Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Moderno, cronometrado, industrial

Neste artigo, refletimos sobre a supremacia do fator tempo no jornalismo impresso, tema abrangente e que requer o entendimento de vários fatores. Destacaremos três fatores principais neste trabalho. O primeiro refere-se à influência do tempo moderno, cronometrado e industrial. No segundo aborda-se o tempo de normas, principalmente o prescrito. No terceiro leva-se em conta o fator tempo no manual da Folha de S. Paulo.

O tempo moderno e o jornalismo impresso taylorizado

O jornalismo está inserido no tempo. No tempo medido pelo relógio.

O tempo de trabalho produz a notícia: na concepção marxista, o produto do trabalho que assume a forma de mercadoria e em sendo assim, ‘vale por si’, ou seja, tem valor. Para Traquina (2001), ‘as notícias são um valor máximo; o seu trabalho é um trabalho de 24 horas’.

Segundo Rojas (2001, p. 47 ):

‘A uma sociedade onde o princípio dominante é esse valor, homogêneo, uniforme e abstrato, corresponderá um tempo homogêneo, abstrato e uniforme, tempo que, sendo social-geral e instrumental [o relógio], constitui justamente o novo marco temporal característico da modernidade’.

Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique pondera que em razão da industrialização do jornalismo, ‘assiste-se a uma verdadeira e formidável taylorização de sua profissão’ [de jornalista] (2001, p. 51).

A questão remete ao fazer jornalístico serializado – imposto pela industrialização. Muito embora o jornalismo apresente caráter documental, seja de interesse público, a notícia é um produto perecível, sua veiculação, é cada vez mais rápida em função do suporte tecnológico de alguns jornais.

O fator fundamental a ser esboçado é o nascimento da organização científica do trabalho – que se produz inicialmente nos Estados Unidos no fim do século XIX e no início do século XX, sob a influência de Frederick W. Taylor (1856/1915), conhecido como o pai da administração científica.

Entre os vários princípios que norteiam a sua teoria, sem dúvida, o principal é ocupado pela questão do tempo. Foi o engenheiro norte-americano Taylor que introduziu o cronômetro – para quantificar os diferentes tempos de uma tarefa. É o chamado estudo dos tempos e dos movimentos que marcou a fábrica e a empresa do século XX nos países industrializados.

Sobre isso Chanlat (1996, p. 117):

‘(…) é evidente que os sistemas de direção e de organização do trabalho que introduziram o taylorismo e o fordismo têm uma ligação estreita com a afirmação de uma concepção quantitativa do tempo. O tempo de trabalho medido de modo sempre mais preciso transforma-se em um elemento-chave para a empresa que, por procedimentos de organização marcados pelo selo da racionalidade, se propõe a maximizar o rendimento simultâneo das máquinas e do tempo dos homens que lhe são justapostos’.

No caso das empresas jornalísticas, lidar com o tempo é tarefa essencial. Com a industrialização o trabalho é regulado pelo tempo ou mais precisamente, pelo tempo mecânico do relógio.

No mundo desenvolvido, os jornais despontam como empresas e segundo Traquina (2001), houve um duplo processo que decorre todo o século XIX e prossegue no século XX de comercialização dos mídia e a profissionalização dos seus agentes, os jornalistas.

Tempo de normas

Na sociedade moderna ocidental os homens e mulheres modernos conceberam um novo marco temporal que só conseguiu afirmar-se a partir e somente pela invenção do relógio mecânico moderno, cuja quadrícula de horas, minutos e segundos passou a ser difundida socialmente no século XIV.

‘(…) o tempo deixou de ser uma dimensão a mais da experiência vivida e cotidiana, para transformar-se em uma entidade que parece ter sido expropriada aos próprios homens. (…) Vivem agora sua vida como ‘inserida’ no tempo, que regula as ações e existe à margem deles.(…)’ (Rojas, 2002, p.69).

Também a revolução industrial e o processo de industrialização influenciaram, sobremaneira, a experiência e os modelos de tempo de trabalho nas organizações produtivas.

Chanlat (1996), assinala duas dimensões sob as quais se exprime a problemática do tempo de trabalho na empresa: o tempo como duração ou ‘tempo externo’ – representado fundamentalmente pelo horário de trabalho, ou seja, a quantidade de tempo que constitui a prestação de trabalho de uma jornada – e o tempo como ritmo e cadência da atividade produtiva ou ‘tempo interno’ – está relacionado com as características e a intensidade do tempo de trabalho inserido em determinada duração.

No caso do jornalismo impresso, as empresas adotaram novos procedimentos administrativos para controlar, na prática, este tempo, principalmente habilitando uma estrutura de marcos temporais, capaz de funcionar de forma adequada às horas de fechamento.

Com isso o jornalismo escrito ganhou novos procedimentos, principalmente a partir das décadas de 70 e 80 no Brasil, com os manuais de jornalismo impresso. Um dos seus principais objetivos é sem dúvida, regular as ações de trabalho e com isso padronizar no tempo o fazer e o produto jornalístico. Serão abordados aspectos, nesse sentido, do manual da Folha de S. Paulo.

‘Para ressaltar um aspecto fundamental do tempo de trabalho nas sociedades nascidas da revolução industrial: trata-se de um tempo caracterizado pelo constrangimento, pela obrigação. E é em grande parte através de normas que impõem este tempo – verdadeiro tempo central da sociedade industrializada em que a massa dos trabalhadores e, de modo mais geral, todos os membros do sistema se integram (…)’ (Chanlat, 1996, p.116).

O tempo do manual da redação

A Folha de S. Paulo foi fundada em 19 de fevereiro de 1921. A necessidade de normatizar o jornal foi iniciada em 1984, tendo como fio condutor o projeto editorial que vem se desenvolvendo desde os meados da década de 70.

Segundo o Manual FSP, na introdução:

‘O novo manual também traduz uma flexibilização progressiva das normas presentes nas edições de 1984 e 1987, mais impositivas. Ele consubstancia os princípios da última versão do projeto editorial da Folha – divulgada em 1997 e aqui reproduzida – e procura orientar a aplicação desse projeto na prática cotidiana dos jornalistas’ (p.7).

Interessante notar que várias normas que compõem o manual de 1984 e de 1987 são, originalmente, mais antigas. Algumas das normas que norteiam o jornal foram elaboradas no chamado período Nabantino, quando José Nabantino Ramos, advogado e com doutorado pela USP, assumiu a direção das Folhas – Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite – em 10 de março de 1945. Nabantino permaneceu no comando das Folhas até 1962. Em 13 de agosto de 1962 vendeu as Folhas aos novos proprietários: Otávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho.

Segundo a socióloga Gisela Taschner (1992), Nabantino teve que lidar com ‘a alta dos preços do papel desde 1958, com a aceleração inflacionária desde 1959, e com desaceleração econômica a partir de 1962′( p. 99).

Pela ótica da gestão, verifica-se, o período Nabantino é de fundamental importância também para a compreensão do jornalismo impresso e sua práxis. Ele é o principal articulador e um dos pioneiros de um novo fazer jornalístico, baseado principalmente, em regras de controle da produção jornalística. Nabantino editou as primeiras ‘normas de trabalho’para a redação das Folhas – Manhã, Tarde e Noite – em 1959.

Em seu livro, ‘Jornalismo, Dicionário Enciclopédico’, publicado em 1970, Nabantino escreve:

‘Procedendo eu da advocacia, que se desenvolve sob a disciplina de normas, sentia, como diretor de jornal, a falta de regras, tanto para o trabalho diário, como para reger as relações do periódico com o meio em que atuava. Estranhei profundamente que tudo isso se fizesse ao sabor da improvisação e do critério’. (p.15).

Nabantino foi um empreendedor e na verdade suas ‘normas de trabalho’ deixam claras a sua preocupação em padronizar o jornalismo para atender a demanda do jornal como empresa.

Nabantino (1970, p.14), afirma:

‘Quando em março de 1945, assumi a direção dêsses jornais, de jornalismo eu sòmente sabia o que sabem os leitores. Tive, porém, a boa idéia de reunir diariamente e durante anos a fio os chefes de serviço, para discutir os problemas do dia e apropriar-me ràpidamente da experiência que tinham. Ao mesmo tempo, devorava tôda a literatura estrangeira que havia sobre o assunto. Dessa associação da prática com a teoria, começaram a nascer ordens de serviço esparsas, que se avolumaram no decorrer do tempo, ao ponto de exigirem, para fácil manuseio e bom entendimento, que se reunissem em volume. Editamos, então, em 1959, as ‘Normas de Trabalho da Divisão de Redação, para a elaboração da Folha da Manhã, da Folha da Tarde e da Folha da Noite’, inserindo sinceramente, entre parênteses, na capa do volume de 275 páginas, que se tratava de ‘texto provisório, destinado a execução experimental’. A experiência gerara o livro e o livro voltaria então a ser testado pela experiência. Tudo deu certo. A elaboração das ‘Folhas’, e mais tarde da ‘Folha de S. Paulo’, ganhou em eficiência e segurança, à proporção que era disciplinada por ‘Normas de Trabalho’ escritas (…)’

Os procedimentos jornalísticos eram normalmente repassados à redação oralmente, principalmente pelos jornalistas mais velhos na profissão. No entanto, à medida que foram escritos, têm também caráter documental, e foram capazes de promover a padronização das rotinas de produção e do próprio produto: o jornal que passa a ser comandado pela gestão empresarial.

É importante também ressaltar algumas idéias de Taylor para a compreensão do tempo contido no trabalho prescrito por manuais, especialmente no campo jornalístico: o plano de incentivo salarial, é um deles.

Ferreira escreve:

‘Plano de incentivo salarial – a remuneração dos funcionários deve ser proporcional ao número de unidades produzidas. Essa determinação se baseia no conceito do Homo economicus, que considera as recompensas e sanções financeiras as mais significativas para os trabalhadores’. (1997, p.15-16).

Nabantino concedia prêmios aos jornalistas por produção, mérito e alcance de metas, regras que fazem parte do atual Manual da FSP, como observa-se, estão também em pleno uso no jornal.

Diz o Manual da FSP:

‘Premiação – A Folha estimula seus jornalistas também por meio de premiações. Elas obedecem a uma graduação que vai do cumprimento formal aos profissionais que se destacam no exercício de suas tarefas às premiações pecuniárias por excelência do trabalho jornalístico ou alcance de metas. As premiações recebidas são levadas em conta no momento de fazer a avaliação do jornalista’.(p.114-15).

Conclusão

Com o jornalismo colocado como atividade industrial, o tempo passa a ter também, um caráter dinâmico dentro das organizações jornalísticas. O tempo tem um significado próprio para os jornalistas e as organizações jornalísticas que aprenderam de uma forma ímpar, lidar, administrar e lucrar com ele.

O tempo do manual é caracterizado por um ‘tempo de obrigação’ (Chanlat, 1996), imposto principalmente por normas, disponíveis nos manuais ou para além deles, com estabelecimento de organogramas, cronogramas, circulares.

O tempo de normas é revestido de um hiperpoder, muitas vezes, hipócrita: atua como mecanismo de controle editorial, dita padrões de como os textos deverão ser produzidos, em que prazo-limite (deadline),por exemplo. No entanto, ao esbarrar no tempo quantitativo, o tempo do manual é quase inútil frente ao fator tempo medido pelo relógio. O último tem a capacidade verdadeira de mudar o jornalismo.

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(*) Professora da Universidade Anhembi/Morumbi; doutoranda na ECA-USP