Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Lippmann, Kovach e Rosenstiel, um diálogo após décadas

Quase um século separa as ideias levantadas por Walter Lippmann em Opinião pública, livro escrito em 1922, das propostas apresentadas por Bill Kovach e Tom Rosenstiel em Os elementos do jornalismo, que teve a primeira edição publicada em 2003. Mas apesar desses 81 anos de distância entre os dois trabalhos, ainda é evidente um diálogo contemporâneo ligando o debate sobre jornalismo apresentado nestas duas obras. Uma ligação que se apresenta a partir do resgate de conceitos pioneiros elaborados por Lippmann até os dilemas da profissão que ainda sobrevivem após tantas décadas de estudos.

Num primeiro passo em busca da construção deste diálogo, aqui é preciso apresentar alguns dos principais conceitos apresentados por Lippmann em 1922, sendo parte destes observada também na obra de Kovach e Rosenstiel. Um elemento-chave para se aproximar da visão que Lippmann tinha da imprensa é o conceito de estereótipo que, de forma pioneira, foi apontado pelo pesquisador como um recurso para a generalização no jornalismo.

Diante de uma tendência dos jornalistas em generalizar sobre outras pessoas baseando-se em ideias fixas, ou seja, em estereótipos, Lippmann defende que as ocorrências públicas que tratam os jornais permitem que os leitores conheçam na prática somente uma fase e um aspecto sobre tal ocorrência. Lippmann destaca ainda a importância do estereótipo na disputa do jornalismo contra o relógio, o que também é reconhecido mais tarde por Kovach e Rosenstiel, diante da correria ainda maior nas redações modernas. Mas é importante esclarecer que Lippmann diferencia os estereótipos de ideais, apontando que o mundo estereotipado não é necessariamente o mundo que gostaríamos que fosse, e, sim, o tipo de mundo que esperávamos que fosse.

Para Lippmann, é evidente o papel que essas ‘imagens em nossas cabeças’ têm na formulação de crenças preconcebidas. E aqui podemos entrar em outro conceito pioneiro do pesquisador norte-americano, o de pseudo-ambiente, apontado como o conjunto de imagens criadas indiretamente pela ação da mídia e do noticiário em nossos mapas mentais. Ou seja, uma realidade estruturada não com as informações e o conhecimento obtidos por experiências vivenciadas por nós mesmos, mas sim, uma realidade aprendida com aquilo que obtemos da mídia.

Dentro desse debate, Lippmann defende que o único sentimento que alguém pode ter acerca de um evento que não vivenciou é o sentimento provocado por tais imagens mentais, tais estereótipos. Segundo o autor, são estas imagens estereotipadas da realidade que determinam o sentimento do público e elas resultam menos da capacidade cognitiva do indivíduo e mais da manipulação e administração do consenso social pelas partes interessadas.

Nível superficial de exatidão

Abordados esses dois conceitos básicos que pautam a obra de Lippmann, podemos buscar uma maior aproximação entre o autor de Opinião pública e os propositores dos novos elementos do jornalismo. Um dos primeiros exemplos de visões compartilhadas entre Lippmann, Kovach e Rosenstiel pode ser percebido na aplicação do conceito de verdade no jornalismo. Ambas as obras relativizam o termo, dando uma dimensão mais palpável para a verdade que se busca nos jornais. Mas isso não significa desmerecer o conceito. Pelo contrário, este é reconhecido como um dos princípios do exercício do jornalismo, tanto o praticado há mais de oito décadas como o jornalismo moderno, potencializado em velocidade e em quantidade de produção de notícias diante dos avanços tecnológicos.

Kovach e Rosenstiel, inclusive, abordam o conceito de verdade no primeiro dos nove elementos do jornalismo apresentados no livro de 2003. Os pesquisadores apontam que a primeira obrigação do jornalismo é com a verdade, mas reconhecem as divergências do significado do termo. E recorrem a Lippmann para esclarecer o dilema, sendo que o autor de Opinião pública vai defender a necessidade de uma distinção entre notícia e verdade: ‘A função das notícias é sinalizar um evento, a função da verdade é trazer luz aos fatos escondidos, pô-los em relação um com o outro e fazer uma imagem da realidade com base na qual os homens possam atuar’ (LIPPMANN, 2008, p 304).

Kovach e Rosenstiel acrescentam ainda a necessidade de uma contextualização para transformar a verdade jornalística em algo além de simples precisão. Recomendam um processo de construção da verdade, processo este que pode exigir também uma real interação com o público consumidor das notícias. Para a dupla de pesquisadores, o jornalismo deve trabalhar uma forma prática e funcional da verdade, e não buscar a verdade em seu sentido absoluto. Eles defendem que o repórter, sozinho, não tem como ir muito além de um nível superficial de exatidão numa primeira matéria.

Transformar o significativo em interessante

Mas essa primeira matéria pode levar a uma segunda, na qual as fontes das notícias já responderam aos erros e omissões da primeira, da segunda para a terceira, e assim por diante. E, neste processo, o contexto vai sendo acrescentado em cada matéria nova. ‘É muito mais produtivo, e mais realista, entender a verdade jornalística como um processo – ou uma caminhada contínua na direção do entendimento – que começa com as primeiras matérias e vai se construindo ao longo do tempo’ (KOVACH e ROSENSTIEL, 2004, p70).

Mas o debate comum aos dois livros não se limita a conceitos teóricos. É possível apreender da obra de Lippmann orientações práticas para o exercício do jornalismo que não perderam a validade nestas oito décadas e que hoje vão ao encontro do que propõem Kovach e Rosenstiel. Um debate que pode ajudar o ainda estudante que está ingressando no mundo do jornalismo a derrubar alguns mitos clássicos, assim como trazer para o profissional experiente uma reflexão necessária na prática do dia-a-dia das redações modernas.

Com novas tecnologias acelerando o consumo de notícias, testemunhamos uma crescente padronização dos textos jornalísticos. Mas há 80 anos, Lippmann já tinha a convicção de que, para assegurar a atenção do leitor, o jornalista deve induzi-lo a sentir uma sensação de identificação pessoal com as matérias que ele está lendo. Parecendo andar pelo mesmo caminho, Kovach e Rosenstiel apontam como outro de seus elementos do jornalismo a necessidade de lutar para transformar o fato significante em interessante e relevante.

Hoje, parece predominar a produção de notícias curtas que cumprem a função ao segurar o leitor por períodos também curtos. Mas Kovach e Rosenstiel acreditam numa distorção no debate que separa informação e relato, ou seja, que separa o que as pessoas precisam do que as pessoas querem. O que se evidencia, segundo os autores, é que a maioria das pessoas quer, na verdade, as duas coisas. ‘A tarefa do jornalista é encontrar formas de transformar o significativo em interessante, em cada matéria, e encontrar a mistura exata do sério e do menos sério que oferece no relato do dia’ (KOVACH e ROSENSTIEL, 2004, p 226).

Ajudar a pôr ordem nas coisas

Após identificar concordâncias entre a visão de Lippmann apresentada nas primeiras décadas do século passado e os elementos do jornalismo propostos por Kovach e Rosenstiel neste início de novo século, temos que reconhecer a existência de pelo menos um forte ponto de discórdia entre os autores das duas obras. Apesar das ideias compartilhadas entre os três pesquisadores, um ponto central os diferencia na abordagem sobre o papel exigido do jornalismo.

Lippmann defende que o jornalismo assume uma função maior do que a que lhe cabe. Já Kovach e Rosenstiel, embora reconheçam deficiências que afligem o jornalismo moderno, parecem manter as esperanças mais otimistas ao indicar o papel dos jornalistas no fornecimento de um elemento único: a informação independente, confiável, precisa e compreensível, elementos importantes para que o cidadão seja livre.

Para Lippmann, a conclusão prática é de que a imprensa é muito mais frágil do que a teoria democrática já admitiu. Ele considera que os jornais falham na tarefa de traduzir toda a vida pública da humanidade, de forma que todo homem adulto alcance a ter uma opinião em todo debate. Um trabalho complexo demais para qualquer setor da sociedade, mas que a imprensa, segundo Lippmann, teria realmente acreditado ser capaz de realizar.

Numa época em que a velocidade da divulgação das notícias em grande quantidade estava longe dos padrões atuais do jornalismo online, Lippmann já reconhecia que todos os repórteres do mundo trabalhando todas as horas do dia não poderiam testemunhar todos os acontecimentos do mundo. O que se consegue cobrir é resultado, principalmente, de uma rotina padronizada, destaca o pesquisador.

Para Lippmann, em nenhum momento a imprensa deveria ser encarada como uma substituta para outras instituições. Ele defende que a imprensa é, sim, ‘no melhor dos casos, serva e guardiã das instituições; e no pior, um meio pelo qual alguns exploram a desorganização social para seus próprios fins’ (LIPPMANN, 2008, p 308). E sugere que, para serem adequadas, as opiniões públicas precisam ser organizadas para a imprensa, e não pela imprensa, dentro de uma organização que estaria a cargo da ciência política. Visão esta que foi alvo de críticas por indicar uma tendência elitista, sugerindo a organização da sociedade pelos intelectuais, e não por um processo democrático envolvendo todos os cidadãos.

Já Kovach e Rosenstiel ainda demonstram otimismo. Embora reconheçam que a ideia da imprensa como um guardião – decidindo que tipo de informação o público deve saber e qual não – não mais define bem o papel do jornalismo, os dois pesquisadores mantêm a crença de que a principal finalidade do jornalismo é fornecer aos cidadãos as informações de que necessitam para serem livres e se autogovernar.

A diferença hoje, segundo Kovach e Rosenstiel, é que novo jornalista não decide mais o que o público deve saber, mas sim, ajuda o público a pôr ordem nas coisas. O jornalista, defendem, se converte numa espécie de moderador de discussões, e não em um simples professor ou conferencista, enquanto o público se converte num híbrido de produtor e consumidor. Mas isto não significa simplesmente acrescentar interpretação ou análise a uma reportagem. Para a dupla de pesquisadores, a ‘primeira tarefa dessa mistura de jornalista e explicador é checar se a informação é confiável e ordená-la de forma a que o leitor possa entendê-la’ (KOVACH e ROSENSTIEL, 2004, p 41).

Conclusões

O diálogo proposto aqui pode ser aprofundado com tantos outros clássicos da teoria do jornalismo moderno. Mas um ponto que é preciso ser avaliado é a carência por reais avanços nestes debates. Discussões como a que Lippmann iniciou há 80 anos, em grande parte com propostas pioneiras, são raras. E o jornalista, por mais prático que seja o seu exercício profissional, não deve nunca deixar de refletir sobre o seu trabalho, uma reflexão que, como percebemos aqui, pode tratar tanto de conceitos teóricos que fazem parte do dia-a-dia das redações como questões técnicas que carecem de embasamento para uma execução eficiente.

É preciso que essa reflexão se expanda dentro das academias e centros de pesquisa do jornalismo e que, principalmente, seja levada também para o mercado de trabalho, onde profissionais, tanto jovens como experientes, deveriam ser mais atuantes nesse processo constante de pensar o jornalismo. Respeitando tudo que já se construiu até agora, o diálogo entre diferentes autores deve ser sempre incentivado. Mas o que não podemos é dentro de outros 80 anos ainda recorrer a Lippmann diante da falta de novos pesquisadores que acrescentem algo concreto no debate sobre os rumos do jornalismo, principalmente com um cenário repleto de tantas transformações na profissão como o momento vivido hoje.

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Jornalista, mestrando em Jornalismo pela UFSC, Florianópolis, SC