Thursday, 14 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Jornalismo de políticas públicas sociais

Falta uma cobertura midiática mais qualificada sobre os temas sociais no Brasil, criticou a jornalista Beatriz Barbosa, uma das coordenadoras da organização Intervozes-Coletivo Brasil de Comunicação Social, em sua palestra na segunda-feira, 5 de maio, sobre o desafio de aumentar a presença das políticas públicas na grande imprensa.

Este foi o oitavo encontro da Disciplina e Curso de Extensão Jornalismo de Políticas Públicas Sociais, realizado no auditório da Central de Produção Multimídia-CPM, uma realização do Programa Acadêmico do Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência-NETCCON da Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ, em parceria com a Agência de Notícias dos Direitos da Infância-ANDI.

‘O problema é que o tratamento da imprensa é muito pontual, pois não há uma ampla e sistemática cobertura no Brasil sobre políticas públicas’, avalia Bia Barbosa, que atua há anos na luta pela democratização das comunicações.

Direitos Humanos

Formada pela Escola de Comunicações e Artes-ECA da USP, com especialização em direitos humanos pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, a jornalista acredita que a mídia pode contribuir na promoção dos direitos humanos e como fiscalizadora de políticas do Estado: ‘A expectativa é que ela cumpra o seu papel com interesse público de fiscalização da implementação das políticas públicas. Sua função é a de fiscalizar os três poderes, a mídia como o quarto poder.’ E salienta que, se a mídia abre mão do seu papel fiscalizador e crítico das políticas públicas, ‘a gente vai continuar com políticas públicas ineficientes e fracas’.

Em sua fala, Bia abordou a importância de cobrir e acompanhar o processo das políticas públicas partindo do princípio de que vivemos numa sociedade mediada pelos meios de comunicação. Os meios de comunicação são os principais espaços de circulação de informação e cultura e para a referência de valores e formação da opinião pública. ‘A mídia é vista como um espelho do mundo. No entanto, toda a apreensão da realidade é necessariamente uma reconstrução subjetiva do real. A realidade que produzimos nos meios de comunicação não é verdadeira, não são fatos, e sim, uma representação do real, uma leitura da realidade’, explicou.

A esfera pública, de acordo com seu pensamento, é um espaço plural e marcado pela diversidade de conflitos. Este espaço, segundo Bia, não deve ser apropriado por interesses comerciais ou de governos. ‘Esperamos que a mídia contribua na promoção dos direitos humanos e também das políticas públicas, isto significa trabalhar com a expectativa de que ela cumpra seu papel de atuar balizada no interesse público’, afirma a jornalista.

Reflexão mais consistente

Bia Barbosa considera que o papel do jornalismo é fundamental para promover o debate plural para questões prioritárias em nossa sociedade e também para a configuração de políticas públicas mais democráticas. O jornalismo, para ela, tem um papel na formação do cidadão, assim como na definição da agenda pública. ‘Isto é fundamental para a elaboração de políticas públicas, pois a informação a que o cidadão tem acesso através dos meios de comunicação é que vai elevar o grau de pressão da sociedade por políticas públicas.’

Este debate plural em torno de questões prioritárias, assim como a apresentação de opiniões divergentes vão possibilitar, segundo a jornalista, a construção de políticas públicas mais plurais. A política pública pressupõe o papel do Estado e é a principal garantia dos direitos dos cidadãos. Beatriz ressaltou, no entanto, que a grande imprensa funciona com preferência para notícias sensacionalistas pautadas pela busca de denúncias – ‘os contextos sociais acabam ficando renegados. As políticas públicas têm que ser universais e a sociedade como um todo pode se prejudicar com ausência de políticas públicas’.

Como exemplo, Bia Barbosa apontou para o tratamento da mídia sobre a questão da violência: ‘A violência está muito reduzida aos crimes, atentados e relatórios de homicídios; o que falta, na verdade, é discutir políticas públicas para segurança.’ Para ela, há na mídia uma ausência de reflexão mais consistente sobre o processo de formulação de políticas públicas – ‘a imprensa não tem um acompanhamento sistemático da construção destas políticas’.

Condições de trabalho

E comenta que ‘a partir do momento em que se constrói a política pública, é preciso discutir com o legislativo para ver orçamento, além de acompanhar as diferentes etapas da concepção até a implementação e avaliação dos usuários destas políticas. Mas na mídia não há contextualização deste processo’. O problema, de acordo com a jornalista, é que uma cobertura falha pode contribuir para retroalimentar o desenvolvimento de políticas públicas sociais pouco eficientes.

Bia avalia que o ideal para ter uma abordagem mais qualificada seria fazer um acompanhamento de médio a longo prazo para esses setores.

Por isso, em sua palestra, destacou a importância da formação dos jornalistas e comunicadores a fim de trabalhar de forma integrada na formação técnica e humanista. Ela apontou para a ausência de uma oferta mínima de conhecimento sobre o tema das políticas públicas para os alunos universitários dos cursos de Comunicação Social nas grades curriculares.

Ainda realça outro aspecto sobre os profissionais: ‘O jornalista vem, em sua maioria, da classe média e não precisa dessas políticas públicas; as grandes mazelas sociais do país não fazem parte do cotidiano desses jornalistas que vão traduzir a informação para o público leitor.’ Bia também chamou a atenção para a precarização das condições de trabalho e o enxugamento das redações: ‘Não dá tempo e o repórter não tem condição de aprofundar dentro do regime de trabalho.’

A lógica do lucro

A jornalista salienta que ‘o que pauta a imprensa é o que vende ou que dá audiência através do sensacionalismo’. E exemplificou com o caso Isabella Nardoni, em São Paulo (muito comentado na agenda midiática atualmente). A partir da veiculação da informação sobre a morte da pequena Isabella, este fato passou a ser transformado em mercadoria – houve um aumento da audiência nos telejornais de cerca de 20%. ‘A mídia passou a produzir notícias e fatos em cima do que não havia mais e a busca pela audiência deixa de fora temas que, de fato, atingem a maioria da população – por exemplo, o dado de que dez mil crianças morrem assassinadas por ano no Brasil.’

Segundo ela, o leitor/ouvinte/telespectador tem uma liberdade de escolha relativa, pois ‘a abordagem dos fatos e a programação são muito semelhantes; falta o acesso a uma informação plural e diversa’. O papel do jornalista, para Beatriz, vai além de produzir notícia, pois ‘ele tem um papel social de transformação da sociedade’.

Nos últimos anos, ressaltou, as questões sociais tiveram lugar no cenário político. A concentração dos meios de comunicação é um obstáculo para a diversidade da informação que segue a lógica comercial pela busca do lucro – ‘gastar o menos possível e vender mais’. E faz críticas quanto à falta de independência do jornalista na definição da pauta: ‘Não dá para cobrir política pública de dentro da redação por telefone. Eu sou defensora de que o jornalista brigue por estas questões, isso é um desafio muito grande.’

Leitor da realidade

O dr. Evandro Vieira Ouriques, coordenador do NETCCON, que ministra a Disciplina e Curso de Extensão Jornalismo de Políticas Públicas Sociais, insistiu na importância do jornalista levar a sério a sua autonomia efetiva.

Outro ponto que, para o pesquisador, chamou a atenção foi o ‘da contradição do conceito –que se revela assim como um sintoma – de Políticas Públicas Sociais: é sintomático pensarmos que tenham que existir políticas que sejam públicas e também sociais. A partir deste curso, estamos propondo uma mudança de paradigma de construção das políticas públicas, que passa pela auto-construção de uma nova linguagem e de novo sentido que não dependa de forma absoluta das instituições e de uma mudança institucional para que possamos nos mover. O que precisamos é agir, como jornalistas, como comunicadores, como cidadãos, de forma pública e social’.

Sobre este ponto de vista, Bia Barbosa critica o comodismo e o individualismo que marcam a profissão. ‘Há uma ausência de cobertura qualificada pelos meios de comunicação que são organizações capitalistas. O jornalista tem o papel de leitor da realidade.’ E afirma: o acesso ao consumo não pode ser critério para condição de interlocução no discurso jornalístico.

Concentração dos meios de comunicação

‘Os grandes conglomerados comerciais definem as formas pelas quais diferentes versões circulam e como são recepcionadas, privilegiando alguns produtores de versões em detrimento de outros.’ Isto, segundo ela, transforma-se em círculo vicioso e resulta em uma parcialidade na pauta – ‘a imprensa escreve e produz informação para quem compra’. Este círculo vicioso parte da idéia de que não há interesse na pauta que aborde questões sociais; por isso, não se publica nada sobre o tema; o jornalista acaba não se interessando pelo assunto; não se investe em uma formação continuada; e, por conseguinte, a população segue desinteressada.

De acordo com ela, há também uma ausência de regulação do Estado sobre os meios de comunicação. ‘Quem produz e veicula informações no Brasil são apenas nove famílias que controlam 85% da informação circulada. A televisão é o único veículo que chega a 98% dos lares brasileiros. Há vinte anos a nossa Constituição foi promulgada, mas ainda não se discutiu o que é monopólio para proibi-lo’, disse ao citar o artigo 220 da Constituição Federal que proíbe o monopólio dos meios de comunicação.

‘O que estamos falando é de políticas liberais para a comunicação. Na década de 70, o Estado brasileiro contribuiu muito para a concentração dos meios de comunicação’, assinalou.

Fenômeno internacional

Sobre a questão da concentração de propriedade dos meios no Brasil, Bia Barbosa citou dados (de 2003) de que a televisão é controlada por seis redes privadas (Globo, SBT, Record, Bandeirantes, Rede TV! e CNT) que dirigem diretamente 47 emissoras e, indiretamente, 249 emissoras dos 138 grupos que figuram como afiliados regionais. ‘A estas seis redes estão vinculados outros 372 veículos. Apenas a Globo e empresas afiliadas somam 97 emissoras de TV, 34 rádios AM, 53 rádios FM e 20 jornais.’

Ainda lembra que ‘a internet e a TV por assinatura são controladas pelos mesmos veículos que controlam também a radiodifusão e tevês abertas. A NET é a operadora da Rede Globo e controla 85% da programação’. Segundo ela, os grandes portais de internet estão ligados diretamente a grandes centros produtores de conteúdo, como grandes jornais e TVs.

Beatriz, em sua atuação no Intervozes -Coletivo Brasil de Comunicação Social a favor da democratização da comunicação, afirma que esta tendência à concentração dos meios não ocorre apenas no Brasil, é um fenômeno internacional.

Formação do cidadão

A internet, para ela, é uma ferramenta importante para democratizar a comunicação no Brasil, mas a inclusão digital ainda não é uma política pública prioritária. ‘Menos de 20% da população tem acesso freqüente à internet.’

Dados da pesquisa recentemente realizada pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias da Informação e da Comunicação-CETIC.br, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, informam que 55% da população brasileira jamais usou um computador, 66% das que usaram nunca acessaram a internet, 19% das residências possuem computador de mesa e cerca de 1% dispõe de notebooks.

Bia destaca que um dos desafios para ampliar a cobertura na grande imprensa é o de expandir nas universidades brasileiras disciplinas que valorizem o tema de políticas públicas para o estudante. Ela aponta outro desafio que se situa nas redações com a formação continuada do jornalista e a busca pela informação com interesse público – ‘entender o outro como um ser humano, e não apenas como mais um número nas estatísticas’.

Beatriz ressalta também a importância de investigação jornalística e de acompanhar os processos de formulação e aplicação de políticas públicas e ouvir os beneficiários dessas políticas. Outro desafio, segundo ela, seria o da formação do cidadão em relação ao papel do Estado nas políticas públicas. ‘A sociedade tem que ampliar o debate para aumentar a pauta através da leitura crítica da mídia. Os direitos dos cidadãos vão estar garantidos se as políticas públicas forem eficientes’, afirmou.

Sobre a palestrante

Bia Barbosa é jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com especialização em direitos humanos pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, no tema Sistema Público e a garantia do Direito Humano à Comunicação. Desde os tempos da universidade, atua na luta pela democratização das comunicações. Foi diretora do Centro Acadêmico da ECA e, por duas vezes, integrante da direção da Enecos – Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social.

Trabalhou na Editora Abril e foi editora da Agência Carta Maior, fazendo a cobertura dos processos do Fórum Social Mundial. Foi colaboradora da revista Caros Amigos e, em Paris, fez trabalhos para a Unesco, Rádio França Internacional, IstoÉ, O Estado de S. Paulo e Agência Reuters. Cobriu a guerra civil em Angola, o pré-guerra no Iraque e a reunificação de Ruanda pós-genocídio de 1994. Em 2003, fundou, ao lado de outros militantes do campo da comunicação, o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, organização da qual, atualmente, é uma das coordenadoras.

Pelo Intervozes, atuou diretamente na construção da CRIS Brasil e em outros processos de articulação e mobilização do campo, como a participação da sociedade civil no processo de decisão da TV digital, o I Fórum Nacional de TVs Públicas, o Comitê Pró-Conferência (que reivindica a realização da I Conferência Nacional de Comunicação), a Articulação Mulher&Mídia e a Rede Paulista pela Democratização da Comunicação e da Cultura, além de ter integrado o Conselho Editorial do Direitos de Resposta, programa que foi ao ar na Rede TV! entre dezembro/05 e janeiro/06 como resultado de ação civil pública movida contra o programa Tardes Quentes, do apresentador João Kleber. Seu trabalho à frente do Intervozes lhe rendeu o título de empreendedora social da Ashoka.

O programa NETCCON

O Programa Acadêmico do NETCCON visa: a prover a sociedade, sob a perspectiva das ciências da Comunicação, com estudos e metodologias de prevenção e superação da violência, que contribuam para o salto de qualidade: (1) na cobertura midiática das políticas sociais e em sua gestão pública; (2) nas políticas e estratégias de comunicação para a responsabilidade socioambiental; e (3) no padrão ético (‘voz própria’ e ‘vínculo’) do trabalho de presença e colaboração nas redes e organizações. O NETCCON criou e oferece também a disciplina Comunicação, Construção de Estados Mentais e Não-violência, e está criando a disciplina Comunicação e Responsabilidade Socioambiental. Maiores informações sobre o NETCCON podem ser obtidas através de evouriques@terra.com.br.

Conheça mais sobre a disciplina aqui: http://informacao.andi.org.br:8080/relAcademicas/site/visualizarConteudo.do?metodo=visualizarUniversidade&codigo=6

Palestras a serem realizadas em 2008:

Semana 9 (12/05): A cobertura das políticas públicas na área da Educação no Brasil. Palestrante: Antônio Góis (Folha de S.Paulo)

Semana 10 (19/05): Cobertura de qualidade em meio à violência estrutural: A força política da não-violência e a responsabilidade dos atores sociais e dos jornalistas.

Palestrante: Prof. Evandro Vieira Ouriques (NETCCON.ECO.UFRJ, NEF.PUC.SP)

Semana 11 (26/05): A Questão das Políticas Públicas Sociais e a Mídia Contra-hegemônica.
Palestrante: Paulo Lima (Viração)

Semana 12 (02/06): A Comunicação criada pela Periferia no Rio de Janeiro.
Palestrante: Prof. Augusto Gazir (Observatório de Favelas e ECO.UFRJ)

Semana 13 (09/06): O paradigma dos Direitos da Criança e do Adolescente: A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Palestrante: Wanderlino Nogueira Neto (ABONG)

Semana 14 (16/06): A Mídia e a Questão das Políticas Públicas Sociais no Brasil.
Palestrante: Guilherme Canela (ANDI)

Semana 15 (23/06): O Paradigma da Diversidade Cultural.

Palestrante: Profa. Sílvia Ramos (CESEC)

Semana 16 (30/06): Jornalismo prospectivo e o futuro das políticas públicas sociais como pauta.
Palestrante: Rosa Alegria (NEF-PUC/SP, NETCCON.ECO.UFRJ, Millennium/UNU)

Palestras já realizadas em 2008/1:

Semana 1 (10/03): Interesse, Poder e Dádiva: a questão do domínio dos estados mentais e da generosidade na positivização da rede de comunicadores-cidadãos.
Palestrante: Prof. Evandro Vieira Ouriques (NETCCON.ECO.UFRJ, NEF.PUC.SP)

Semana 2 (17/03): A Violência que Acusa a Violência: a degradação de Si e do Outro através da Mídia.
Palestrante: Prof. Michel Misse (NECVU.IFCS.UFRJ)
Semana 3 (24/03): A Abordagem de Temas Sociais junto a Públicos Não-iniciados: o Caso dos Jornais de Grande Circulação e Distribuição Gratuita.

Palestrante: Prof. José Coelho Sobrinho (USP)
Semana 4 (31/03): A desigualdade social no Brasil e os processos de formulação das políticas públicas sociais compensatórias.
Palestrante: Leonardo Mello (IBASE)

Semana 5 (07/04): Lições Africanas para a Igualdade na Diversidade Humana: a questão da não-violência.

Palestrantes: Mãe Beata de Iemanjá, Conceição Evaristo e Prof Evandro Vieira Ouriques.

Semana 6 (14/04): O Paradigma do Desenvolvimento Humano como orientador da cobertura.
Palestrante: Flávia Oliveira (O Globo)

Semana 7 (28/04): Orçamento nacional: As possibilidades de intervenção e orientação para o social.
Palestrante: Leonardo Mello (IBASE)

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Estudante de Comunicação, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ