Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mais que um produto de fabricação em massa

Na última década, o Brasil passou por profundas transformações no setor de educação superior. As privatizações ocorridas a partir de 1994, com o País sob a gestão de Fernando Henrique Cardoso, culminaram em um forte processo de liberalização da economia e descaso com as ações sociais. Nesse ínterim, nem a educação escapou de ser transformada em produto para a geração de lucros a empresários pouco comprometidos com a formação acadêmica dos jovens estudantes.

Para cumprir a meta de ter, até 2010, 30% da população entre 18 e 24 anos dentro de uma instituição de ensino superior (IES), o governo abrandou os critérios de abertura e reconhecimento de cursos e estabelecimentos. Na época da Lei 10.172, de 9 de janeiro de 2001, que prevê esses números, setores organizados da sociedade civil e da comunidade acadêmica colocaram-se contra a banalização da educação universitária promovida pelo então ministro Paulo Renato de Souza, principal alvo das críticas. A facilitação da abertura e reconhecimento de instituições de ensino pôde, então, ser justificada por essa conveniente lei.

Prática excludente

Com a adoção de uma estratégia focada na quantidade, em detrimento da qualidade, a educação universitária se desvirtua e assume gradativamente características de mercadoria industrializada. É preciso recuperar os investimentos em menor tempo possível, de acordo com os ditames do sistema econômico vigente, e formar bacharéis em escala comercial.

Com o aumento do número de IESs privadas – 633 em 1994 e 1.652 em 2003, segundo dados do Ministério da Educação – e a conseqüente formação de concorrência, a publicidade começou a ser largamente usada na briga pelos vestibulandos. Os anúncios publicitários destinados a vender educação superior estão tão presentes na televisão, rádio, internet e mídias urbanas, como as propagandas de lojas de móveis ou telefonia celular. Os períodos de inscrição para o vestibular alegram agências e veículos de comunicação, à semelhança de datas como o dia das mães, dia das crianças ou Natal. Investe-se alto na produção, com direito a vídeos em película e à contratação de garotos propaganda sem nenhuma relação lógica com o serviço anunciado. Recentemente, os ex-BBBs Grazielli e Alan estrelaram o comercial de uma recém-criada faculdade em Brasília. Outra instituição de ensino, também na capital, mantém um miniprograma no intervalo do Fantástico, um dos espaços de mídia mais caros da TV Globo.

Porém, não é só a simples existência da propaganda de estabelecimentos privados de ensino superior que causa preocupação. Nos anúncios, a exclusão das classes menos favorecidas é institucionalizada e reforçada pelo discurso neles contidos. E a educação, como bem público e instrumento de emancipação humana que deveria ser, novamente fica restrita àqueles que se encaixam no padrão divulgado e que podem pagar as altas mensalidades cobradas. Pesquisa feita com peças publicitárias de IES veiculadas de abril a outubro de 2005, no Distrito Federal, comprova essa prática elitista e excludente: em mais de 90% do material analisado, não havia nenhum ator negro, por exemplo.

Espírito crítico

As estratégias de marketing usadas para conseguir mais matrículas não diferem em nada daquelas empregadas por segmentos de mercado diversos. Dois ‘argumentos de venda’ recorrentes referem-se à comodidade do vestibular agendado, feito no dia e hora que mais convier ao estudante, e à praticidade da formação em tempo menor que o tradicionalmente gasto. Percebe-se aí a clara substituição da relação aluno X instituição de ensino pela relação consumidor X empresa. Muitas IES particulares também apelam para o conhecido anúncio ‘varejão’, como nas liquidações de fim de feira. Nele, anuncia-se o preço da mensalidade promocional em números garrafais, em especial nos outdoors.

É um retrocesso tratar a educação como um bem de consumo. Essa prática que exclui e perpetua as diferenças sociais, perfeitamente aceitável há décadas atrás, não pode ter espaço em um país que autoproclama-se democrático. A incoerência está no fato de o consumo ser, por natureza, antidemocrático e fator determinante de segregação e exclusão da maioria.

A educação, em especial a de nível superior, deve ter como fim subsidiar cidadãos para enfrentar muito mais que um mercado de trabalho competitivo e exigente. Ela precisa formar um espírito crítico capaz de propor soluções de mudanças estruturais na sociedade e questionar suas regras e relações de poder, a fim de construir uma nação consciente de suas responsabilidades no desenvolvimento do País. E o diploma, quando produto de fabricação em massa ligado a interesses puramente comerciais, é incapaz de cumprir essa função.

******

Publicitário, Brasília