A desregulamentação da profissão de jornalista – que agora, a rigor, virou ofício – suscitou uma onda de protestos, queixas e profundas lamentações, pouco antes vista em se tratando de questões profissionais. Talvez tenha sido a primeira vez que o STF tenha colocado uma profissão no banco dos réus e a deixado sem quaisquer diretrizes para seu exercício, depois de décadas regulamentada.
Ainda que tenha estudado o tema da regulamentação por mais de duas décadas e seja formado em Jornalismo pela histórica Cásper Líbero, seja professor dessa habilitação em faculdades privadas, além de ter pós-graduação lato sensu e mestrado em Comunicação pela ECA/USP, confesso que não consigo ter opinião formada sobre esse tema complexo e espinhoso da obrigatoriedade do diploma. Por enquanto, costumo dizer que sou a favor do diploma como jornalista e contra como leitor, ouvinte, telespectador e internauta.
Essa dúvida persiste principalmente pelo fato de países com imprensa avançada e entidades representativas dos jornalistas mais respeitadas no mundo serem contra a exigência. Se levarmos ao pé da letra ainda algumas disposições como a da Declaração dos Direitos Humanos, a obrigatoriedade do diploma fica quase indefensável:
Artigo 19 – ‘Todo homem tem direito à liberdade de opinião e de expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios, independente de fronteiras.’
A notícia é superficial
Assim como a carta da ONU, há também posições contra a exigência do diploma da ONG Repórteres Sem Fronteiras, da Sociedade Interamericana de Imprensa e da Fundación Nuevo Periodismo, dirigida pelo jornalista e Nobel de Literatura Gabriel García Márquez. Muitas profissões de igual valor social, como as da área de publicidade, computação e informática, edição/produção de livros, design, artes plásticas, hotelaria, turismo, cinematografia e comércio exterior não exigem diploma de qualquer nível para seu exercício, ainda que tenham cursos superiores. Mas há outras, como a de corretagem de imóveis, prótese dentária, bioblioteconomia/documentação e enfermagem, em que a certificação técnica ou superior é imprescindível. No Brasil, como quase sempre, o problema é mais embaixo e a regulamentação ou não é sempre um difícil dilema.
O jornalismo é um trabalho que está se sofisticando tanto na forma como no conteúdo e que cada vez mais exige conhecimento de novas tecnologias da informação, da ética e do vernáculo, além da compreensão da cultura geral e de humanidades. Sendo uma profissão transdisciplinar, exige que o profissional perpasse pelas ciências e letras sem, contudo, necessitar de grande aprofundamento a ponto de se tornar a rigor um médico, engenheiro, economista, astrônomo, meteorologista ou advogado. Por sinal, se o jornalista se aprofundar demais num texto qualquer, a ponto de virar literatura profissional, pode deixar de praticar o jornalismo, simplesmente porque não estará realizando o que se chama na Teoria da Comunicação de difusão intensiva, o que em outras palavras quer dizer fazer-se ser entendido pelo maior número de pessoas, independentemente do seu grau cultural ou de instrução. Como bem ensinou Otto Lara Resende, um jornalista é especialista em qualquer assunto durante dez minutos. Já Stephen Glover, da revista Spectator, complementa definindo que a notícia é inevitavelmente superficial.
Desvio de função
Como foi argumento de alguns para desdenhar a formação universitária especializada, o jornalismo não é a única profissão que tem expoentes que não dispõem de formação específica. Um dos mais importantes filósofos contemporâneos, Antonio Gramsci, ao invés de cursar Filosofia era formado em Literatura (ele foi jornalista também). Outro viés da profissão foi o general Vo Nguyen Giap, comandante supremo do exército vietnamita que derrotou as poderosas forças armadas dos Estados Unidos. Não cursou nenhuma academia militar – era formado em História. Já o pai da Administração de Negócios, Peter Drucker, era filósofo e economista. Enquanto isso, os engenheiros Octávio Bulhões, Mário Henrique Simonsen e Henrique Meirelles, na verdade sobressaíram como economistas. E por aí vão outros exemplos: Henry Ford era engenheiro, mas foi um gênio da Administração e Phillip Kotler que é economista e matemático tornou-se o papa do Marketing…
Em uma de suas aulas, o jurista Vicente Rao disse que a tradicional faculdade de Direito da USP formava presidentes da República, governadores, escritores, juízes, desembargadores, jornalistas e também advogados. Por coincidência, o ator, dramaturgo e produtor teatral Juca de Oliveira é formado naquela honrosa instituição, mas isso, é claro, não inviabiliza o trabalho de formação das escolas de Artes Cênicas.
A questão do desvio de função deve ser mais bem entendida, porém nunca estimulada. Seria como defender a tese de que o aluno de ensino médio ou fundamental, para melhorar sua redação, precisaria estudar mais geografia e história, e não as técnicas narrativas, discursos e principalmente exercitar seu texto sistematicamente.
O imenso glossário médico
Para ser preciso e severo convém admitir que a massa crítica do jornalismo, por ora, não é das mais densas, mas as faculdades têm a faculdade ímpar de propiciar o treinamento profissional, como, por exemplo, a cobertura de ocorrências similares às do dia-a-dia, com a apuração, depuração e relato adequados tecnicamente e com a devida sustentação ética. Há também a prática contínua do texto, para o evoluir sempre. Além disso, a Teoria do Jornalismo tem recebido recentemente a contribuição de conhecimentos de ciências afins como a Linguística, a Filologia, a Antropologia e a Sociologia.
Não se pode negar que conhecimento sempre contribui. O fato, por exemplo, de ser um advogado ou filósofo, naturalmente pode ajudar um ‘jornalista prático’ a entender o mundo melhor e abrir seus horizontes, mas a linguagem jurídica ou filosófica, muitas vezes labiríntica, perifrásica e até prosopopaica, são antítese do discurso jornalístico, que é direto, incisivo, objetivo e claro, talvez quase reducionista. Se advogados ou filósofos permanecessem escrevendo como juristas ou pensadores em suas reportagens não teriam vida longa no jornalismo pós-moderno. Há também a questão da velocidade. Enquanto os advogados precisam de tempo para maturar a hermenêutica do processo judicial e os filósofos para reflexão da exegese, os jornalistas precisam tomar decisões em horas, minutos ou segundos para não serem engolidos pelos massacrantes fechamentos diários, ou pelo tempo real ou ainda pelas transmissões ao vivo. Aproveitando esse aspecto, é bom lembrar que essas situações se aprendem nas escolas de Jornalismo.
Por outro lado, os médicos, que adoram mitificar seu trabalho, teriam um destino trágico como repórter se não se adaptassem. Sendo assim, um foca esculápio teria de deixar de lado imediatamente o glossário médico de quase 15 mil termos se pretendesse exercer o novo ofício de escrever. Então, ao invés de edema, passaria a escrever inchaço; ao invés de sutura, usaria o modo mais comum e popular: costurar; e se quisesse falar em incisão, teria de mudar para o curto e grosso: corte na cirurgia. Se pretendesse dizer ainda que seu par fez uma infeliz iatrogenia, bastaria mencionar que o nobre colega havia cometido um erro médico.
Articulistas e colunistas especializados
A bem da imprensa em geral, uma questão deontológica deve ser colocada para debate. Um médico, advogado ou engenheiro que agora pretenda exercer o jornalismo terá liberdade de consciência para apurar, questionar e escrever sobre tema de sua especialidade, mesmo tendo interesse em algum dia voltar à sua profissão de origem? Como um repórter médico poderia tratar de imperícia, negligência ou imprudência de um colega, sabendo que anos mais tarde, ao retornar à labuta no hospital ou clínica, poderá ter ao seu lado o objeto ou a fonte de sua reportagem? Se um repórter engenheiro for elaborar uma matéria sobre a queda de uma ponte ou uma explosão de uma máquina causada pela inabilidade do colega de formação não poderá ficar inibido ao retratar a verdade por seu esprit de corps? Eles teriam independência ou liberdade, desembaraço e isenção? São questões complexas e difíceis de serem respondidas.
Na faculdade de Jornalismo, os estudantes, tal qual um medium, incorporam e aprendem, acima de tudo, a doutrina do compromisso com a verdade, a exatidão e a imparcialidade. Naturalmente, nem tudo que é aprendido é aplicado na prática, mas seguramente a paixão pela profissão e seu dever com o receptor da notícia são inculcados nos quatro anos de aulas. E isso é fácil de ser verificado pelo próprio calor gerado no debate do diploma, uma demonstração que os focas estão compromissados visceralmente com a profissão que agora lamentavelmente tornou-se ofício.
Embora os detentores da mídia usassem o sofisma com a falsa premissa de que os profissionais de outras profissões não podiam contribuir com a imprensa, sempre houve legalmente articulistas, comentaristas, críticos e colunistas especializados expressando seus pontos de vista sobre temas de seu completo domínio. Assim, sempre estiveram presentes nas páginas, nas ondas e nas telas – com seu conhecimento prático-teórico – advogados, médicos, engenheiros, professores, cientistas, sociólogos, antropólogos, filósofos entre outros intelectuais de nível superior. O que fora impedido por lei era o acesso às funções específicas do jornalismo, como a reportagem e a edição, pois como fontes privilegiadas poderiam contribuir muito mais do que como intermediários no processo da comunicação.
Jornadas de até 10 a 12 horas
Nesta fase da comunicação jornalística, estou certo que muitos jornalistas práticos apreciaram bastante a possibilidade de exercer a profissão sem o canudo, mas ao mesmo tempo, pelo menos por enquanto, estão infelizes porque não podem dar ‘carteiraços’ ou usar sua carteirinha de jornalista para outros fins. Dizem as línguas afiadas que Assis Chateaubriand recomendou a um jornalista para ele usar sua carteirinha quando este subordinado foi pedir-lhe aumento de salário, à época em que regia o império dos Diários Associados. O diploma pode não ser de interesse, mas a carteirinha da Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas, sempre foi objetivo de espertalhões como também de inúmeros colaboradores, jornalistas práticos ou diletantes da imprensa.
Há outros novos pontos neste novo cenário ocupacional a serem refletidos. Haverá articulistas que colaboram com jornais e revistas com regularidade que agora se autodefinirão como jornalistas, mas será que eles são realmente? O jornalismo, segundo a lei aniquilada recentemente, precisava antes de qualquer coisa de remuneração e, de acordo com o atual código de ética da Fenaj, não pode ser exercido sem contrapartida financeira. Por estes dispositivos, articulistas não são jornalistas. É engraçado e curioso observar que os coleguinhas usam há décadas o título de jornalista profissional, como se engenheiros, economistas, advogados, médicos não fossem profissionais também. Mas agora temos o jornalista cidadão, não é verdade?… Ou seja, alguém que exerce o ofício apenas com paixão e muitas vezes com pouca razão.
Hoje, creio ser difícil muitos profissionais de outras especialidades se empregarem como jornalistas, principalmente, por conta dos baixos salários. Há inúmeras profissões que não precisam de formação superior específica e que rendem bem mais que os ganhos de jornalistas em início de carreira, como, por exemplo, motoristas particulares, maîtres-d’hôtel, vendedores, cabeleireiros ou mestre de obras. Se agora um profissional de nível superior se aventurar pelo jornalismo deverá ser por pura vocação, paixão, interesses obscuros ou loucura mesmo, principalmente se for formado numa profissão tradicional onde a possibilidade de ganhos é infinitamente maior. Além disso, nunca na história desse país se exigiu tanta produtividade dos jornalistas. Hoje, se o profissional de redação quiser manter seu carguinho terá de trabalhar por dois ou três colegas, com jornadas longínquas de 10 a 12 horas, às vezes.
Asneira ou perversidade
Há uns 25 anos, Odon Pereira, ex-secretário de redação da Folha de S.Paulo, disse que a técnica jornalística poderia ser aprendida nas redações durante seis meses. Creio, entretanto, que poucos veículos vão querer voltar atrás e se tornarem ‘escolas profissionalizantes’, ainda que tenham cursos rápidos (extensão universitária) para formar ou aperfeiçoar profissionais. Nas redações, contudo, não há mais tempo nem para ir ao banheiro e não são poucas as vezes que se esquece de ir ao nobre lugar por causa da pressão do fechamento cada vez mais precoce e cruel. É claro que alguns privilegiados poderão ainda ter aulas particulares nas redações, com tempo necessário para aclimatação, experimentação, bem como tolerância aos erros, mas isso será sempre exceção e só ocorrerá quando o respectivo QI do foca for muito alto.
Já tive a oportunidade de ter trabalhado com jornalistas de carreira esculpidos na rudeza da prática diária. Aprendi muito com eles, respeito-os muito e lhes agradeço das profundezas do meu coração (para não cair no lugar-comum) pelos ensinamentos, dicas e orientações. Um deles tinha apenas o curso primário e outro o segundo grau. No que pese a falta do canudo, eram profissionais fantásticos com grande conhecimento jornalístico e do idioma pátrio. Acredito que deveriam ser mesmo vocacionados para esta carreira, por sinal, muitas vezes ingrata e ilógica. Por outro lado, deparei-me com alunos veteranos de Jornalismo que além de não saber o mínimo necessário para escrever sequer uma simples nota, não queriam aprender, estavam em busca apenas do diproma e tenho absoluta certeza que hoje, mesmo sendo bacharéis ou baixarias em jornalismo, nunca serão jornalistas de fato, com a graça de Deus.
O mercado se autorregula, é implacável e extremamente depurador e isso é um consolo para os que prezam a qualidade. Infelizmente, as faculdades – e não só as de Jornalismo – esqueceram o valor da reprovação e desta forma trucidaram o mérito. Igualaram bons alunos com maus alunos e no final do curso premiam com a mesma certificação a excelência juntamente com a mediocridade. Generalizar rotulando que todos os egressos dos cursos de Jornalismo são ruins é no mínimo asneira ou perversidade. Tive o privilégio de trabalhar ao lado de um ex-aluno meu que já trilha uma carreira brilhante. Se o curso contribuiu? Certamente que sim. Se foi essencial ou imprescindível? Não tenho como responder.
Profissão merece respeito
Uma solução salomônica, que merece ser novamente discutida, seria a volta da lei do ‘terço’. Por meio deste dispositivo legal, que foi derrubado após a última regulamentação profissional, todas as redações poderiam compor seu quadro com até 1/3 de ‘jornalistas práticos’ ou sem diploma universitário de Jornalismo. Essa legislação poderia novamente assegurar espaço para os penas de ouro, aqueles que ‘teriam talento e vocação nata’ para o exercício do jornalismo, além de resguardar espaço para profissionais com outras formações universitárias que contribuiriam com seu conhecimento original, estrito e profundo. Uma outra possibilidade seria o exame de proficiência profissional. Havendo um Conselho Federal de Jornalismo, uma comissão de avaliação, tal qual a da OAB, faria a avaliação para verificar se o candidato com ou sem diploma estaria apto para o exercício profissional.
Neste novo mundo, no entanto, quem decide aquele que tem ou não competência para a profissão são os empregadores, e não os órgãos classistas ou corporações de ofício como ocorre, por exemplo, na Alemanha, onde a associação dos jornalistas é quem, há séculos, literalmente habilita o profissional. O fato de os patrões ficarem com a chave da porta da entrada da profissão pode gerar em tese perigos como o clientelismo e nepotismo tão presente no Brasil em outras esferas.
De todo modo, não podemos deixar a profissão totalmente livre sem qualquer exigência legal, por conta, dos riscos que todos nós já conhecemos. Assim como não se pode deixar as crianças brincar com fogo, não se pode deixar o jornalismo simplesmente ao léu, pairando no ar, navegando na direção por onde sopram ventos errantes. A profissão merece mais respeito e não pode ser exercida tão livremente como querem alguns arautos da liberdade de expressão. A razão é simples e foi sentenciada pelo linguista e filósofo Noam Chomsky: ‘A imprensa pode causar mais danos que a bomba atômica. E deixar cicatrizes no cérebro.’
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Jornalista