A turma deste semestre letivo do jornal-laboratório Campus, da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), a caminho da formatura, não imaginava que lhe caberia o doloroso dever de fazer uma matéria de capa (e página dupla central) acerca de um recorrente caso de assédio sexual, envolvendo um funcionário de apoio técnico da própria faculdade, que auxiliou na formação de gerações de alunos ao longo de quase três décadas.
Acostumados a sair das redações e investigar mundo afora todo tipo de caso e nem sempre medir as conseqüências, poucos jornalistas terão tido a incômoda – mas pedagógica – experiência dos estudantes de Jornalismo da UnB: lidar com uma reportagem cujo lead estava ao lado. ‘Ele era conhecido como o cara mais legal da Faculdade’, tal como abrem a matéria, que acabou servindo de gancho para um texto de serviço, intitulado ‘Intimidade invadida’.
Ao lidarem com o assunto, os alunos-repórteres se depararam com uma dezena de outros relatos, em outras unidades da UnB, envolvendo também professores e alunos. A constatação demonstra que o problema é mais comum do que aparenta e aponta a necessidade de se rever a deontologia das relações humanas no trabalho, especialmente quando situadas no serviço público – espaço onde nem sempre se distingue com clareza ‘A linha tênue entre a cantada e uma agressão’, como sugere o sutiã da matéria de capa da edição 313 do Campus.
Um outra singularidade também marcou o trabalho de produção do último número desse que é um dos mais antigos jornais do país, na sua modalidade. Campus circula há 36 anos, boa parte desse tempo com edições quinzenais. A atualmente tem uma tiragem de 4 mil exemplares e atua com uma invejável independência em relação a reitores, pró-reitores e professores. Sim, os alunos dessa publicação são senhores das pautas, dos textos e das imagens, embora a responsabilidade legal seja dos professores do bloco de disciplinas curriculares que empresta expediente para o funcionamento da redação-laboratório. Os docentes são atentos e quase anônimos cães-de-guarda, aos quais se destina a tarefa de cuidar dos pepinos, abacaxis e outros hortifrutigranjeiros – que não são poucos –, mas reservar aos repórteres-júniores os brilhos e os vários prêmios conquistados.
Desta feita, houve sucessivas reuniões e troca de e-mails e previews da reportagem, não apenas porque a investigação envolvia uma veterana e venerada pessoa da casa, mas porque foi também uma especial oportunidade para aprender e praticar procedimentos técnicos, éticos e estéticos em se tratando de um caso desses que requerem fino tato no trato da reputação alheia, principalmente das vítimas. O consenso formado, após várias discussões, foi o de que todos os envolvidos seriam referidos por meio de pseudônimos.
O nome
Dar nome e caráter ao fato: assédio sexual. Dois boxes ancoraram a leitura da matéria, o primeiro, relatando as circunstâncias que desenham o ambiente e a oportunidade para que a personalidade (ou seria patologia?) envolvente do assediador se manifeste; o segundo, tipificando legalmente o crime de assédio e similares (assédio moral, abuso e atentado ao pudor). A questão do nome foi, possivelmente, o principal assunto das discussões. Seria adequado nomear agressores e vítimas? Em alguns casos, é justamente a exposição pública dos mesmos que constitui uma espécie de controle social exercido pela mídia, já que nem sempre as punições legais são efetivas e exemplares.
No reportado caso, o assediador já havia sido condenado a pagar cestas básicas, mas conseguiu se manter sob o manto da privacidade e, quem sabe, iludido quanto à sensação de impunidade – tanto que reincidiu outras vezes na mesma conduta, segundo os testemunhos que se sucederam, até ser, finalmente, afastado do posto. A decisão administrativa foi comunicada durante uma reunião do Conselho da Faculdade, para espanto e mal-estar de professores, funcionários e alunos.
Após sucessivas deliberações, a comissão de redação que se formou no Campus decidiu não repetir a praxe da imprensa-tribunal, até mesmo porque não são raros – pelo contrário – os casos em que repórteres e editores embarcam em versões equivocadas de fontes de fé pública. E se o ‘Rui’ vier a ser inocentado, mesmo depois de sete alunas o terem acusado (somente dois casos chegaram à polícia)?
Por esses dias mesmo, noticiou-se a inocência de inocentada da mãe acusada de ter posto cocaína na mamadeira da filha, morta regurgitando um tal pó branco e agredida na prisão (enfiaram-lhe uma caneta no ouvido), de acordo com o código moral que reina entre os detentos no Brasil para casos de abusos e estupros. Em Brasília, um certo Soldado Johnson, qualificado indevidamente como estuprador, por pouco não foi violentado pelos companheiros de cela, só poupado porque era muito corpulento e bravo. Por pouco não teve o destino de muitos: virar serviçal de cama e mesa dos impiedosos ‘justiceiros’. E o caso Escola Base – aquele dos diretores, professores e funcionários que ‘faziam bacanais com as criancinhas’? Chegou, finalmente, às sentenças condenatórias de última instância e indenizações superiores a 8 milhões de reais pagas por jornais, revistas, emissoras de TV e poder público.
Vários cuidados surgiram das reuniões de pauta e acompanhamento da cobertura do ‘Caso Rui’, incluindo a coleta de opiniões junto a diferentes especialistas, entre eles psicólogos, jornalistas e professores outros que não os do jornal. Tais iniciativas partiram dos próprios estudantes e, embora a matéria seja assinada por duas alunas, praticamente toda a redação se envolveu e colaborou.
O sobrenome
A proteção do nome dos infratores poderosos é um problema que está longe de ser contornado, principalmente quando a vergonha impede as vítimas do relato em público e na mídia, ou são coagidas a não o fazer. Entram em jogo sobrenomes poderosos na genealogia, na política ou no mercado, ou seja, velhas formas coronelistas que ainda persistem e que atuam mesmo quando as acusações são bem fundamentadas – nesses casos, em favor da impunidade.
Em outras circunstâncias, a fama, a riqueza e o poder são os fatores que deflagram a exibição exacerbada de intimidades, que o digam Bill Clinton, Mike Tyson, Michael Jackson e, num passado já esmaecido, os irmãos Kennedy. Não raro, as vítimas ou testemunhas decidem desnudar – post mortem – a imagem outrora impecável de celebridades: os livros de memórias da secretária de Pablo Neruda e do mordomo da Lady Di são apenas dois exemplos dessa categoria, da qual não escapam nem semideuses: Mao Tse Tung, sabe-se agora por parte de biógrafos inconoclastas, era cruel, abusador e libertino. Outros, como o ditador português Oliveira Salazar, valem-se de sua condição de tirano para ocultar vícios e propalar virtudes. Tal como o revolucionário chinês, Salazar alimentava um apetite especial por ninfetas. O tempo, no entanto, é implacável: um dia levanta o véu dos fatos, para novos julgamentos.
O pseudônimo
A proteção da identidade é um direito das vítimas, não só quando correm riscos em sua integridade física, mas também no que se refere ao seu ‘futuro’ moral. Crianças e jovens são especialmente resguardados, como o prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente. Em geral os processos são públicos, a não ser quando os autos tratam de assuntos de família e intimidade. Algumas publicações ainda não aboliram a grotesca tarja preta sobre os olhos dos ‘menores’, para que não sofram de exibição vexatória, sobretudo levando-se em conta que têm todo um futuro a ser desfrutado e que não merecem carregar estigmas pelo resto da existência. Outra saída, o uso de as iniciais, é uma prática pouco recomendável, pois embora no âmbito nacional ninguém faça a menor idéia de sua associação, o mesmo não ocorre no local do incidente ou no seu entorno comunitário.
Os recursos digitais são hoje um meio bastante usado pela mídia tanto para proteger o depoimento de vítimas e testemunhas – utilizando-se imagens reticuladas e voz distorcida –, quanto para assegurar o sigilo das fontes e o respeito na veiculação de cenários indecorosos ou extremamente violentos. A prática de pseudônimo, portanto, tem-se revelado uma forma bastante útil e respeitosa de lidar com situações embaraçosas.
Há alguns anos, uma repórter do Correio Braziliense valeu-se desse procedimento para não maltratar a imagem de um caminhoneiro que era traído pela mulher; mas, advertido, decidiu promover um flagrante. Mesmo sem que houvesse um pedido de anonimato, a repórter achou que aquele homem já enfrentara bastante sofrimento para ainda ter o seu nome exposto a comentários e piadas. Noutra ocasião, o mesmo Correio publicou uma página inteira de depoimentos de jovens viciados em drogas, todos com nomes inventados.
A mesma sorte do caminhoneiro enganado não tiveram alguns machos emasculados por companheiras ciumentas. Em distintas ocasiões, foram decepados uma segunda vez, desta feita pela ‘crônica’, sem a preocupação do anonimato. É muito difícil que uma pessoa consiga manter alguma qualidade de vida pública depois da publicidade de um episódio nessa natureza. Mesmo que as cicatrizes físicas se fechem, a dor moral persiste, ainda mais se a vítima se vê o tempo todo reconhecida. Para esses cidadãos, é como se a manchete nunca saísse das primeiras páginas. Um outro problema – e que também justifica o uso de apelidos – são os prováveis reencontros dos personagens de histórias constrangedoras. Há uma diferença enorme entre a privacidade do acontecido e a renovação permanente dos comentários dos que estão a par dos acontecidos.
Rosto aquarelado
No caso ocorrido na Faculdade de Comunicação da UnB, houve relatos de alunas que, mesmo não tendo sido expostas, trancaram disciplinas para não conviver com o ‘problema’ ou ter de ficar novamente a sós com ele num laboratório. Saia justa maior, no entanto, era cumprimentá-lo no momento mais solene da vida acadêmica, a formatura. Sim, porque o fictício Rui da matéria do Campus foi sucessivas vezes homenageado por turmas de formandos, graças ao seu ‘carisma’ e ‘bom humor’, além da solicitude que cativaram, como diz o relato do jornal, ‘gerações de alunos, professores e funcionários’. Talvez por esse lado virtuoso de Rui, houve quem intercedesse por ele na tentativa de que a matéria não fosse publicada. Desta feita, no entanto, houve alunas que se recusaram a participar da formatura deste ano, caso ele fosse outra vez homenageado.
Afastado de suas funções administrativas e amargando o ostracismo de quem ao longo de três décadas procurou agradar e afagar, Rui foi insistentemente procurado pela reportagem do Campus para que contasse a sua versão e usasse do amplo direito de defesa, por sinal, algo quase sempre negado pela mídia aos acusados de algum crime. Rui não quis se defender, nem se retratar, nem se desculpar. Limitou-se a dizer que ‘os beijos foram carinhos mal-interpretados’ (mesmo que obtidos à força, conforme se apurou).
O resultado pedagógico disso tudo no ambiente onde tudo se passou resume-se em uma grande perda imediata, alguns ganhos a médio e longo prazos e pelo menos três lições. De um lado, a perda de um técnico competente e ‘adorado’ (termo corrente entre os alunos) e não facilmente substituível, ainda mais em se tratando de vaga em serviço público; de outro, alguns pressupostos para se tocar a vida adiante:
a) embora seja tênue – como informa a matéria – a diferença entre o carinho e a agressão, ela existe e é perigosa;
b) os problemas, por mais embaraçosos que sejam, têm de ser enfrentados;
c) há sempre uma forma exemplar de fazer uma reportagem – neste caso, taxa zero de sensacionalismo e 100% de utilidade pública. E o tratamento estético não deixou por menos: fotos sombreadas ou estilhaçadas de depoentes e um rosto aquarelado e indistinto de pânico.
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Jornalista, professor da UnB e coordenador do projeto de extensão SOS Imprensa, integrante da Rede Nacional de Observatórios da Imprensa (Renoi).