A Aids completou 25 anos desde o surgimento do primeiro caso e depois de superados, com grande custo, erros fatídicos na sua divulgação, a imprensa volta a apostar no sensacionalismo para vender. ‘Bactéria mortal se espalha entre gays nos EUA’ (BBC Brasil, 15/1/08) e ‘Cientistas dos EUA detectam transmissão de bactéria resistente entre gays’ (Folha Online, 16/1/08) são duas das notícias divulgadas pela mídia nacional sobre artigo publicado em 15 de janeiro sobre variedade da bactéria Estafilococos Aureus Resistente à Meticilina (MRSA, na sigla em inglês) que está acometendo homens que fazem sexo com homens nas cidades norte-americanas de São Francisco e Boston.
Não fosse pela data de publicação das notícias da BBC, reproduzidas no Estado de S.Paulo, G1, Terra e Folha de S.Paulo, diria, facilmente, que se trata das primeiras notícias publicadas sobre a Aids nos idos de 1981, quando ainda não era assim batizada a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Naquela época, no entanto, o contexto social era bastante distinto do atual. A comunidade gay norte-americana ganhava força política e iniciava uma grande investida para sair do anonimato e conquistar um espaço de honra na sociedade na ainda conservadora nação que preza pela moral e bons costumes.
Justificativa epidemiológica
No campo da ciência, a Aids aportou diante de uma comunidade repleta de credibilidade, conquistada anos antes com a erradicação da varíola em todo o mundo, o aumento da expectativa de vida proporcionado pelas vacinações em massa e acesso a medicamentos e a conquista da manipulação da vida com o bebê de proveta. Ao mesmo tempo, a Síndrome foi um nocaute ao restaurar o medo de epidemias passadas e trazer desconhecimento e dúvida para cientistas e médicos que estavam à frente de uma doença e agente patológico desconhecidos e que causavam a morte de seus portadores.
Os autores das notícias agora estampadas na internet e jornais não tiveram o cuidado – ao que tudo indica – de ler o artigo publicado em 15/1/2008 na revista científica Annals of Internal Medicine (ver aqui). Preferiram, ao contrário, repetir o tom alarmante dado pela BBC e pelos autores da pesquisa, liderada por Binh Na Diep, da Universidade da Califórnia, com o olhar ingênuo ainda presente no jornalismo de ciência, de que o discurso científico é verdadeiro e, portanto, não é passível de ser criticado por um reles profissional da comunicação. Somada a isso está a comodidade de reproduzir notícias de agências, com a vantagem divulgá-las rapidamente e com a credibilidade de cada uma delas, a exemplo da BBC.
O estudo científico em questão identificou a elevada disseminação de uma bactéria resistente a antibióticos nas cidades norte-americanas, em áreas com elevado número de homens que fazem sexo com homens, e tentou, com isso, alertar para a sua transmissão sexual (anal), embora ela não tenha sido comprovada. O artigo conduz, assim, a imprensa e leitores a uma conclusão de efeito moralizante, embora esteja à mostra uma justificativa meramente epidemiológica.
A variante USA300
No caso da Aids, assim como agora se mostra com a variante da MRSA, a doença serviu como uma ótima desculpa para estigmatizar um grupo de preferências sexuais condenadas pela sociedade. E não nos enganemos. Ao contrário do que alguns cientistas ainda insistem em defender, as informações apelativas, tendenciosas e erradas não surgem por responsabilidade exclusiva dos jornalistas, mas também de suas fontes primárias, os próprios cientistas e médicos. Quem não se lembra da forte associação – provavelmente presente até hoje no imaginário social – de Aids e homossexualismo? Imagem essa que os próprios especialistas ajudaram a construir no início da história da Aids, quando se frisava mais o ‘comportamento promíscuo’ desse grupo do que do risco de relações sexuais desprotegidas.
A pesquisa sobre a bactéria resistente que despertou interesse da mídia preenche requisitos que são irresistíveis à mídia: doença desconhecida, que causa mortes, que pode potencialmente atingir um grande número de pessoas e cuja transmissão é associada a comportamentos sexuais condenados ou – para não ser tão enfática – desencorajados pela sociedade.
Vamos aos detalhes que as notícias omitiram, mas que são importantes no jornalismo de ciência, principalmente quando se referem a questões de saúde pública.
A bactéria MRSA, chamada de mortal, possui inúmeras variantes, entre elas a USA300, descoberta em 2000 e objeto de estudo do artigo publicado pela equipe da Universidade da Califórnia. Essa variante pode causar feridas na pele, necrose nos tecidos, pneumonia, atacar o coração, propagar-se pela corrente sanguínea e já foi registrada em pessoas distintas de homens que fazem sexo com homens. A taxa de mortalidade das MRSA pode variar grandemente conforme a variante, mas teria, segundo dados do Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês) dos EUA, cerca de 19 mil mortes no apenas país ao longo de 2005. Portanto, as bactérias resistentes representam motivo de atenção para a saúde pública, já que sua incidência tem crescido ano após ano, e hoje já estão disseminadas pelos Estados Unidos, Canadá e nove países europeus.
Vulnerabilidade ampliada
A variante USA300 é resistente a alguns grupos de antibióticos disponíveis, mas os médicos lembram que há tratamento, como para outras MRSA, embora ele possa ser mais demorado, caro e dolorido para seus pacientes. O CDC enfatiza que a USA300 já foi identificada em grupos distintos dos descritos na pesquisa em questão e, ‘felizmente’, tranqüiliza, ‘ainda há alternativas efetivas para tratar as infecções quando antibióticos são necessários’.
Embora os autores da pesquisa sugiram que a MRSA possa estar se disseminando por via sexual, mais especificamente via sexo anal, eles afirmam que mais pesquisas são necessárias até que se possa relacionar a transmissão da bactéria com a relação sexual. Até lá, permanece a informação de que a transmissão da MRSA é pelo contato da pele e, portanto, a recomendação é que após a relação sexual protegida o corpo seja higienizado com água e sabonete. O CDC afirma ainda que ‘não há evidências neste momento que sugiram que a MRSA seja transmitida sexualmente no sentido clássico’, mas o sexo pode ser uma das formas de infecção por meio do contato de pele, forma de transmissão mais conhecida.
Supondo que, mais à frente, se confirme que a transmissão da USA300 ocorre também por meio do sexo anal, não se pode esquecer – como também ocorreu no caso da Aids – que os homens estão longe de ser os únicos adeptos deste tipo de relação sexual. Somado a isso, está uma questão de nomenclatura que o leitor deste texto já deve ter notado: a maior incidência da variante USA300, segundo os autores da pesquisa, está entre homens que fazem sexo com homens (ou men who have sex with men), traduzido pela mídia nacional como gays, mas que inclui os bissexuais ou mesmo heterossexuais que não se consideram parte das categorias anteriores, o que estende, portanto, a vulnerabilidade a grande parte da sociedade, como no caso da Aids.
Preconceito e estigma
Aproximar a sociedade dessa ‘bactéria mortal’ é pra lá de incômodo… O que se pretende aqui não é produzir um efeito ao revés, de pânico entre os leitores e hipocondríacos de plantão, mas atentarmos para as sutilezas dos discursos moralizantes maquiados com a credibilidade e a legitimidade da ciência.
Deve-se sim, a exemplo de como aprendemos no caso da Aids, falar em vulnerabilidade, da qual, hoje sabemos, estamos todos à mercê. Mais ainda no caso da MRSA, que pode ser contraída pelo contato de pele, em procedimentos cirúrgicos invasivos ou quando o sistema imunológico está suprimido.
Dos anos 1980 até os dias atuais, muito caminhamos na área de divulgação de ciência, em especial da saúde, tema de grande interesse público. Cresceu a responsabilidade do jornalista, melhorou o acesso às informações dos leitores e a conscientização da sociedade em relação aos seus direitos, amadureceu a relação entre cientistas e jornalistas e minimizou-se a visão da ciência como única verdade dos fatos. No entanto, as informações contidas em artigos científicos, sobretudo aqueles de elevado índice de impacto ou relevância na comunidade científica, ainda intimidam alguns jornalistas, que insistem em reproduzir ou mal interpretar suas informações como fatos, ou ainda simplesmente repetir as informações divulgadas por agências de notícias sem acessar o artigo científico. Ingenuidade, despreparo ou má-fé?
O olhar atento à mídia nos ensina que a história não basta para melhorar a qualidade da divulgação de doenças para a população, a exemplo do que tem sido feito no caso do alarde midiático recente em relação aos casos de morte pela febre amarela no país. É preciso apontar, debater, argüir e insistir na necessidade de um jornalismo responsável, prestador de serviços, analítico e de qualidade em todas as instâncias, mas, sobretudo, combater qualquer tentativa de preconceito e estigma social.
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Editora-adjunta da revista ComCiência, mestre em História Social pela USP e pesquisadora do Labjor-Unicamp