Na quarta-feira da semana passada houve um ato público na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Está no site do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo: ‘Mais de duzentas pessoas, entre dirigentes sindicais, profissionais, professores e estudantes de jornalismo de todo o País, participaram hoje (17/9), em Brasília, de um ato público em defesa da formação específica em jornalismo e da regulamentação profissional da categoria.’ Segundo a nota, a intenção dos manifestantes foi ‘sensibilizar os ministros (do Supremo Tribunal Federal) que devem julgar, ainda este ano, o recurso extraordinário (RE/511961), ação que questiona a constitucionalidade da legislação que regulamenta a profissão no Brasil’.
Embora a imprensa fale pouco do tema, é grande a expectativa em torno do julgamento. Trata-se de saber se a exigência do diploma de jornalista para os que trabalham na imprensa impõe ou não uma barreira ao direito de livre expressão, assegurado na Constituição. Por que só diplomados em Jornalismo podem ser empregados em jornais? Quanto a isso, o País espera a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Mas o debate não fica só aí. Há outras frentes em que os destinos da profissão de jornalista estão em jogo. Citemos duas. No âmbito do Ministério do Trabalho, um grupo de trabalho pretende redigir um projeto para a regulamentação da atividade. A segunda frente está no Ministério da Educação.
Recentemente, o ministro Fernando Haddad lançou a idéia de constituir uma comissão para discutir as diretrizes da formação dos cursos de Jornalismo, identificando e delimitando com maior clareza os conhecimentos práticos e teóricos que precisam ser dominados pelos que concluem a graduação. A partir daí, o ministro espera abrir uma nova possibilidade para a formação de jornalistas, sem prejuízo dos cursos que já existem: ‘A comissão fará uma análise das perspectivas de graduados em outras áreas, mediante formação complementar, poderem fazer jus ao diploma’ (Folha de S.Paulo, 17/9/2008).
Desde logo, fica bem claro que essa discussão não se confunde com a outra, sobre exigência – ou não – de diploma para que alguém seja empregado na área, o que é assunto para o Ministério do Trabalho. Ela cuida especificamente das diretrizes da formação. Sua pauta é educacional, não trabalhista. Seu objetivo é estudar a possibilidade de que gente como cientistas sociais ou economistas, por exemplo, possa, por meio de um curso mais breve, algo em torno de dois anos, habilitar-se a ter um emprego regular em veículos de informação. A iniciativa, como se vê, não ameaça nem reforça a exigência do diploma.
Ainda sobre exigência do diploma, é bom que se saiba que, na prática, ela ajudou a elevar o padrão da profissão no Brasil. Pesa contra ela, no entanto, o fato de ter sido imposta pela ditadura militar (o decreto-lei é de 1969) e, agora, surge com força essa alegação de que ela agride princípios constitucionais, dúvida que só pode ser dirimida pelo Supremo. De todo modo, não é aí, nessa formalidade abraçada por interesses corporativos, que se encontra o âmago do debate. O que deve falar mais alto, nessa matéria, não é a defesa sindical de uma categoria, mas o direito à informação, de que todo cidadão é titular. Essa é a pedra de toque. O que se deve buscar não é o conforto dos que hoje estão empregados, mas o melhor sistema para assegurar qualidade à mediação do debate público.
Por isso é que se pode afirmar: o ponto dramático repousa sobre a qualidade das faculdades. Onde elas são boas, seus formandos têm lugar no mercado. Mesmo em países que não dispõem de nenhuma obrigatoriedade de diploma, como os Estados Unidos, a Alemanha, a França e outros, nota-se a preferência dos empregadores por jovens que tenham cursado uma boa escola de Jornalismo. Aí, as faculdades adquiriram autoridade não em função de uma reserva de mercado, mas pela capacitação que são capazes de aportar aos estudantes. E no Brasil? O que seria das faculdades se elas não estivessem protegidas pela reserva de mercado? Elas sobreviveriam como estão? Ou seriam forçadas dramaticamente a se aperfeiçoar? Se seriam obrigadas a se aperfeiçoar, por que não cuidar disso desde já?
Que ninguém se iluda: boas faculdades são fundamentais. Elas não são dispensáveis, como alguns ainda tentam fazer crer. A presunção de que o jornalismo é um ‘ofício que se aprende na prática’ é tão ingênua quanto despreparada. Contra isso se levantou, desde o final do século 19, Joseph Pulitzer. De magnata da mídia americana, ele se projetou como o principal inspirador do Curso de Jornalismo da Universidade de Colúmbia, que só começaria a funcionar em 1912, um ano após a sua morte. Contra o comodismo de seus contemporâneos, que viam na criação da escola uma perda de tempo, Pulitzer afirmava que era necessário transformar aquilo que não passava de um ofício numa profissão nobre. E acertou. Seu texto em defesa da escola de Colúmbia, lançado em 1904, resiste como um pequeno clássico (The School of Journalism, Seattle: Inkling Books, 2006). Deveria ser lido pelos adeptos da tese de que ‘jornalismo se aprende na prática’.
Qualquer um de nós, quando vai ao médico, ao advogado ou ao dentista, procura profissionais com bons currículos acadêmicos e científicos. Mas, quando se trata de servir informação ao público, imaginamos que um prático, sem formação, pode dar conta do recado. Não pode – ou não pode mais, a não ser excepcionalmente. A porta para o futuro, também nesse caso, está na qualificação dos profissionais. Com diploma ou sem diploma, é da qualificação que dependerá a consistência e a fecundidade do nosso debate público.
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Eugênio Bucci, jornalista, é professor da Escola de Comunicações e Artes e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados, da USP