Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Notas sobre a natureza do discurso jornalístico

A aceleração e o destroçamento da referência territorial na circulação de informações no planeta acentuaram, no jornalismo, características como a superficialidade e a perecibilidade da notícia. Nada o é exatamente assim e nem também assim por muito tempo. O mundo se nos apresenta como um carrossel curto-circuitado e descontrolado, no qual giramos em alta velocidade tendo à nossa volta a mesma paisagem com poucas alterações – mas do qual não se pode descer. Circularidade inescapável.


Desde sempre sabemos que o tipo de conhecimento promovido pelo jornalismo – por meio da notícia – é limitado e de curto período de validade. Se a fotografia mostrou-se, por muito tempo, uma boa metáfora para a notícia – pois, como aquela, também é resultado de escolhas (angulação) e mais exclui do que mostra (enquadramento) – hoje essa comparação se mostra insuficiente e o sentido que ela produz já não dá conta da complexidade do mundo informativo. A fotografia congela no tempo e é um registro para a memória. Já há algum tempo, o jornalismo distanciou-se da memória e da História. É o agora passante. Em instantes, o agora passado. Talvez o close de uma câmera nervosa e trêmula, em alguns momentos desfocada, baldeando pela paisagem e ao vivo – visada que se perderá para sempre – seja, hoje, a mais pertinente metáfora da notícia. O aparente.


Do mesmo modo, institui-se a notícia como um discurso do fragmento. Dela se exclui o efetivo contexto dos fatos, atos e discursos e, com este, a possibilidade de compreensão do que nos habituamos a chamar de real. O mundo da notícia é o do fragmento. Do fato emergente e alterando-se e, na aparência, na revelação imediata, como se nos mostra. O sobressalto patrocinado por pequenas rupturas da superfície lisa da realidade [como denominou Rodrigo Miquel Alsina em La construción de la notícia]. O superficial.


Superficialidade e profundidade


A superficialidade do campo jornalístico é, por fundamento, bem distinta daquela dos gregos, elogiada por Nietzsche no prefácio de A gaia ciência. Para o filósofo alemão, a superficialidade dos gregos era, na verdade, o coroamento de sua profundidade. Superficialidade e profundidade, para ele, como termos simétricos, sendo que o primeiro era superior ao segundo pois o incluía.


Segundo Nietzsche, os gregos não se apegavam às aparências por fraqueza nem por impotência de atingir a profundidade: ‘Era porque eles eram profundos que decidiram permanecer valentemente na superfície. Superficiais por opção, após terem experimentado os tormentos e impasses da profundidade’, salienta. Aceitando o mundo tal como é e se apresenta ‘na totalidade de seu aparecimento, de sua irrupção’, os gregos, em sua superficialidade, não separavam um exterior de um interior, que o explicaria. Não separavam uma aparência de uma essência preexistente. Opunham-se, enfim, os gregos, para Nietzsche, à pretensão de compreender as coisas em sua totalidade – pretensão ilusória da profundidade.


Problemas éticos


No caso do jornalismo, o superficial que lhe é característico remete a processos precários de objetivação da realidade. De operações de nominação do real que se constroem, geralmente, a partir – quando não diretamente – e por meio de relatos de terceiros. De uma prática discursiva que se estabelece sobre o mito da objetividade e da reposição da ‘cena primária’, como destacou Fausto Neto.


No jornalismo, a superficialidade não existe simetricamente ao profundo das coisas. O superficial não inclui o essencial – é ingênuo em relação a este. Ignora-o para, somente assim, se viabilizar técnica e discursivamente, pois no espaço e no tempo da notícia cabe muito pouco do real. Fragmentos.


Coincidem com o surgimento da própria notícia, como a concebemos hoje, as críticas e questionamentos por parte de intelectuais da Filosofia, das Ciências Sociais, da Literatura, entre tantas outras áreas, a respeito da mediação que o jornalismo faz do real. Ataca-se o jornalismo, fundamentalmente, pela sua natureza fragmentária e sua superficialidade e, em termos éticos, além da parcialidade e falta de objetividade, muitas vezes, pelas práticas sensacionalistas e flagrantemente desrespeitosas àquelas pessoas citadas nas coberturas.


A complexidade da atividade jornalística pode, por si só, explicar, se não justificar, muito do que geram tais dessas críticas realimentadas pelo que os jornalistas publicam, diariamente, nas páginas dos jornais e nas mídias eletrônicas. Mas não se deve, por cuidado, entender que todos os apontamentos acima sejam exatamente ‘desvios’ e, mais ainda, que os problemas éticos do campo jornalístico apontados sejam, de maneira preponderante, conseqüência dos aspectos inerentes a sua natureza.


Os fatos e as essências


Discutir o ethos do jornalismo é sempre oportuno e necessário. No entanto, priorizemos um outro aspecto: os desafios da relação com o real ao nível de sua superficialidade e aparência. De como esse caráter fragmentário da notícia e da forma compartimentada de sua produção impactam em muito, além dos leitores e os que nela são citados, os profissionais por elas responsáveis – mesmo que estes nem sempre tenham consciência disso.


Socialmente, o jornalismo tem sua importância e influência histórica e política reconhecidos pois, na base de sua contratação com o leitorado, institui-se como dispositivo de visibilidade e vetor crível de informações relevantes e de interesse público. Como destacou Nilson Lage, o jornalismo seria responsável ‘tanto pela amplitude quanto pela superficialidade do conhecimento que as pessoas têm, fora de suas áreas específicas de atuação.’. Ao propor uma Gramática para o Jornalismo, Lage chamou a atenção para o fato de que o jornalismo não cuida da essência, mas da aparência.




‘Há diferenças importantes entre o discurso jornalístico e o discurso científico: uma delas é que o primeiro é um discurso de aparências. Quaisquer que sejam as versões difundidas numa matéria de jornal ou revista, não importando a linha editorial, o mais importante são sempre os fatos. São estes o que os repórteres apuram e valorizam. Já na ciência, o que se investiga são essências: leis, princípios e postulados que devem reger conjuntos de fatos; teorias que se sustentam enquanto não se consegue comprovar sua falsidade.’ (Nilson Lage, Gramática do Texto Jornalístico)


Circunstâncias inescapáveis


Lage, com essa proposição, consegue realçar que, tal como a ciência, o jornalismo afirma-se a partir da crença de que a verdade objetiva existe e que ‘é possível discorrer sobre ela’. O que ele, faz, no entanto, ao invés de investigar a essência das coisas é, dentro de técnicas e estratégias discursivas que lhes são próprias, organizar e apresentar as ‘versões impostas pela ideologia’, procurando preservar, no entanto, a inteireza dos fatos.


Em um modus operandi em que os fundamentais parâmetros éticos cedem a determinações de natureza estética, técnica e econômica, o jornalista trabalha com o objetivo de construir um real. Como destacou Fausto Neto, a cena primária – o ocorrido – não pode ser restituído. Mas ao movimentar suas éticas e deontologia para reavê-la, o jornalista é escravizado pelo jogo da linguagem, exatamente por onde pensar dar conta da falta da cena original. Acaba, então, produzindo novas versões, novas cenas – muitas delas tão imaginativas quanto aquelas apresentadas por suas fontes. (Fausto Neto, 1998).


Nem por opção nem por haver, historicamente, conseguido superar os tormentos e impasses da profundidade da essência de seus objetos. O jornalismo é superficial e aparente, enfim, por circunstâncias inescapáveis.


Referências


ALSINA, Miquel Rodrigo. La contrución de la notícia. Barcelona, Paidós, 2005.


FAUSTO NETO, Antônio. Em busca da cena primária. Copião do autor. 1998.


LAGE, Nilson. Uma gramática para o jornalismo. Disponível aqui em 21/12/2007.


NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A gaia ciência. São Paulo: Hemus, c1976. 294p.

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Professor de Jornalismo da PUC/Minas