Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O blogueiro e as teorias construcionistas

‘As notícias são muito mais do que o que acontece’. (TRAQUINA, 2004, p. 207).

O objeto desta análise é a matéria ‘Câmara vai reajustar os vencimentos de Lula em 83%‘ [ver abaixo], do jornalista da Josias de Souza, da Folha de S.Paulo, publicada no blog do autor em 28/3/2007.

Entendo que as notícias não são reflexos da realidade, mas resultam de processos de construção e interação simbólica entre fonte, jornalista e sociedade. A análise apresentada a seguir sustenta-se no paradigma construcionista da notícia e na perspectiva do newsmaking, tendo como métodos a observação do processo de construção da notícia e a análise de conteúdo.

Manipulação ideológica

O jornalista introduz o problema: o reajuste dos vencimentos do presidente da República em 83%. A tese principal da matéria é baseada na afirmativa de que Lula tornar-se-á candidato a milionário. Percebe-se uma provocação desde o primeiro parágrafo do texto, norteando minhas reflexões de que as notícias são um produto das pessoas e das suas intenções. Entendo ainda que a noticiabilidade é um resultado de negociações planejadas para escolher as ocorrências diárias entre os diversos acontecimentos.

Bahia (1990) define notícia como o modo pelo qual o jornalismo registra e leva os fatos ao conhecimento do público (p.35). Marcondes Filho (1989), em sua definição de notícia, busca ressaltar este aspecto – a transformação da informação em notícia como mercadoria, evidenciando um ângulo crítico à notícia e ao seu papel na sociedade:

‘Notícia é a informação transformada em mercadoria com todos os seus aspectos estéticos, emocionais e sensacionais; para isso, a informação sofre um tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização, padronização, simplificação e negação do subjetivismo. Além do mais, ela é um meio de manipulação ideológica de grupos de poder social e uma forma de poder político’ (FILHO, 1989, p.13).

Direcionando a opinião

No segundo parágrafo da matéria, Souza explicita valores: ‘Assim, a remuneração dos parlamentares passará dos atuais R$ 12.840,00 para R$ 16.242,00, incorporando a inflação acumulada desde fevereiro de 2003, data do último aumento. Como Lula recebe menos do que os congressistas (R$ 8.885), para que possa ser equiparado a eles seu aumento terá de ser bem acima da inflação (83%).’ E, a seguir, logo no terceiro parágrafo, cita a proposta do deputado Antonio Carlos Pannunzio, líder do PSDB: ‘O blog apurou que o deputado Antonio Carlos Pannunzio (SP), líder do PSDB, o maior partido de oposição, chegou a defender uma proposta ainda mais ousada. Advogou a tese de que Lula deveria receber R$ 24.500, o mesmo salário pago aos ministros do STF.’ No quarto parágrafo da matéria, Souza continua: ‘Para Pannunzio, o teto salarial do serviço público deveria ser o vencimento do presidente, não o dos ministros do Supremo, como é hoje.’ A intenção do autor aqui é evidenciar a verdadeira intenção do Deputado – a de que o objetivo maior é conseguir um aumento ainda mais significativo para os parlamentares.

O argumento que sustenta a tese principal – Lula tornar-se-á candidato a milionário – surge nos parágrafos cinco e seis quase como uma declaração de Imposto de Renda do presidente da República. Dessa forma, o autor direciona o julgamento da opinião pública a um só personagem – Lula – e coloca os principais arquitetos do acordo – o presidente da Câmara e os líderes dos partidos governistas e de oposição – em segundo plano.

Monopólio de um saber

As notícias não podem ser o ‘espelho’ da realidade porque, como entende o paradigma construcionista, elas ajudam a construir a própria realidade. Traquina (2004) assume, teoricamente, o paradigma construcionista. Na compreensão do autor, as notícias são uma ‘construção’ social, ou seja,

‘o resultado de inúmeras interações entre diversos agentes sociais que pretendem mobilizar as notícias como um recurso social em prol de suas estratégias de comunicação, e os profissionais do campo, que reivindicam o monopólio de um saber, precisamente o que é notícia’ (TRAQUINA, 2004, p.28).

‘Aparência da ‘realidade’’

Se entendermos as notícias como construções sociais, reconhecemos, conforme este paradigma, que as notícias são narrativas marcadas pela cultura jornalística e pela cultura da sociedade em que estão inseridas. As técnicas de construção dos produtos jornalísticos (diferentes gêneros e formatos) e a necessidade de escolher, excluir ou acentuar determinados aspectos dos acontecimentos, são exemplos de como, através das narrativas, a notícia ‘enquadra’ o acontecimento e a realidade. A escolha narrativa é

‘orientada pela aparência que a ‘realidade’ assume para os jornalistas pelas convenções que moldam a sua percepção e fornecem o repertório formal para a apresentação dos acontecimentos, pelas instituições e rotinas’ (TRAQUINA, 2002, p.87).

Definidores primários

Retornando à matéria de Souza, a partir da sétima passagem do texto o que se percebe é uma explanação do desenrolar da estória. É perceptível também toda uma preocupação do autor em chamar a atenção da sociedade para o impacto desses reajustes nas contas públicas. Apesar da ocultação das fontes, pelo teor da informação percebe-se o uso dos definidores primários, ou seja, as fontes institucionalizadas, oficiais.

A relação definidores primários/jornalistas permite, segundo a teoria estruturalista, compreender por que a reprodução da ideologia dominante não é intencional. As notícias dependem, segundo Hall et al. (1993), dos assuntos fornecidos por fontes institucionais regulares e credíveis. E os jornalistas buscam essas fontes por duas razões: as pressões internas da produção jornalística; e por se orientarem pelos princípios da objetividade e da imparcialidade. Desse modo, essas fontes são definidores primários porque estabelecem a interpretação primária dos acontecimentos.

‘Ter noticiabilidade’

O ponto-chave da teoria estruturalista é a reprodução da ideologia dominante pela mídia, não de modo intencional, mas devido a uma relação estrutural entre as fontes e a mídia. O determinismo, principal crítica à teoria estruturalista, é amenizado pela teoria interacionista. De modo geral, a teoria interacionista ou etnoconstrucionista, assim como a estruturalista, entende que a conexão entre as fontes e os jornalistas contribui para que as notícias reforcem a ideologia dominante, ao apoiarem as posições oficiais dos acontecimentos. Contudo, a teoria interacionista relativiza essa perspectiva, cuja concepção de notícia é

‘o resultado de um processo de produção, definido como a percepção, seleção e transformação de uma matéria-prima (principalmente os acontecimentos) num produto (as notícias). Os acontecimentos constituem um imenso universo de matéria-prima; a estratificação deste recurso consiste na seleção do que irá ser tratado, ou seja, na escolha do que se julga ser matéria-prima digna de adquirir a existência pública de notícia, numa palavra – ter noticiabilidade (newsworthiness)’ (TRAQUINA, 2002, p.94).

Paradigma construcionista

O texto, de modo geral, evidencia as articulações políticas para favorecimento próprio. Porém, tal estória, apesar de interesse público, se torna tendenciosa a partir do momento que não se explicita as opiniões e/ou comentários do presidente da República em relação ao assunto.

Assumo, nesta análise, o paradigma construcionista, mas tendo à compreensão proposta pela teoria interacionista. Considero que a teoria interacionista dá conta, devido à sua maior abertura, de inúmeras relações que se estabelecem na construção da notícia, relações que busco compreender dentro da produção jornalística desta matéria.

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Câmara vai reajustar os vencimentos de Lula em 83%

Josias de Souza

Em reunião reservada que mantiveram na noite de segunda-feira (28), o presidente da Câmara e os líderes dos partidos governistas e de oposição decidiram equiparar o salário de Lula ao dos parlamentares. Os vencimentos dos deputados serão aumentados em 26,5%. O contra-cheque do presidente da República será tonificado em 83%.

Assim, a remuneração dos parlamentares passará dos atuais R$ 12.840 para R$ 16.242, incorporando a inflação acumulada desde fevereiro de 2003, data do último aumento. Como Lula recebe menos do que os congressistas (R$ 8.885), para que possa ser equiparado a eles, seu aumento terá de ser bem acima da inflação (83%).

O encontro em que o acordo foi selado ocorreu na residência oficial do presidente da Câmara. Houve concordância de todos. O blog apurou que o deputado Antonio Carlos Pannunzio (SP), líder do PSDB, o maior partido de oposição, chegou a defender uma proposta ainda mais ousada. Advogou a tese de que Lula deveria receber R$ 24.500, o mesmo salário pago aos ministros do STF.

Para Pannunzio, o teto salarial do serviço público deveria ser o vencimento do presidente, não o dos ministros do Supremo, como é hoje. Não houve quem discordasse. Mas a mudança exigiria a aprovação de uma emenda à Constituição. Optou-se pela solução intermediária de equiparar Lula aos congressistas. O líder do PFL, Onyx Lorenzoini (RS), não compareceu à reunião.

Enquanto Lula estiver no Planalto, o país conviverá com um presidente que, embora não chegue a receber o mesmo que os ministros do Supremo, chega bem perto. Lula, 61 anos, recebe desde 1997 uma aposentadoria especial, cujo valor atual é de R$ 4.509, 68. Obteve-a na Justiça, graças à perda de um mandato sindical e a 51 dias de cadeia, que amargou em 1980, sob a ditadura. Somando-se o benefício previdenciário ao salário turbinado pelo Congresso, passará a receber mensalmente R$ 20.751,68. Torna-se candidato a milionário.

Em 2002, o patrimônio declarado de Lula era de R$ 423 mil. Em 2006, saltou para R$ 839 mil -um crescimento de 98%. Em 2007, com casa, comida, roupa lavada, carro na garagem e avião no hangar, Lula continuará poupando o salário. E seu patrimônio vencerá facilmente a barreira do milhão.

Estabelecido o consenso na reunião com os líderes, Chinaglia informou a eles que negociaria o reajuste com o Planalto e com o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). A decisão final é exclusiva do Congresso. A idéia é incluir os vencimentos do presidente no mesmo projeto que tratará do reajuste dos deputados. Pretende-se tonificar também os salários do vice-presidente da República , José Alencar, e dos ministros. O que se analisa agora é se há necessidade de mencioná-los no projeto ou se, uma vez reajustado o presidente, seus contracheques subiriam automaticamente, em valores proporcionais.

O reajuste dos ministros produzirá um efeito cascata. Os salários de funcionários que ocupam cargos de confiança no governo – entre 15 mil e 20 mil pessoas – teriam de ser reajustados em percentual equivalente ao dos ministros. E não se sabe, por ora, qual seria o impacto desses reajustes nas contas públicas.

Haverá um efeito dominó também nas assembléias estaduais e nas câmaras municipais. Deputados estaduais e vereadores recebem um percentual dos vencimentos dos congressistas. E não terão nenhum pejo de seguir os passos dos deputados e dos senadores.

Os termos do acordo informal celebrado entre Chinaglia e os líderes diferem de uma decisão tomada na semana passada pela Comissão de Finanças da Câmara. Ali, aprovaram-se projetos do deputado Virgílio Guimarães (PT-MG) que concediam os mesmos 26,5% de reajuste para os congressistas, para Lula e para Alencar.

Os líderes sugeriram a Chinaglia que mande ao arquivo as propostas de Virgílio, elaborando um novo projeto. O presidente da Câmara assentiu. Houve consenso também na reprovação a um outro projeto apresentado por Virgílio, aquele que permite aos deputados gastar até R$ 5,4 mil dos R$ 15 mil que recebem a título de ajuda de custo sem a necessidade de apresentar notas fiscais. A idéia, por esdrúxula, também será mandada ao arquivo.

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Estudante de Jornalismo em Multimeios na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Juazeiro, BA