Do ano 2000 para cá, o número de instituições no Brasil que passaram a oferecer o curso de Jornalismo nos processos seletivos mais que dobrou, passando de 300 em todo o país. Somando-se a isso os equivocados planos de glamour, fama e dinheiro que ainda são atribuídos pelos jovens acadêmicos de Jornalismo à realidade da profissão do jornalista, o curso passou a ocupar uma posição alarmante na lista dos cursos superiores que, possivelmente, vêm tendo suas escolhas vulgarizadas nos últimos anos.
Com a facilidade de ingresso nas faculdades, principalmente nas particulares, houve uma proliferação preocupante de jovens que ingressam no curso com a presunção de que, com o diploma de jornalista, a vida profissional se dará por viagens, aparições na televisão e status social. A imaturidade, geralmente comum à idade em que se tem de escolher o curso para se prestar o vestibular, é um agravante dessa realidade.
Apesar do aumento do número da demanda de cursos de Jornalismo, uma análise da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) faz uma ressalva. ‘É possível que, nas listas de Comunicação Social, tenham sido contabilizadas outras habilitações que não as de Jornalismo, como os cursos de graduação em Cinema e Vídeo, Radialismo, Rádio e Telejornalismo, Produção Editorial e Publicação, entre outros.’
Choques com a realidade
Porém, um exemplo concreto do aumento da procura pelo curso é o dado apresentado na lista dos cursos mais concorridos da Fundação Universitária para o Vestibular (Fuvest), exame considerado o mais disputado do país. Após dez anos, o curso de Jornalismo voltou a aparecer na primeira colocação. A concorrência é de 41,63 candidatos por vaga – são 2.498 vestibulandos querendo ocupar uma das 60 vagas oferecidas para a carreira da Universidade de São Paulo (USP). Em contraponto, o curso de Medicina, que em outras universidades do país geralmente figura com o maior número de candidato/vaga (c/v), fica na 5ª posição, com 33,99 c/v.
Entre os estudantes de Jornalismo, as opiniões divergem entre a existência ou não desta banalização. Para a acadêmica Marluci Stein, que faz o 6º semestre do curso em Porto Alegre (RS), a opção não chega a ter se tornado banal. ‘Percebo que a escolha por Jornalismo muitas vezes é precipitada pelos estudantes, que ingressam na faculdade com a vontade de querer mudar o mundo’, opina. ‘A opção por este curso deve ser muito bem pensada, para evitar as desistências no meio do caminho e o crescente número de jornalistas que trabalham em outras áreas’, complementa.
O estudante Guilherme Lira, da Faculdade Estácio de Sá, em São José (SC), que também está no 6º período de Jornalismo, inclui o curso na lista dos que vêm tendo suas escolhas banalizadas nos últimos anos. ‘Acredito que, assim como Administração, Direito e, mais recentemente, Fisioterapia, Jornalismo é um curso da moda, que caiu no gosto popular’, afirma, exemplificando que, no caso do Jornalismo, as pessoas confundem o glamour passado por repórteres de TV e julgam que ser jornalista é uma forma de ficar famoso. ‘Muitos equívocos como este vão caindo ao longo da faculdade e as pessoas desistem. Os choques com a realidade são muito fortes e as pessoas não agüentam descobrir que não sabem escrever, que lêem muito pouco, ou que não têm boa dicção para o rádio, ou postura para a TV’, finaliza.
Índice de desistência
A seguir, uma entrevista com os coordenadores de dois dos três cursos de Jornalismo oferecidos na região da Grande Florianópolis: Luciano Bitencourt, da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), em Palhoça, e Aureo Moraes, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na capital. Os jornalistas comentaram a respeito do tema da banalização pela escolha do curso, analisando pontos que abrangem desde a desistência do curso até as medidas necessárias para impedir que esta tendência aumente.
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Na universidade na qual você coordena o curso, é notável a banalização pela escolha do curso de jornalismo? Você acha que a facilidade em passar no vestibular, geralmente maior no vestibular das universidades particulares, em relação às públicas, contribui para essa escolha?
Luciano Bitencourt – A questão da eventual banalização é mais complexa. Em primeiro lugar, é preciso reforçar que o vestibular tornou-se uma prática descontextualizada. É um processo seletivo. E processos seletivos só servem para lugares em que a seleção precisa ser rápida e os critérios, eliminatórios. Sendo assim, se justifica em lugares com grande demanda em relação à oferta. Em si mesmo, o vestibular não garante o acesso dos mais qualificados para o curso; no máximo, dos melhores preparados para a prova seletiva. E são coisas diferentes. Em segundo lugar, não creio que a opção pelo Jornalismo esteja banalizada. Creio que a visão do jornalismo (‘vendida’, inclusive, pelos próprios cursos) é que está fora de contexto. Como mediador social, o jornalista está perdendo sua função e, ele próprio, banalizando sua atividade, sendo conivente com os processos de exclusão social e se colocando ao lado das esferas de poder. Além disso, o jornalismo, para quem está ingressando no curso superior, não é uma atividade muito clara; ela se confunde com a das outras habilitações. Creio que a grande maioria dos estudantes só vai se dar conta do que é ser jornalista ao longo do curso.
Aureo Moraes – O único, ou um dos únicos indicadores que podem comprovar esta ‘tese’ – de que os alunos escolhem mal o curso – é o índice de desistência. No curso de Jornalismo da UFSC, o percentual de alunos que desistem, sobretudo na primeira e segunda fases, não chega nem perto dos 10%. Quando há desistência, ela alcança dois alunos no máximo, entre os 30 que ingressam todo ano. Portanto, não percebemos que haja, por aqui, a tal banalização.
Demandas da futura profissão
Ao ingressaram no curso, quais os principais motivos que os alunos alegam para ter feito a escolha por jornalismo?
L.B. – Os motivos para ingresso são muito variados para fazer apontamentos taxativos. Não consigo identificar razões consistentes que representem um número significativo de alunos.
A.M. – Em regra, a escolha tem a ver com uma idealização que os jovens fazem da profissão. No caso da de jornalista não é diferentes das demais – Medicina, Direito, Engenharia. O homem idealiza um futuro, reúne as suas habilidades e preferências e constrói um modelo daquilo que pretende realizar profissionalmente. Assim é que, me parece, funciona a escolha. Há os mais comunicativos, aqueles que gostam de escrever, os aficcionados por TV, rádio, internet etc. Daí, partem para a escolha inicial e, se forem bem orientados, fazem da opção por um curso universitário sua profissão.
Ainda se percebe, por parte dos acadêmicos, a presunção de que ‘jornalismo é glamour’? Este é um dos motivos que os levam a escolher o curso?
L.B. – Ainda há quem pense assim. Mas creio que essa visão está mudando. O sentido de glamour vem do trabalho televisivo. E essa mídia já está ‘morrendo’. Ainda vai demorar um pouquinho para que se perceba isso por aqui, mas o campo de trabalho está migrando para espaços em que o glamour não cabe. Acho que o problema é a idéia de que o jornalista é meio que o dono da verdade. Essa característica é mais forte. E hoje, os estudantes tendem a não compreender que o discurso jornalístico não deve expressar verdades absolutas (sobretudo as opinativas). O discurso jornalístico ainda é um ‘discurso de verdades’, quando deveria ser o discurso resultante do exercício intelectual de interpretação do mundo e, portanto, uma versão possível.
A.M. – Não sei… Pelo menos tal idéia está, normalmente, associada ao telejornalismo. Contudo, como nosso projeto pedagógico não privilegia nenhuma área, os alunos estudam todas, desde os pontos de vista téorico e prático. Assim, qualquer presunção de que o jornalismo é glamour, ou que eles estarão se formando ‘artistas de TV’ cai por terra, quando se defrontam com as demandas mais sérias da futura profissão.
Importante é a qualidade do ensino
Há muita desistência no decorrer do curso? Por quais motivos?
L.B. – A desistência é comum em todos os cursos. Não creio que haja uma razão específica, em que se possa colocar toda a responsabilidade sobre o jornalismo enquanto atividade. As dúvidas já antecedem o ingresso. Tradicionalmente, a escolha por um curso de nível superior é acompanhada de angústia e imaturidade. O sistema de ensino brasileiro é perverso nesse sentido. É o sistema que gera esses sentimentos, digamos. As desistências são decorrência.
A.M. – A resposta a esta pergunta está na resposta da primeira, já que ambas têm relação direta.
Quais as ações que deveriam ser feitas para impedir o aumento dessa tendência da banalização do curso?
L.B. – Mesmo não considerando a banalização desse processo, posso dizer que há questões que precisam ser pensadas. Estamos discutindo, por exemplo, a exigência do diploma para o exercício profissional, como forma de qualificar a atividade jornalística. Mas está cada vez mais difícil acompanhar os noticiários. As informações são mal apuradas, o discurso é autoritário e os interesses quase nunca estão expressos (mesmo que implicitamente) nas matérias. Só para apontar algumas questões. A discussão sobre o diploma está restrita a uma perspectiva de ‘reserva de mercado’. Para discutir a qualificação pelo diploma, seria preciso, primeiro, discutir o que se propõe como qualificável nos postos de trabalho (já escassos nos moldes tradicionais). A discussão é simplória, sem profundidade. Creio que são os debates em torno das questões sociais relevantes e os discursos decorrentes é que estão banalizados. E isso traz reflexos diretos nos processos de formação acadêmica.
A.M. – Não concordo com a tal banalização. Penso que o que existe são dois aspectos. Primeiro: imaturidade na hora de escolher um curso superior. E isso vale para qualquer profissão. Os jovens da atual geração recebem muita informação, mas a processam mal. Lêem pouco, refletem quase nada. Assim é natural que escolham por várias outras influências e menos por convicção. Segundo: uma vez escolhido o curso de Jornalismo, o que vai determinar se a escolha foi correta ou não é, ao meu juízo, a qualidade do ensino oferecido. Um curso sem qualidade, sem consistência, leva mais cedo à conclusão de que a escolha foi errada.
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Estudante de Jornalismo, Florianópolis, SC