Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Notícia e realidade

Os principais elementos constitutivos, estabelecidos e aceitos para a construção de uma notícia jornalística, dizem os manuais de redação, são o que e o quem. A racionalidade do fato relatado, portanto, deve deixar claro quem é o sujeito que fez ou disse algo, e a própria ação que é representada pelo verbo de preferência na voz ativa e no tempo pretérito. Quase sempre, nas mais variadas estruturas que o texto noticioso possa apresentar, o primeiro parágrafo é reservado para a exposição do que foi considerado o fato mais relevante entre tantos outros pequenos eventos relacionados a ele. Como se trata de um texto que tem sua referência no mundo extra-mental, outros dados são adicionados para que o seu tratamento contextual seja possível de ser reconhecido pelo leitor. Definindo-se assim quem praticou a ação, são acrescentadas informações relacionadas a tempo e espaço (elementos circunstanciais) dentro das dimensões de atualidade e proximidade que são atributos inerentes do jornalismo. Os possíveis motivos ou causas, que detonaram uma certa ação, são selecionados a partir da primeira escolha que foi o do agente direto dessa mesma ação.

O que queremos questionar ao expor as considerações acima diz respeito ao processo que leva fontes e repórteres a apontarem uma pessoa como a responsável por determinado fato em detrimento de no mínimo um outro possível agente. Os exemplos são muitos na imprensa, com alguns destes fatos tendo repercussão nacional, porém sendo a maioria restrita a notícia local e de pouca abrangência informativa. No primeiro caso, há um desdobramento dos acontecimentos, podendo se chegar, no final, a um relato diferente da primeira notícia pela negação do sujeito como o agente responsável. É o que aconteceu com as acusações feitas contra os donos da Escola de Base / São Paulo que teriam molestado crianças. No entanto, o mais comum e corriqueiro, é que pequenas notícias envolvendo pessoas com menor visibilidade econômica e social, serem apresentadas como atores de algo que elas negam, porém prevalecem os relatos das fontes, da polícia e do repórter.

Poderíamos relacionar uma gama de explicações para chegarmos a um entendimento mais claro desse procedimento, entretanto ficaremos restritos às noções e teorias seguintes:

a) O fato jornalístico é único, isto é, ele não tem continuação. O que se denomina de suíte, é na verdade, um outro fato jornalístico que tem o fato jornalístico anterior como referente.

b) A apuração e o relato noticioso são fundamentados em descrições e por isso mesmo insuficientes para que haja uma certeza com relação a indicação correta dos atores da notícia.

c) Há por parte de fontes e repórteres uma imagem mental do mundo extra-mental que é formada por conceitos e experiência cognitiva.

Para que nossa abordagem não fique muito abstrata, examinaremos os textos noticiosos publicados no Jornal do Commercio nos dias 07,08 e 13 de agosto de 2002 e na Folha de Pernambuco nos dias 07 e 08 de agosto de 2002. Os dois jornais relatam o fato de uma mãe ter batido na filha de apenas 2 anos com uma vassoura. Só o Jornal do Commercio traz ainda mais três matérias correlatas sobre maus-tratos a criança e adolescente e um boxe com estatística sobre violência contra menores.

Fato jornalístico e verdade

Denominamos fato jornalístico ao relato, exposição ou narração de algum fato da sociedade que tenha sido publicado em jornais impressos, televisão, rádio ou internet. Em outros termos, o fato jornalístico é um conjunto de enunciados sobre acontecimentos do mundo real. O importante, que isto fique bem claro, é que este texto noticioso passa a ser outro fato independente jornalisticamente daquilo que relata apesar de ter parâmetros na realidade que lhe serve de referência. Assim, quando um leitor lê o seu jornal ele está lendo enunciados sobre fatos jornalísticos e não mais sobre algo do mundo extra-mental. O enunciado jornalístico não é uma lente para visualizar melhor o acontecimento ou um espelho para enxergar a própria realidade. Portanto, o leitor ao mencionar determinada notícia não estará se referindo a nada do mundo que foi tomado como parâmetro, mas apenas a fatos jornalísticos, mesmo que ele acredite no contrário.

Passemos agora a apresentação de um fato jornalístico para que possamos explicar mais detalhadamente. Os dois exemplos (1) (2) são os primeiros parágrafos do texto, mas que contêm numa forma de lead o fato jornalístico.

(1) Uma menina de dois anos e meio, identificada apenas como A., foi brutalmente espancada pela mãe, conhecida como Ângela, no bairro do Jordão Alto, Zona Sul da cidade. A agressão, com cabo de vassoura, deixou hematomas nas costas e braços da criança, que foi entregue ao Conselho Tutelar de Boa Viagem. (JC 07/08/2002)

(2) No rosto, um sorriso ingênuo. Nas costas, a marca da violência da mãe. Assim chegou a pequena A., de apenas dois anos e seis meses, à Diretoria de Polícia da Criança e do Adolescente (DPCA), no Benfica, ontem pela manhã. Segundo o vizinho, o aposentado Antonio Carlos Gomes de Oliveira, 47, que a levou à DPCA, quando sua cunhada, Marlene Gomes dos Santos, 40, pegou a criança, ela estava sendo espancada pela mãe, conhecida apenas como Ângela, moradora da rua Atalaia, no Jordão Alto, que usava um cabo de vassoura. Depois da denúncia, policiais foram ao local do crime, mas Ângela havia fugido, com um dos filhos. A menor foi encaminhada ao Conselho Tutelar de Boa Viagem. (FP 07/08/2002)

O núcleo de (1) e (2) não deixa dúvidas que uma mãe chamada Ângela espancou a própria filha A. de dois anos e meio com um cabo de vassoura. Essa definição do sujeito e da ação efetuada pelo agente explicitamente marcada pelo tempo pretérito vai ser a matriz semântica para desdobramentos correlacionados a essa matriz, o que veremos no item 3. O que importa, no momento, é reconhecer que este fato não mais se repetirá em qualquer instância da realidade ou jornalisticamente. O que foi publicado pelos mesmos jornais no dia seguinte (3) (4) consideramos como sendo outro fato mesmo que seja relacionado ao primeiro. O texto (4), com o núcleo da informação, se encontra no segundo parágrafo da Folha de Pernambuco e o (3) no primeiro parágrafo do Jornal do Commercio.

(3) Foi presa, ontem, na Delegacia do Jordão , Ângela Teodósio da Costa, 24 anos, acusada de ter espancado a garota de vassoura sua filha, identificada como A., de dois anos, na segunda-feira passada. Ângela negou ter batido na criança e responsabilizou seu filho E., 4 anos, pela agressão, dizendo que ele ‘arengava’ muito com a menina e que não era a primeira vez que o garoto batia na irmã. (JC 08/08/2002)

(4) Ela é acusada de espancar com um cabo de vassoura sua filha A., de apenas dois anos e meio de idade, na última segunda feira. A polícia chegou até Ângela a partir de vários telefonemas que chegaram à delegacia, através da vizinhança, informando o local onde ela estava. Ângela foi presa ontem pela manhã, na casa de seus pais, localizada na rua da Alegria, em Jardim Jordão. (FP 08/08/2002)

Na transcrição acima identificamos como sendo o fato jornalístico 2 que trata da prisão de Ângela pela acusação de ter espancado com um cabo de vassoura a filha A., de dois anos e meio de idade. Por ser o segundo acontecimento na ordem cronológica, estes enunciados têm como referência os dados e eventos do fato jornalístico 1 que relata o caso de uma mãe que espanca sua filha pequena. O que há de novo em (3) e (4) é apenas a prisão da acusada. As declarações de Ângela Teodósio da Costa negando que tenha batido na filha não são levadas em consideração pelos repórteres e redatores, pois o agente causador do espancamento continua sendo Ângela. Isto é, a defesa da mãe não faz parte do núcleo do fato jornalístico 2. As declarações em itálico (5) e entre aspas (6) de Ângela aparecem quase como cumprimento de um dever ético de ouvir as partes envolvidas, porém não são capazes de modificar o que já foi estabelecido.

(5) JC – O que a levou a espancar sua filha?

ÂNGELA TEODÓSIO – Não fui eu quem bateu nela, foi meu filho E., de 4 anos. Eles viviam brigando e ele já tinha batido nela antes, mas nunca com tanta violência. Pode perguntar a ele, que ele assume tudo. Eu quero que a delegacia me indique um psicólogo para cuidar dele, por que eu não sei o que o levou fazer isso.(JC 08/08/2002)

(6) ‘Quem bateu nela não fui eu. Quem fez isso foi meu filho e três anos de idade, os dois vivem brigando dentro de casa.’ […] ‘Ninguém acredita quando digo que foi meu filho. No dia em que aconteceu isso, eu estava lavando roupa no quintal e os dois estavam brincando na sala. De repente, ouvi a menina chorando, não dei importância porque eles sempre brigam’ defendeu-se Ângela. (FP 08/08/2002)

Queremos ressaltar que apesar de ter sido dado um certo destaque às declarações da mãe, os jornais continuam afirmando a culpabilidade de Ângela. Os títulos e subtítulos não deixam dúvidas sobre quem é o sujeito da ação: Ângela – Mãe.

(7) MÃE ESPANCA MENINA DE DOIS ANOS COM CABO DE VASSOURA (JC 07/08/2002)

(8) CRIANÇA É SURRADA A VASSOURADAS – Uma menina de dois anos foi espancada pela mãe, que fugiu. O caso está na DPCA.(FP 07/08/2002)

(9) PRESA ACUSADA DE ESPANCAR FILHA – Na delegacia, mulher negou que tivesse batido na filha com um cabo de vassoura e culpou o irmão da garota, um menino de 4 anos, pela agressão.(JC 08/08/2002)

(10) PRESA MULHER QUE DEU VASSOURADAS NA FILHA – Ela jogou a culpa para o filho, que tem três anos. (FP 08/08/2002)

(11) MÃE QUE ESPANCOU MENINA DE DOIS ANOS PODE TER PENA LEVE (JC 13/08/2002)

O título (11) que identificamos como o título do fato jornalístico 3 não modifica o lugar do sujeito/Ângela e por isso, sem nenhuma chance de modificação da autoria do espancamento, o Juizado Especial Criminal apenas denominou o ocorrido como crime de menor potencial ofensivo, dando a ‘autora de maus tratos’ a possibilidade de cumprir a pena prestando serviços à comunidade. Contudo, se o juiz categorizar o crime como de tortura ela será presa. Em nenhum momento é levado em consideração os depoimentos da mãe negando a autoria do caso.

Relatos aceitos ou recusados?

O que se denominou de teoria descritivista é uma teoria da referência que tenta explicar como os nomes referem os objetos que referem, ou como os enunciados lingüísticos se ligam a realidade. Interessa-nos as descrições de indivíduos singulares em determinados contextos e através do discurso relatado. Isto significa que teremos uma locução em que se aplicam algumas propriedades a Ângela / mãe. O enunciado (12) toma a forma de função proposicional que dentro de certos parâmetros ele será verdadeiro ou falso.

(12)Ângela / mãe espancou A./ filha de dois anos

Isto quer dizer que só existe um objeto Ângela / mãe se e somente se espancou A. / filha de dois anos. Ângela / mãe não é propriamente um nome, mas uma descrição e representa uma pessoa que espancou a filha menor de idade. Ela é limitada por esta descrição definida e não ambígua. Ressalte-se que os elementos Ângela / mãe e A. / filha são constituintes da relação representada pelo sintagma verbal. Caso essa relação seja negada pelo objeto ao qual se refere, todo o enunciado é falso. Para que se evite a falsidade da locução referencial descritiva é preciso uma explicação da aplicação do predicado. Ora, o enunciado (12) e a explicação da aplicação do predicado podem levar as expressões lingüísticas para um caminho sem fim, podendo-se chegar a concluir que (12) é falso. O que nos leva a deduzir que as descrições dos fatos jornalísticos nunca indicam suficientemente os atores da notícia.

Seguindo a ordem cronológica dos fatos, analisemos como o enunciado (12) foi relatado e justificado pela principal fonte e confirmado por outros vizinhos de Ângela / mãe:

FATO JORNALÍSTICO 1

O relato do núcleo do fato:

(13) Antonio Carlos Gomes (47, vizinho e aposentado):

‘Minha cunhada estava passando perto da casa de Ângela quando viu a criança apanhando. Correu para me avisar e eu pedi para ela pegar A. e trazer para mim.’ (JC 07/08/2002)

Antonio Carlos Gomes disse que: quando sua cunhada, Marlene Gomes dos Santos, pegou a criança, ela estava sendo espancada pela mãe conhecida apenas como Ângela, moradora da rua Atalaia, no Jordão Alto, que usava um cabo de vassoura. (FP 07/08/2002)

A seguir, as declarações das fontes tentam detalhar um comportamento que se presta a racionalizar o ato criticável da mãe e ressaltando não ser um ato isolado ou fruto de uma falta de controle momentâneo.

(14) Antonio Carlos Gomes:

1.(disse que): quando a cunhada foi buscar a menina, a mãe disse que podia levar ‘essa desgraçada’.(JC 07/08/2002)

2. ‘Se ela pedisse comida, ela batia; se fizesse xixi, ela batia. A. não podia fazer nada que apanhava.’ (JC 07/08/2002)

3. ‘Ângela tem quatro filhos e está grávida de mais um. Ela sempre disse que preferia o menino, chamando as duas filhas de tudo o que não presta, inclusive de desgraçadas.’ (FP 07/08/2002)

4.a mãe já havia pedido que ele criasse a menina, há um mês, na semana passada, ela teria ido pegar a menina de volta, afirmando que o pai, que não mora em casa, teria pedido que a menina voltasse a viver com ela. (FP 07/08/2002)

5.’Quero levá -la pra minha casa’ (JC 07/08/2002)

6.’Quero criar esse anjinho’. (FP 07/08/2002)

Vizinhos: Todos os dias Ângela espancava a menina. (FP 07/08/2002)

Testemunhas: Disseram que a mãe saia e deixava os filhos sozinhos.

Depois do relato do fato e da sua justificação, atos de fala de praticamente uma única fonte, a condenação é proferida pela delegada da DPCA (Delegacia Policial da Criança e do Adolescente) Conceição de Fátima Ferreira: ‘Quando for encontrada, poderá ser condenada por prática de tortura’, na transcrição do JC, ou ‘Essa mãe poderá ser indiciada por crime de tortura’, da FP.

Como podemos ter observado, ao enunciado (12) foram acrescentados outros predicados atributivos a Ângela / mãe. No entanto, todos estão baseados em crenças expressas em proposições nem sempre experenciadas pelos falantes. Nas declarações (13) Antonio Carlos Gomes diz que Marlene disse que ‘passando pela rua viu a criança apanhando’, mas o que foi que ela viu? A casa da menina estava com as portas abertas? Quem está na rua, num horário matutino e com o sol brilhante do nordeste, possivelmente terá as pupilas dos olhos dilatadas e assim o interior da casa da menina teria uma obscuridade que dificultaria a visão. E como ela percebeu que era um cabo de vassoura com a vassoura ou sem a vassoura? Pelos relatos de (13), Marlene viu menina sendo espancada, correu e avisou o Antônio Carlos Gomes, a pedido deste voltou para a casa da menina, a menina ainda estava sendo espancada pela mãe, pegou a menina e levou para Antonio Carlos Gomes. O testemunho de Marlene, segundo Antônio Carlos Gomes, deixa claro que ela presenciou o espancamento. As costas da menina com marcas vermelhas eram a prova do espancamento. Seguindo, portanto, todos fatos relatados, mesmo que se ponham em dúvidas a veracidade das fontes, as propriedades do enunciado (12) implicam Ângela/ mãe. Ângela/ mãe não foi ouvida pela equipe de reportagem nem encontrada pela polícia. A menina A. também não foi ouvida apesar de ser bem comunicativa. Sendo assim este fato jornalístico 1 se encerra sem que se possa afirmar sua falsidade ou veracidade.

FATO JORNALÍSTICO 2

O conjunto de enunciados de (3) e (4) que relata a prisão de Ângela Teodósio da Costa tem como pressupostos os enunciados (12), (13) e (14). Vale ressaltar que a maior parte do texto noticioso dos dois jornais é a transcrição do que foi dito pela acusada que nega a veracidade dos predicados atribuídos a ela, porém, paradoxalmente, o que se afirma em (12), Ângela / mãe espancou A./ filha de dois anos, continua como verdade imbatível para repórteres, fontes e policiais.

(15) O que disse Ângela Teodósio da Costa:

(A) E./ irmão de quatro anos foi quem bateu em A./ irmã de dois anos

1. Negou ter batido na criança e responsabilizou seu filho E., 4 anos pela agressão. – Ele brigava muito com a menina e não era a primeira vez que ele batia na irmã. ‘Ele sempre brigava com ela, mas nunca com tanta violência.’ (JC 08/08/2002)

2. ‘Quem bateu nela não fui eu. Quem fez isso foi meu filho de três anos de idade, os dois vivem brigando dentro de casa.’ (FP 08/08/2002)

3. Disse aos policiais que não havia batido na filha e que as agressões tinham sido provocadas pelo seu filho E.H.C. de três anos. (FP 08/08/2002)

4. ‘Ninguém acredita quando digo que foi meu filho. No dia em que aconteceu isso, eu estava lavando roupa no quintal e os dois estavam brincando na sala. De repente, ouvi a menina chorando, não dei importância porque eles sempre brigam.’ (FP 08/08/2002)

5. ‘Eu queria que a delegacia me indique um psicólogo para cuidar dele, porque eu não sei o que o levou a fazer isso.’ (JC 08/08/2002)

(B) Não entregou a filha para Marlene nem a chamou A. de ‘desgraçada’

6. ‘Eu não disse nada disso. Tem várias pessoas que presenciaram o fato e podem desmentir. Os vizinhos chegaram lá em casa querendo levar a criança, mas como eu não deixei, eles se aproveitaram de minha ida á casa de meus pais para levar minha filha.’ (JC 08/08/2002)

(C) Os motivos que a levaram a fugir.

7. ‘Minha casa estava fechada porque eu tinha saído, com meu cunhado para resolver um problema. Quando cheguei, os vizinhos me disseram que a polícia tinha me procurado com cassetetes na mão. Saí de casa porque pensei que eles iam me espancar. Fui para casa dos meus pais, mas eu ia procurar a delegacia.’ (FP 08/08/2002)

(D) Ângela diz que nunca pretendeu deixar a filha com alguém

8. Finalizou dizendo que não tem condições de criar os quatro filhos menores, por isso pensou em entregar A. a uma pessoa de confiança. (FP 08/08/2002)

9. ‘Eu não vou deixar que ninguém fique com minha filha, muito menos depois de passar por tudo isso. Eu soube que o vizinho quer adota-la, mas eu não vou permitir. Se eu deixasse alguém adota-la, seria como se eu reconhecesse que sou culpada de tudo isso o que estão me acusando. Mas é tudo falso e vou provar para ficar com a guarda da menina. Agora, se esses empresários que querem adotar minha filha puderem me ajudar de alguma forma, eu ficaria muito agradecida.’ (JC 08/08/2002)

10. Ela insistia em afirmar que conseguiria provar sua inocência e manter a guarda da filha. (JC 08/08/2002)

As declarações da acusada de nada adiantaram para que as propriedades atributivas de (12) não lhe implicassem, já que a polícia, o conselho tutelar da criança, a atendente de posto de saúde e o redator do texto final continuassem com a convicção de que Ângela / mãe espancou A./ filha de dois anos.

(16) Nivaldo Marconi (comissário da Delegacia do Jordão):

1.’Mas para quem viu a gravidade das lesões no corpo da menina, fica difícil acreditar que elas tenham sido feitas por um garoto de quatro anos.’ (JC 08/08/2002)

2. ‘Toda população do bairro está revoltada e nos ajudou bastante a localizar o paradeiro da mãe.’ (JC 08/08/2002)

(17) Atendente (Posto de Saúde do Jordão):

1.Ângela era uma pessoa violenta, que quando não conseguia marcar um horário de atendimento agredia os funcionários. (JC 08/08/2002)

(18) Conceição de Fátima Ferreira (delegada):

1. A acusada não pode ser indiciada por flagrante delito, já que sua prisão ocorreu 48 horas depois da prática do crime. (JC 08/08/2002)

2. Ela pode ser indiciada por crime de tortura.(FP 08/08/2002)

O caso (12) Ângela / mãe espancou A./ filha de dois anos foi objeto de mais uma matéria no JC do dia 13/08/2002 em que Cláudia de Freitas, delegada da DPCA, diz que se o juiz considerar o caso como de tortura, Ângela poderá ser presa. Já Ângela de Souza do Conselho Tutelar de Boa Viagem diz acreditar que ela deva ser presa, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente. Considera ainda, que a acusada não tem condições de cuidar da filha, e por isso deveria receber uma punição mais severa. Finalmente, Antônio Carlos Gomes, responsável pelo primeiro e único relato do espancamento revelou que a mãe mantinha a menor em cárcere privado.

A questão fundamental que se nos apresenta diante dos fatos jornalísticos 1 e 2 é a seguinte: Por que o relato de Antônio Carlos Gomes é aceito como sendo passivo de credibilidade e o relato de Ângela/mãe ser rejeitado por todos: jornalistas, vizinhos, delegados, conselho tutelar da criança e o adolescente, atendente de posto de saúde e a população do bairro? Ora, as possibilidades das duas descrições serem falsas ou verdadeiras são muitas:

a)- se uma é falsa, a outra pode ser verdadeira e vice-versa, pela exclusão de todas alternativas: Mãe espanca filha (verdadeira); Irmão espanca irmã (falsa); Mãe espanca filha (falsa); Irmão espanca irmã (verdadeira);

b)- as duas são falsas, isto é, não houve espancamento, ou se houve espancamento, Ângela/mãe e E./filho não são os atores dessa ação: Mãe espanca filha (falsa); Irmão espanca irmã (falsa);

c)- as duas são verdadeiras, caso se admita que A/filha tenha sido agredida pela Ângela/ mãe e pelo filho E., ao mesmo tempo ou em momentos diversos: Mãe espanca filha (verdadeira); Irmão espanca irmã (verdadeira);

Na prática jornalística, no entanto, um enunciado é adotado como sendo uma proposição verdadeira, mas isso não significa que ela seja a verdadeira e a outra falsa. Paradoxalmente, as razões que levaram os repórteres a aceitar o enunciado (12) são as mesmas que poderiam levar a recusar que as propriedades do predicado fossem atribuídas a Ângela/mãe, ou fossem atribuídas a um menino de quatro anos. A resposta para essa dificuldade é o que tentaremos encontrar no próximo item da nossa investigação.

O olhar do filósofo

Wittgenstein, nas Investigações Filosóficas (II-XI), apresenta dois empregos da palavra ‘ver’. No primeiro, quando se pergunta a alguém o que vê ali?, a resposta é ‘vejo isto‘ (segue-se uma descrição, um desenho, uma copia).No segundo, a resposta é: ‘vejo uma semelhança nestes dois rostos’. Há aqui uma diferença categórica de ambos os ‘objetos’ do ver. Quer dizer, as categorizações que fazemos dos objetos do mundo são responsáveis pelo modo como vemos este mesmo mundo. Vejamos um exemplo dado por Wittgenstein.

‘Poder-se-ia imaginar que em vários lugares de um livro, por exemplo, de um manual, figurasse a ilustração:

O texto que acompanha a figura fala cada vez de coisas diferentes: de um cubo de vidro, de uma caixa aberta virada, de uma armação de arame com essa forma, de três tábuas que formam um canto. O texto interpreta todas as vezes a ilustração.Mas podemos também ver a ilustração ora como uma, ora como outra coisa. Portanto, nós a interpretamos e a vemos como a interpretamos.‘ (IF,II-p.188)

É importante que se enfatize que um mesmo objeto pode ser percebido de formas diferentes por pessoas distintas sem que haja alterações perceptivas significativas do objeto. A situação do objeto em contextos diversos também pode levar um mesmo sujeito a vê-lo como outra coisa. O mais interessante, entretanto, é que só podemos ver este objeto ora como uma coisa ora como outra coisa. O que vai direcionar minha percepção para ver algo de uma forma e não de outra é a minha representação mental do determinado objeto. É claro que o significado não está em nossa cabeça, mas a experiência interacional que temos do mundo extra-mental, nos faz escolher um aspecto que se impôs do objeto. Os objetos do mundo não são criados por nós, mas são construídos lingüística e discursivamente por nós falantes e ouvintes. A significação, nos diz H. Putnam (1988:74), é interacional. O ambiente que nos envolve tem um papel determinante na designação das palavras de um locutor ou das palavras de uma comunidade.

O mundo percebido pelos sentidos é elaborado como uma maneira de ser percebido pela forma discursiva. O mundo da experiência sensorial não tem uma face externa palpável. Por isso, nós não produzimos o mundo, mas fabricamos a forma de perceber este mundo. Assim, a nossa percepção do mundo e a descrição que fazemos dele são frutos de categorizações que elaboramos constantemente dos objetos que nos rodeiam. Essas categorias são entidades culturalmente construídas pela nossa própria experiência. Elas são situadas no mundo e muito concretas. Não são abstratas nem metafísicas. As categorias não necessitam de ser referente de algo, mas não negam o mundo externo. Isto é, o meu dizer não cria o mundo, pois ele existe independentemente do meu conhecer e do meu dizer. É um problema cognitivo e não ontológico. A construção das categorias é um processo interacional que resultará numa representação mental que não é uma fotografia, mas são modelos cognitivos, discursivos de produzir sentido, já que a língua é opaca e se faz socialmente.

Segundo Mondada e Dubois (Mondada / Dubois, 1995:273-302), as categorias não são pré-existentes, mas se elaboram no decorrer das atividades dos falantes e dos contextos. Não há categorias naturais nem estáveis, as categorias lingüísticas ou cognitivas são instáveis. É evidente que há um processo de estabilização de categorias, no entanto, essa estabilidade é apenas aparente, já que os sujeitos da fala categorizam e recategorizam os objetos do mundo de forma contínua e interativa. Como vimos no item 2, as descrições do mundo sempre são incompletas levando os falantes a realizarem categorizações adaptativas.

Analisaremos a seguir o que foi dito do modelo mãe contextualizado nos fatos jornalísticos 1 e 2, isto é , todas as categorias transformadas em objetos de discurso são indexais, dirigidos especificamente para o caso explicitado no enunciado (12). Em seguida, examinaremos a categoria criança relacionada à mãe, tanto no modelo mãe quanto na relação contextual do espancamento.

Quadro 1 – Categoria mãe e mãe como objeto de discurso

Como podemos observar a mãe / Ângela, que foi identificada como o agente do espancamento da filha, teve um tratamento lingüístico e cognitivo de tal forma detalhado que se tornou supérflua uma investigação mais profunda da descrição do relato do espancamento. Não há qualquer dúvida: só uma mãe do tipo de Ângela é capaz de tais ações. E por que não se aceitou o relato de Ângela, quando ela afirma ter sido filho de 4 anos o responsável pelo espancamento de A. sua irmã? Porque o modelo cognitivo que se tem de criança não pode torna-la um agente agressor. Um enunciado semelhante a (12) só mudando o agente da ação é impossível. Mas formulemos para verificar depois sua impossibilidade.

(19) E ./ irmão de quatro anos espancou A./ irmã de dois anos e meio.

Quadro 2 – Categoria criança e criança como objeto de discurso

A sentença (20), pelo que se descreve da mãe e da filha, é improvável nesse caso particular com tantas referências locais e temporais, isto é, o fato jornalístico não deixa dúvidas quem é o agente do espancamento. E se nós seguirmos um roteiro estabelecido por Lakoff (1977: 244) de uma sentença prototípica de agente-paciente, veremos mais uma vez que Ângela / mãe reúne as maiores propriedades do agente.Façamos uma adaptação (20):

(20)

1. O agente – Ângela / mãe – espancou A.

2. O paciente – A. ficou com as costas cheia de hematomas;

3. As escoriações nas costas de A. são resultados do espancamento de Ângela/mãe;

4. O agente – Ângela / mãe – espancou por vontade própria;

5. O agente – Ângela / mãe – tem controle do que faz;

6. O agente – Ângela / mãe – é a responsável imediata pelo o que aconteceu (o espancamento e o estado em que ficou a filha)

7. O agente – Ângela / mãe – tem força suficiente para realizar o espancamento; A. a paciente é o objetivo dessa força (isto é, Ângela/ mãe direciona suas forças contra a paciente A.);

8. Este é um evento singular (situado no espaço e no tempo entre Ângela / mãe (agente) e a paciente A.)

9. Este evento singular define o agente – Ângela / mãe;

10. Este evento singular define o paciente –A.;

11. O agente – Ângela/ mãe – usou suas mãos e um cabo de vassoura;

12. As marcas dos hematomas na paciente – A. – são perceptíveis;

13. O agente – Ângela / mãe – percebe os hematomas

14. O agente – Ângela / mãe – está vendo o paciente – A.;

De acordo com o modelo acima (20), o filho de Ângela de quatro anos não teria as seguintes propriedades de agente da ação: 4. geralmente não se atribui a uma criança uma vontade própria, pois parece não saber discernir bem fatos da experiência; 5. também não é dado a uma criança o controle de suas ações; 6. a criança não pode ser responsabilizada pelas suas ações; 7. pela estrutura física / muscular de uma criança de 4 anos, pode não ter força suficiente para espancar alguém com um cabo de vassoura, pelo menos é assim que pensa um delegado de polícia; Os demais itens são excluídos como propriedades do menino como conseqüência da eliminação dos itens 4. 5. 6. e 7. Já a menina A. se enquadra perfeitamente como paciente dentro desse modelo agente-paciente. Além de apresentar as marcas do espancamento, a violência sofrida é explicada pela rejeição da agente Ângela / mãe para com as filhas que chamava de ‘desgraçadas’. Não foi uma violência acidental e momentânea, mas agressões contínuas e constantes, segundo os vizinhos.

Considerações finais

Podemos detectar nos fatos jornalísticos 1, 2, e 3 um desenrolar narrativo com cinco etapas: 1. descrição do fato; 2. perfil de acusação; 3. condenação da acusada; 4. sentença arbitral; 5. amparo à vítima. Na primeira etapa, o enunciado (12) é o resultado de uma única fonte que relata o ocorrido não por ter presenciado uma mãe espancar uma filha menor de dois 2 anos e meio, mas narra o fato pelo que ouviu de outra pessoa que diz ter visto o caso. Como já analisamos anteriormente, essa descrição é incompleta, não tem garantia de ser verdadeira, porém é o enunciado que se impôs, ficando Ângela/ mãe como o agente definitivo da agressão à filha. O que segue depois (Quadro 1), a parte mais volumosa em informação de todo o texto, é um perfil construído pelas fontes, repórteres e policiais de uma mãe que reúne todas as propriedades fundamentais para agir como agiu. A diferença entre as propriedades capitais de uma mãe idealizada (paradigma aparentemente estabilizado) e a mãe construída conceitualmente pelos textos jornalísticos é o que torna a notícia atraente para o leitor. O passo seguinte se dá pela condenação da mãe por tortura, maus-tratos, violência, agressão contra uma menina de apenas dois anos e meio de idade. E o pior e mais dramático é que essa menina é sua filha que ela chama de ‘desgraçada’. Todos lamentam que não se possa aplicar o flagrante do crime para que ela não ficasse em liberdade, enquanto espera o julgamento. Como estamos numa sociedade democrática e que ainda se respeita os direitos constitucionais, deseja-se apenas que o juiz considere o crime como sendo de tortura para que a pena possa ser mais severa. Na apoteose final, jornais e sociedade se mobilizam para socorrer a vítima com um processo de adoção sem que se tenha decidido judicialmente a perda da guarda da criança por parte da mãe. Quanto ao irmão de A. nada se diz. A lógica de que a mãe não tem condições de cuidar ou criar os filhos não serve para E. A razão, talvez, é que ele não faz parte dessa história jornalística, portanto, ele não existe.

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Professor da Universidade Federal de Pernambuco