Envolvidos que estamos no cotidiano, talvez não percebamos que as máquinas digitais vêm modificando, em certos aspectos, o jeito de ser do humano.
Ao observar com olhares mais atentos, veremos que uma lojinha até então desocupada, ou que era um antigo comércio, dá lugar a uma lan house ou uma casa de café digitalizada, um ciber-café, com computadores conectados à internet, onde as mais diferentes pessoas ocupam o espaço em busca de pesquisas, jogos ou caracterizar-se com o avatar do flanneur virtual e navegar com ou sem rumo pelo ciberespaço.
O que queremos propor aqui é uma reflexão sobre o quanto as máquinas digitais estão permutando, com nossas vidas, algumas diferenciações no modo de viver e que, na maioria das vezes, passam despercebidas.
Se passarmos os olhos em textos de vários pesquisadores das tecnologias, em especial as digitais, veremos que as máquinas estão promovendo conexões, hibridizações, estendendo-se em ouvidos, olhos, braços e pernas – e para este artigo pensamos em dois caminhos que dessem o suporte necessário a desenvolver essas primeiras idéias.
Fúria incontrolável
O primeiro deles nos remete à década de 1960, do século 20, quando o advogado norte-americano Clarence Darrow, e o filósofo, também norte-americano, Will Durant, protagonizaram um debate intrigante de nome ‘acaso seremos máquinas?’.
O recorte principal do debate foi o homem ser ou ter, ou não ser e não ter, qualquer vínculo com as máquinas. Óbvio que naquela época as máquinas, em sua maioria, possuíam a essência mecânica e o debate discutia o homem como um ser dotado ou não de partes que se assemelhavam às partes mecânicas da máquina. Esse debate gerou um pequeno livro impresso em 1968 e que traz, em seu conteúdo, o texto integral.
O segundo vem de uma observação da trilogia Matrix. Filme de ficção/ação/científica dos irmãos Larry e Andy Wachowski, que tem em Keanu Reaves/Neo o escolhido que irá salvar o universo humano – entenda-se Zion – da fúria incontrolável pelo controle que as máquinas desejam exercer.
Significativas modificações
Contudo, não nos interessa, pois não caberia a esse momento, uma análise mais detalhada dos filmes Matrix, pois Mark Rowlands, no seu livro Scifi-Scifilo, e o professor Erick Felinto, no livro Religião das Máquinas, fazem distintas, mas interessantes, análises sobre o filme e, nesse sentido, uma consulta a esses trabalhos resultará numa leitura interessante.
Porém, observamos que mesmo lutando contra as máquinas, os humanos desplugados da Matrix utilizavam máquinas para suas comunicações e locomoções. Numa conversa entre Neo e um dos conselheiros, em determinado momento, o conselheiro aponta para uma máquina e diz ‘está vendo aquela máquina? Eu não sei o que ela faz, mas sabe qual a diferença entre ela e nós?’ Neo responde: ‘Nós podemos desligá-la.’ Será?
Entretanto, a título ilustrativo, tanto o debate/livro ‘acaso seremos máquinas’ quanto Matrix postulam como as máquinas estão em nossas vidas, ora de forma impactante, ora de forma discreta.
Dentre essas máquinas, uma chamou particularmente a atenção, pois a sua introdução na vida humana não causou rupturas extremas – distante das idéias pós-modernistas que, em certos aspectos, anunciam mudanças radicais – pelo menos durante sua difusão, porém, adotando um olhar Benjaminiano, observador, de flanneur, pode-se deparar com significativas modificações no agir, ser e viver das pessoas num geral.
115 milhões de celulares
Pode soar estranho classificá-lo como máquina, pois as pessoas, normalmente, o vêem como objeto comum em suas vidas, mas numa perspectiva de Durant e Darrow, questionamos ‘há algo mais?’ A máquina em questão é o telefone celular.
Num primeiro momento, uma extensão do telefone fixo, porém, poderíamos afirmar que o telefone móvel é um telefone somente? Talvez não.
O telefone móvel difundiu-se no Brasil com maior intensidade a partir de 1993. Entretanto, algumas características fizeram dessa ‘máquina’ algo ainda pouco interessante. Era caro, pesado – se lembram dos PT 550, o tijolo ou tijolão da fabricante Motorola?
Todavia, a indústria rapidamente fez significativas mudanças nos aparelhos – tamanho, peso, durabilidade das baterias, modelos diversos e, em menos de dez anos, o telefone móvel já fazia parte, praticamente, de todas as camadas da população, tanto que, de acordo com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), o Brasil contempla, atualmente, e por enquanto, 115 milhões de aparelhos em funcionamento.
Novos olhares
Entretanto, o que faz do telefone móvel um atrativo para as pessoas? Sem dúvida essa questão pode ter uma resposta, entre outras, na própria pergunta. A mobilidade. As pessoas podem ir e vir utilizando o celular como canal comunicativo de qualquer lugar de onde estiver, tanto que para a pesquisadora e professora da PUC/ RIO Ana Maria Nicolaci-da-Costa o ato comunicativo pode ser entendido como comunicação à distância.
Elencamos algumas modificações a partir do uso dos celulares em observações empíricas: o ‘alô’ tradicional do telefone fixo substituído pelo ‘Cê tá onde?’.
A rapidez com que jovens ‘teclam’ as suas mensagens denunciando novas competências [sinestesia] ao lidar com o aparelho e a multifuncionalidade material dos aparelhos como suporte a uma gama considerável de novas habilidades no trato com fotos, mensagens, rádios etc. [cognição]. Esses são alguns dos muitos exemplos.
Baseamos parte deste artigo em uma pesquisa que está em curso e que tem como eixo principal os usos dos celulares e os impactos das suas materialidades como meio de comunicação, pois entendemos, dentro do pensamento de Marshall McLuhan, Walter Benjamim, Hans Ulrich Gumbrecht e, no Brasil, Erick Felinto, Vinicius Pereira dentre outros, a comunicação exigindo, também, suporte material que, talvez, ultrapasse os conteúdos ou funcionalidades. Nesse contexto, reafirmamos o interesse em refletir sobre mudanças nas ações, corpos, relações pessoais, a partir das tecnologias digitais, delicadamente com o telefone celular. Enfim, novas sensorialidades, sinestesias, cognições e afetos a partir de novos olhares voltados para nós e as máquinas no mundo contemporâneo.
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Jornalista e radialista, mestrando do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, professor da Faculdade do Sudeste Mineiro (Facsum)