Em dezembro de 2007, 14 professores do curso de Comunicação Social da Universidade Fumec (Fundação Mineira de Educação e Cultura), em Belo Horizonte (MG), uma das instituições acadêmicas de maior prestígio no estado, foram demitidos arbitrariamente, em desrespeito aos critérios de desligamento formulados pela própria presidência da fundação – carga horária pequena, rendimento acadêmico insatisfatório e fraca avaliação institucional.
A maioria deles era constituída de jornalistas e estava profundamente comprometida com o Projeto Político Pedagógico (PPP) do curso, que tinha como proposta formar jornalistas e publicitários dotados de capacidade crítica. A arbitrariedade dessas demissões, que contou com manifestações de solidariedade do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais e da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), entre outros, não é, contudo, o objetivo deste artigo.
O propósito deste texto é fazer algumas considerações sobre a força de um projeto pedagógico na formação de consciência crítica de comunicadores e na conseqüência que isso teve no aprofundamento de contradições da instituição, levando ao ato de violência contra profissionais comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa, democrática e solidária. Os frutos do PPP ficavam patentes na linha editorial do premiado jornal-laboratório O Ponto, pautado, produzido e editado inteiramente por alunos.
Casuísmos internos
Outro objetivo deste artigo é estabelecer conexões entre jornalismo e publicidade universitários, experimentais e críticos – veiculados ambos pelo citado jornal universitário – e o fortalecimento do campo público da comunicação, num momento em que a televisão pública digital nasce, demandando tais práticas.
O Projeto Político Pedagógico do curso de Comunicação Social da Universidade Fumec, um documento construído com grande participação de professores e estudantes do curso, tinha alguns eixos fundamentais: formação humanista sólida, abertura crescente para a arte como forma de captura do singular de maneira original, prática laboratorial experimental, com vista a fugir das fórmulas do mercado, essa entidade hipostasiada e ideológica, incapaz, destarte, de enfrentar os desafios do novo.
A Fumec mergulhou numa crise institucional nos últimos anos em razão de denúncias de corrupção em três áreas (obras com suspeitas de superfaturamento, contratos de publicidade questionáveis com empresas ligadas a Marcos Valério e cobranças irregulares de mensalidades atrasadas de alunos inadimplentes). Auditorias internas, com participação de empresas especializadas, levantaram indícios dessas suspeitas e resultados parciais chegaram a ser divulgados para a comunidade acadêmica, atraindo inclusive a atenção da mídia.
Além disso, sobraram casuísmos internos para manter no poder gerentes da instituição (a maioria absoluta sem titulação ou pesquisa compatíveis com os cargos ocupados em rodízio), por meio de mudanças em estatutos e regimentos (entre os professores afastados estavam colegas que iriam completar tempo estatutário para concorrer a eleições). Por essas razões, o curso de Comunicação entrou em rota de colisão com a gestão da universidade, gerando a demissão de professores engajados nos objetivos do PPP.
Construção de soluções
O que a Fumec representava intramuros guardava paralelos com o que a sociedade enfrentava ao largo: desmandos, uso privado da razão na gestão da coisa pública (vejam a questão dos cartões corporativos no governo federal), relações pouco claras com os poderes – o processo que levou a instituição, submetida ao Conselho Estadual de Educação, a se tornar universidade, mediante decreto estadual, num ambiente de guerra aberta entre as instituições de ensino superior na caça a alunos (e reduzidas, em sua maioria, a negócios), alimentou a crise interna.
Desta forma, despertar nos alunos um compromisso para com a emancipação geral (formação humanista), para com a permanente reflexão sobre as fronteiras entre a arte e a indústria cultural e para com a experimentação como ato de autoconstrução social e histórica das possibilidades de verdade – objetivos em tudo harmônicos com a melhor formulação da comunicação pública – passou a gerar uma tensão interna que só poderia ser dialeticamente superada com a transformação da própria instituição em universidade verdadeira, promovendo por mérito acadêmico a renovação de seus quadros.
Isso, contudo, significaria um risco aos muitos interesses em jogo internamente. Do mesmo modo que, ‘no mundo aqui fora’, tanto um jornalismo emancipador como uma publicidade com objetivos sociais ameaçam a hegemonia de um sistema de produção (de bens e de informações) que trata do interesse privado como se fosse interesse público, produzindo crises de legitimação do poder que só podem ser contornadas pelo marketing.
A universidade não é qualquer instituição. Nela, constrói-se o futuro. Não como figura de linguagem, tão a gosto da razão cínica, mas como utopias, lugares idealizados em que poderemos sonhar sem que o sonho seja delírio ou a privação do outro de um bem que pode ser de todos – como a cultura vigorosa, o direito à informação, à participação, à construção social e histórica de soluções que cada tempo cobra de todos.
Razão cínica e sofisma
Isso só pode ser obtido por um velho conceito, ainda que atualizado por novas propostas. Tal conceito, como os alunos do curso de Comunicação Social da Fumec conhecem bem porque o estudaram em Teoria da Comunicação e em outras disciplinas, é o de espaço público, com suas características insubstituíveis – acessibilidade, comunicação, racionalidade, razoabilidade, transparência, inclusão e, principalmente, o uso público da razão.
É daí que vem a valorização do adjetivo público numa época em que o mercado se mostra com sua face verdadeira – insubstituível para suprir algumas necessidades pelo engenho da iniciativa privada, mas insensível diante do custo humano deste processo, com exclusão e sofrimentos inaceitáveis. Daí a necessidade do papel regulador do setor público, nem sempre executado pelo Estado, refém das elites – como conta a nossa história para quem se dispuser a entendê-la.
As propostas novas para revigorar o espaço público ficam por conta de aperfeiçoamentos destacados por pesquisadores da estatura intelectual de Giles Lipovetsky, na França, ou Wilson Gomes, no Brasil. Mobilizar a sociedade pode passar pelo espetáculo, mas precisa confluir para o debate crítico informado. Não importa se o que está em jogo é a lisura de governantes (ou gestores de fundações), as prioridades para as políticas públicas ou a produção de células-tronco. Daí que jornalistas e publicitários comprometidos com o aprimoramento da sociedade e mediadores nesses debates precisem ajudar a sociedade a refletir.
Tal reflexão só é possível de maneira plena na universidade a partir da sala de aula e dos laboratórios; do ensino, da extensão e da pesquisa. Uma instituição que não reconheça o lugar do debate, do dissenso, da crítica e da transparência, é universidade no nome, não na práxis. Razão cínica, retórica, sofisma – eis aí os conteúdos encobertos das pós-graduações propostas pelo que há de pior no mercado e bem aquinhoadas por instituições acadêmicas de fachada.
Herança inacabada
Pensar o campo público da televisão digitalizada – tarefa que se coloca a todos que estão comprometidos com o país e não apenas com o próprio umbigo – significa lutar para a qualidade do jornalismo e da publicidade nos vários âmbitos desse campo: radiodifusão e narrowcast públicos, educativos, estatais (os três poderes), comunitários e, principalmente, universitários.
Ao jornalismo universitário caberá o que se coloca para o jornalismo público – inovar, experimentar, incluir, explicar, habilitar, respeitar, emancipar –, mas aquele tem a vantagem, em relação a este, do benefício de estar dentro da universidade, lugar por excelência do debate crítico e informado. Ficará a cargo da publicidade contribuir nessa missão, perseguindo a experimentação estética que nos desperte de nosso torpor, narcotizados pela informação descontextualizada e abundante, mas desprovida de humanidade; pelos apelos ao consumismo, ao hedonismo e à obediência a padrões.
Nem todos os 14 professores dispensados pela Fumec em dezembro de 2007 subscreveriam este artigo, o que significa que nem todos os que foram demitidos o foram em razão de lutar pelo PPP. A instituição, alimentada pela razão cínica, foi capaz de produzir um ‘pacote’ que turva as verdadeiras intenções da iniciativa: impedir a formação de comunicadores sociais críticos, ainda que haja motivos para pensar que a semente da criticidade engajada já tenha raízes fincadas em solo institucional, como demonstra o firme repúdio de estudantes às demissões registrado no YouTube e em sites.
Não se trata esta de uma discussão particular. Precisamos aprender a ver nos casos isolados manifestações prenhes de tendências universais que ameaçam nossa humanidade. Esta é uma herança do projeto inacabado do Iluminismo, pelo qual acredito que valha a pena lutar. Muitos dos 14 professores de Comunicação Social da Universidade Fumec demitidos em dezembro também pensam assim. Pagaram com os empregos – aquilo que o trabalhador tem de maior valor – pela dignidade de seu compromisso com a formação de jornalistas e publicitários comprometidos com o futuro da nação brasileira. Orgulho-me de ter combatido ao lado deles.
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Jornalista, mestre em comunicação e filosofia; Belo Horizonte, MG