinião pública deve pensar dos fatos colocados acerca da guerra. Por isso mesmo, o texto de Veja, embora seja de gênero jornalístico, não se apresenta como um texto informativo, narrativo, mas editorialístico, dissertativo.
Interesses ocultos
A plataforma de análise construída nos textos da revista é a de um mundo divido entre duas entidades contrastantes, e pode ser nomeada pelas oposições democracia/ditadura, liberdade/totalitarismo, novo/velho, riqueza/miséria, bem/mal, libertador/vilão, cristo/anticristo, Deus/Diabo.
A consciência ou a cosmovisão jornalística de Veja, portanto, concebe a guerra em termos em de um mundo dividido rigidamente entre o bem e o mal, em aberto conflito. Estão do lado do mal os regimes totalitários claramente nomeados como nazismo, fascismo, comunismo e fundamentalismo islâmico (nessa ordem) e as nações a eles relacionadas e também mencionadas claramente, como Alemanha, França, Coréia, Rússia, Venezuela. Do lado do bem estão os Estados Unidos e todos aqueles que os seguem ou apóiam. O lado do bem cumpre um papel dentro do conflito cósmico, no sentido de buscar a renovação do mundo, a evolução da história, mediante a libertação dos povos.
O lado do mal resiste a este projeto tentando manter os regimes totalitários, a barbárie e a miséria. Os manifestantes, que são representados como inimigos de Bush, portanto, se aliam ao lado negro do conflito, tornando-se numa oposição ao projeto de libertação do mundo, conduzido pelos Estados Unidos. A constante alusão à memória da II Guerra Mundial, Guerra Fria e Vietnã é uma maneira de dizer que todas as guerras norte-americanas são o desdobramento desse conflito histórico em benefício da libertação e da redenção do mundo, um verdadeiro Armagedom.
As interações dialógicas construídas ao longo dos textos sugerem uma ironia e um paradoxo, colocados em resposta à questão levantada pela edição analisada: ‘Por que eles odeiam Bush?’ Como odiar alguém que, na condição de quase mártir, promove e luta pela liberdade do mundo? A avaliação feita das manifestações populares deve ser entendida dentro desse panorama. Veja chama os manifestantes de ingênuos por considerar que são incapazes de entender o claro sentido da guerra, como caminho natural da evolução e do bem do planeta.
Ao construir tal visão de mundo para cobrir o iminente conflito entre Estados Unidos e Iraque, o relato de Veja praticamente oculta os interesses políticos globais norte-americanos, a luta por petróleo e por expansão capitalista e de mercado, sob a sombra projetada pela luta cósmica entre o bem e o mal.
Referências bibliográficas
BARROS, D. L. P. ‘Contribuições de Bakhtin às teorias do discurso’. In: BRAIT, B. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Unicamp, 1997.
BANDEIRA, L. A. M.Formação do Império Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
BAKHTIN, M. ‘Os gêneros do discurso’. In: BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 261-306.
VOLOSHINOV, V. N. ‘O discurso na vida e discurso na arte’, Revista Zvezda, número 6, 1926. Tradução Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza.
BRAIT, B.; MELO, R. ‘Enunciado/enunciado concreto/enunciação’. In: BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. p. 61-77.
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Doutorando pela ECA/USP e professor de Comunicação Social da UNASP