Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Neoliberalismo e imprensa no Brasil

‘A imprensa…parece aqueles violinistas do Titanic, que ficam tocando até o barco afundar…’ [Seção de cartas dos leitores da Folha de S.Paulo 03/02/1999 citado também por Bernardo Kucinski em ‘A mídia de FHC e o fim da Razão’ In O desmonte da nação: Um balanço da Era FHC]

Neste breve artigo buscaremos refletir sobre a noção de governabilidade cuidadosamente arquitetada ao longo da década de 1990 e apoiada sistematicamente por destacadas vozes da grande imprensa brasileira. Procuraremossituar a categoria governabilidade como um objeto de disputa inserido no campo da luta simbólica [nos termos oferecidos por Pierre Bourdieu. BOURDIEU, P. O Poder Simbólico. Bertrand Brasil. 6ª Edição. RJ. 2003]. Visamos neste sentido, (re)construir a noção de governabilidade a partir de uma perspectiva contra-hegemônica.

Assim, se para diversos setores da burguesia brasileira, ‘incrustados’ na ossatura do Estado governabilidade é sinônimo de cumprimento e aprofundamento da agenda neoliberal, para nós governabilidade deve ser entendida como ‘governar sob tendências muito concretas da sociedade, no sentido de liquidação de imensas disparidades sociais tão presentes na realidade brasileira’. [Cabe-nos fazer especial referência ao trabalho do sociólogo Francisco de Oliveira, ‘Quem Tem medo da Governabilidade?’ In Revista Novos Estudos. Cebrap. Nº 41 março 1995. Pp. 61-67. SP, onde propõe, numa perspectiva contra-hegemônica, um novo significado para a idéia de governabilidade. Compartilhamos integralmente com este novo significado.] Pretendemos ainda constatar como alguns grandes veículos da mídia impressa brasileira, a todo o momento, associaram em seus editoriais a idéia de governabilidade ao pacote prescritivo neoliberal seguido à risca na última década e meia.

Governabilidade: uma categoria estruturada no campo da luta simbólica

A fim de elucidar os termos da problematização acerca do(s) sentido(s) de governabilidade, propomos um olhar sobre alguns aspectos importantes da matriz teórica oferecida por Pierre Bourdieu [BOURDIEU.Op. cit]. O debate oferecido por tal autor nos parece o mais apropriado para evidenciar a maneira como entendemos a categoria sociológica-política governabilidade. Assim, atentamos também para o(s) sentido(s) de governabilidade edificados pela mídia no campo da luta simbólica. Entendendo que a imprensa atua como (e no) campo de produção da luta simbólica, direcionamos nossa análise sobre a capacidade desta mesma imprensa em construir discursos, alegorias, símbolos e significados que podem estruturar ou subverter uma dada ordem social estabelecida.

Neste momento, visualizamos um poder simbólico, na condição de estruturante, capaz de se exercer como um poder de construir uma determinada realidade e, que tende, necessariamente, a estabelecer um dado sentido imediato (em particular) do mundo social. [BOURDIEU.Op. cit. P.9. Neste momento, Bourdieu utiliza a expressão ordem gnoseológica: ‘o sentido imediato do mundo (…) O poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica’. A expressão nos parece bastante apropriada para compreendermos o papel da mídia/imprensa na estruturação de um dado sentido para a realidade.] Em outras palavras, uma mídia/imprensa que se mostra como um microcosmo da luta simbólica, evidenciando a disposição de agentes sociais em buscar o monopólio da violência simbólica legítima. Isto é, a condição de naturalizar uma determinada visão de mundo que atenda objetivamente às demandas destes mesmos agentes. Construir consensos de modo que se domestique uma dada dominação. Dentro deste jogo de semânticas e sentidos, assim entendemos a estruturação da idéia de governabilidade associada à adoção rigorosa de uma política econômica liberal, ortodoxa, monetarista e privatizante, que em função da atuação sistemática (também) da grande imprensa, tornou-se hegemônica no Brasil até os dias atuais.

Neoliberalismo e a imprensa no Brasil

A década de 90 foi palco de profundas transformações de cunho econômico e institucional no Brasil. Os governos Collor e FHC, de fato, consolidaram uma concepção de governabilidade entendida como sinônimo do cumprimento e aprofundamento da agenda neoliberal. Concepção esta, amplamente difundida, não apenas pelo establishment econômico da época, mas também por amplos setores da imprensa brasileira que possuíam vertiginosos interesses na política econômica então implementada, principalmente, no tocante ao desmonte, realizado através das privatizações, de setores estratégicos do SPE [Setor Produtivo Estatal]. Setores estes, que se constituíam alvos ambicionados por alguns grandes grupos de comunicação do Brasil. Orientemos tal discussão, dentro daquilo que Bernardo Kucinski classificou de ‘apoio acrítico da mídia brasileira ao tucanato na Era FHC’. [KUCINSKI, Bernardo. ‘A mídia de FHC e o fim da Razão’ In LESBAUPIN, Ivo. O desmonte da Nação: Um Balanço da Era FHC. Vozes. Petrópolis. 2001. Bernardo Kucinski é jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo.]

A discussão proposta por Kucinski nos instiga à determinadas questões e nos revela algumas peças de uma política marcada pelo interesse de grandes grupos de comunicação em ‘fatias’ do patrimônio público, que estava em vias de ser privatizado, em meados da década de 90. Como e em quais momentos os jornalistas porta-vozes destes grupos se utilizaram largamente de seus espaços na grande imprensa para tecer a governabilidade que aqui refutamos. Um sistema mídia/imprensa que ‘fechou’ questão com o sistema de poder e por tabela com o sistema de governo.

De fato, o que impulsionaria o intuito governista destes jornalistas ‘cães de guarda’ do establishment econômico – político? Não por acaso, gigantes da comunicação como o Grupo Editorial Abril, o Grupo Roberto Marinho, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, Grupo Silvio Santos e RBS, por exemplo, sistematizariam um estratégico apoio ao projeto privatizante e liberalizante iniciado na Era Collor, mas sem dúvida, verticalmente acentuado nos dois governos FHC. Não é, pois, objeto de estudo nosso o mapeamento dos interesses destes grupos de comunicação nos meandros do processo de privatização colocado em curso na década passada. Porém, a nosso ver, torna-se de suma importância visualizar as ‘parcelas’ do SPE (desmontado pelas equipes econômicas da Era FHC) apropriadas por tais grupos. [O apoio acrítico e irrestrito das empresas de comunicação a FHC foi sobredeterminado pelas volumosas privatizações do setor de telecomunicações e nas concessões de novas freqüências de Rádio e TV, além de áreas de exploração de TV à Cabo. Ver Bernardo Kucinski. Op. cit. Pp.184-185.]

No entanto, nosso propósito converge em muitos momentos com a análise de Kucinski, principalmente no que se refere à atuação da grande imprensa como ‘corpo de bombeiros’ do status quo. O governismo dos grandes grupos de comunicação é o que de fato nos interessa. A construção de um discurso hegemônico que, no limite, condiciona à via única que se traduz nos ‘dogmas’ neoliberais da década passada. Fica evidente ao analisarmos os editoriais de Veja e de Exame, ambas do Grupo Abril, e de O Globo, carro-chefe das publicações do Grupo Marinho, a construção simbólica contínua que traduz a governabilidade associada à manutenção da política econômica vigente desde os anos 90. Política econômica esta, antes criticada pelo Partido dos Trabalhadores, mas referendada por este na Carta aos Brasileiros de 2002 que garantia o cumprimento de todos os contratos estabelecidos sob a égide liberal e conservadora da Era Fernando Henrique Cardoso. O Globo em editorial publicado em meio ao ‘escândalo do mensalão’, simplificava ‘soluções’ para a crise enfrentada pelo governo Lula em decorrência de denúncias de corrupção que envolviam figurões do alto escalão governista e lideranças da máquina partidária petista, no tocante a relação/atuação em empresas estatais. O editorial postulava a ‘profissionalização absoluta da administração pública, incluindo as estatais’ [O Globo. Editorial: ‘Lições da crise’. 02/07/2005]. Isto é, o argumento reduzia as causas da corrupção no 1º governo petista às nomeações político-partidárias nas empresas estatais, e ainda, apontava como ‘lição’ daquela crise, a necessidade de se retomar a reforma do Estado brasileiro. [A crise a qual nos referimos foi a deflagrada pelo Deputado Federal Roberto Jefferson (PTB-RJ). O seu possível envolvimento com dirigente dos Correios flagrado recebendo propina de empresas que venceram licitações nesta estatal. É válido lembrar que parte da diretoria dos Correios foi indicada pelo PTB, partido que compunha a base parlamentar do governo desde o início do 1º mandato do presidente Lula. Em nossa opinião, a atual crise é, entre outros fatores, o saldo mais negativo do chamado presidencialismo de coalizão ou, no limite, o clientelismo de coalizão.]

Fica assim, comprovada a nossa hipótese que aponta setores da grande imprensa construindo as condições de governabilidade. Significando/associando a governabilidade à retomada e aprofundamento da agenda neoliberal proeminente nos anos 90, com especial destaque ao processo de privatização responsável pelo desmantelamento do Setor Estatal Produtivo. O semanário Veja, principal publicação do Grupo Editorial Abril, argumentaria também na mesma direção em editorial publicado em junho daquele mesmo ano [Veja. ‘Lição do Escândalo: Deve se privatizar’. Editorial. 10/06/2005].

A ‘pedagogia do medo’ e o discurso laudatório da mídia na década passada

A ambiência social e econômica conservadora da década passada no Brasil tem, de fato, a imprensa como um de seus principais artífices. Enfatizemos, neste momento, não só o caráter governista do discurso da mídia, mas também a ‘pedagogia do medo’ encetada por esses grandes veículos de comunicação na década de 90. ‘Pedagogia’ esta, responsável em parte, pela eleição e reeleição de FHC e pela adoção da Agenda neoliberal como saída única. O balanço da ortodoxia liberal já é bastante conhecido – estagnação econômica, desigualdades sociais acentuadas e onerosidade ao capital produtivo em privilégio de um capital financeiro de alta volatilidade. Destarte, com grandes veículos da mídia/imprensa que continuam, ainda, a edificar e difundir tal discurso declaratório, privatizante e, no limite, ausente de qualquer perspectiva crítica. Outrossim, a utilização de determinadas terminologias dá-se de maneira indiscriminada, não atentando inclusive para o caráter polissêmico de algumas expressões. Governabilidade parece ser uma destas palavras utilizadas, de fato, como conceito fetiche, acabando por se tornar uma panacéia auto-explicativa que engloba tudo e não explica nada. E, foi com este propósito, de desmistificar essa construção, que nos propusemos a escrever o presente artigo. Em suma, entender a governabilidade a partir de uma perspectiva contra hegemônica se constituiu nosso objetivo. Atentar para o fato de que governabilidade tem a sua semântica em construção, e não é em hipótese alguma um dado natural da realidade política e econômica.

O sentido que atribuímos à governabilidade é, de fato, bastante diverso daquele construído pelo establishment econômico (formado por notáveis economistas monetaristas ortodoxos) e pela mídia/imprensa comprometida umbilicalmente com o projeto privatista, predominante na última década. Proponho aqui, superar a concepção simplista, a nosso ver, da imprensa como aparelho ideológico de Estado. Mas compreendê-la como um aparelho privado de hegemonia [GRUPPI, Luciano. O conceito de Hegemonia em Gramsci. Graal. RJ. 2000], porta voz de uma consciência de classe e detentora de um discurso que atende uma determinada fração da burguesia brasileira e, acima de tudo, se pretende universalista. Ou seja, entendemos o sentido de governabilidade difundido pela mídia/imprensa como algo em perfeita co-relação com interesses materiais específicos destas frações de classe. Hegemonia percebida como capacidade de direção, aglutinando alianças e universalizando interesses concretos específicos de um dado grupo. E, neste sentido, a atuação destas frações de classe no campo simbólico (discursos, alegorias e falas através da mídia/imprensa) é de vertical importância para a estruturação de tal projeto de Hegemonia.

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Bacharel em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), especialista em História do Brasil pós-1930 pela Universidade Federal Fluminense, mestrando em História política pela Uerj, autor de artigos sobre a historia da Imprensa no Brasil, dentre os mais recentes ‘Governabilidade e Imprensa: Um debate sobre o discurso laudatório da midia laudatória na Era FHC’.