Não posso deixar de produzir alguns comentários a respeito de um suposto dever da mídia denunciar as concepções de mundo que se mostrassem absurdas e de constranger quem as expusesse ao silêncio para não conduzir o mundo ao obscurantismo. Dever este que foi visualizado pelo médico e articulista bissexto do Observatório Paulo Bento Bandarra:
‘Considerar a terra chata ou redonda, a terra imóvel ou girando em volta do sol, as doenças transmitidas por mau-olhado ou por infecções bacterianas, a chuva cair no solo por gravidade ou atraída por seu igual, sendo tudo uma mera questão de escolha que cabe ao leitor optar por qual `opinião´ lhe agrade mais e lhe convenha e a imprensa não denunciar os motivos de tais absurdos por um subjetivo respeito é negar a sua função. Deve ela levar o entendimento do sábio às pessoas, e não o dos tolos. E mostrar claramente a todo o momento por que são absurdos’ [‘Brincadeira tem hora e lugar‘].
Devo, antes, deixar bem claro que não sou criacionista e que já travei com o ilustrado e combativo médico um debate sobre as diferenças de percepções ao comentar um texto do professor Michelson Borges, também estampado neste Observatório [‘Boa escola, `mas´ criacionista‘]. Devo dizer também que a ocorrência dos fatos, em si mesma, não é uma questão de opinião: ou eles ocorrem ou não ocorrem. Mas a percepção dos fatos já adentra o campo da subjetividade. O cientista – ele não era nem teólogo nem adivinho, era astrônomo – Ptolomeu, pela observação, chegara á conclusão de que a Terra era o centro imóvel do Universo. Vencera, então, a percepção em sentido contrário adotada pelo astrônomo Hiparco. E é conhecido o uso político de que se fez uso; não só pelo fato de haver dado plausibilidade ao episódio bíblico em que Josué faz parar o sol para prolongar a batalha contra os amorreus, como também por se tratar de uma prova do amor de Deus pelos homens havê-los situado no centro do Universo.
O caráter ilusório da percepção de Ptolomeu somente viria a ser demonstrado, mediante cálculos, por Copérnico (que era um teólogo), e mediante o uso do telescópio, por Galileu, corroborando a percepção de Hiparco. Mas, de qualquer sorte, o que se está a dizer, com isto? Apenas que a qualificação do tolo e do sábio depende exclusivamente dos referenciais que se adotem, e que tal qualificação, longe de se configurar como uma seleção inteligente de quem tem a capacidade de separar o joio do trigo, não deixa de ser, em realidade, um juízo de valor que pretenda impor as próprias convicções como se fossem dotadas de verdade universal.
Mais realistas que o rei
Estou, efetivamente, a partir da minha divergência a respeito do que seria a função social da mídia, muito mais a de fornecer os elementos para o julgamento do que propriamente a de julgar, retomando o debate sobre a aparente antinomia ‘com a ciência ou com a religião’, que versei no artigo intitulado ‘Glosas ao tema do ateísmo‘, neste Observatório.
Dicotomia que se coloca, a bem de ver, no seguinte pressuposto: ‘com a ciência = contra a religião’/’com a religião = contra a ciência’.
O estabelecimento de tal dicotomia, no meu sentir, traduz, antes de tudo, uma disputa de poder, radicado no simplismo cômodo da lógica binária – ‘comigo ou com meu inimigo’ –, e a opção se deu, necessariamente, pelo que pareceu mais apto a propiciar, com maior eficiência, o domínio sobre a natureza e – por que não dizer? – os demais seres humanos.
Sem contar com o dado apresentado por Werner Sombart, bem documentado no livro El apogeo del capitalismo, e que explica, também, por que a partir do século 19 o ateísmo se vem a movimentar com maior desenvoltura do que na Antiguidade, em que se verifica entre os epicuristas a negação de todos os deuses em nome do culto ao prazer – e que, no particular, foram mais realistas que o rei, porque Epicuro, em relação ao prazer, nunca deixou de dar ênfase ao valor da temperança, de acordo com os fragmentos que chegaram a nossos dias.
Ficção e realidade
Por outro lado, podemos referir casos de ateísmo que não são necessariamente cientificistas – o que, de logo, também vem a comprometer o binarismo ‘ou com a ciência ou com a religião’ –, como Friedrich Nietzsche.
Confundir ‘fé’ com ‘caçada aos inimigos da fé’ não deixa de ser, em realidade, uma idéia da fragilidade da própria base da crença que se quer defender.
De outra parte, não deixa de traduzir uma posição marcada pelo dogmatismo considerar que a discussão dos pressupostos gnosiológicos da própria ciência implicaria uma tentativa de desqualificação desta: isto porque, quando se fala na credibilidade de uma proposição se basear na ‘evidência’, resta saber quando a evidência se caracteriza, e se, realmente, quantos defendam as respectivas posições estariam dispostos a realizar experiências ao alcance das respectivas mãos.
Quando se fala em ampliar ou restringir o conhecimento humano, tem-se de recordar que uma proposição que descreva um acontecimento ou um personagem, em tese, ampliá-lo-ia.
O enunciado ‘Otelo é genro de Brabancio e marido de Desdemona’ não deixa de ser tão informativo quanto o enunciado ‘Otelo é um personagem de ficção’.
No contexto do drama de Shakespeare, a primeira proposição é verdadeira e a segunda é falsa. Se falarmos, porém, sobre o drama de Shakespeare, tanto a primeira quanto a segunda proposição são verdadeiras – a matéria da conversa é o drama Otelo.
Porém, se tomarmos em consideração o contexto em que nós vivemos, a nossa realidade histórica, a primeira proposição será falsa e a segunda verdadeira.
Creio que, com este exemplo algo singelo, possa ser demonstrado o porquê de se colocar ainda em aberto a questão. Isto, num caso em que não temos dúvidas a respeito do que pertence ao domínio da ficção e da realidade.
Um debate civilizado
E no que tange a narrativas de experiências por que as pessoas tenham passado, como conferir-lhes credibilidade? Ou mesmo a experiências feitas por cientistas?
Nem cabe dizer que, no último caso referido, há controlabilidade plena das proposições, principalmente quando se sabe que o valor maior que se protege nos contratos de transferência de tecnologia é o sigilo.
Vem à baila um tema que foi versado no livro Retóricas, de Chaim Perelman, que refere o momento em que o embaixador da Holanda perdeu a credibilidade diante do rei do Sião porque fez referência ao endurecimento da água dos lagos de um modo tal que poderiam suportar pesos de monta. O soberano não tinha a experiência do gelo, embora tivesse em boa conta o embaixador.
Isto apenas vem para mostrar como a questão da credibilidade não se vem a equacionar em termos singelos de verificabilidade.
Por outra banda, a adoção de atitudes belicosas, em que uns prezam a própria liberdade mas se recusam a aceitá-la no outro, parece ver nos textos em que as pessoas sustentam as suas posições pessoais ataques ferozes às posições contrárias e prejudica a sua leitura isenta.
O professor Deonísio da Silva, em artigo específico sobre este tema [‘Um mundo sem Deus‘], não se insurge contra o ‘renascimento das ciências’ (será que, depois da Idade Moderna, foram elas proscritas em algum lugar no Ocidente?), mas chama ao debate o pensamento ateísta.
Assim como o professor Rubens Pazza [‘Discriminação religiosa no Brasil‘], elaborou um artigo igualmente bem escrito e bem fundamentado, que aponta para a possibilidade de um debate civilizado entre os que têm certeza da existência de Deus, os que O aceitam por hipótese, os que não O negam nem O aceitam por hipótese e os que têm certeza de Sua não existência.
Referenciais éticos
Ou seja: houve uma demonstração prática de como o debate pode ser travado em tom civilizado.
Apontar, outrossim, para o dado de que o referencial ético não radica no conhecimento científico, não vale por negar ética a quem não tem religião o meu pronunciamento. Vale, apenas, por dizer que o referencial ético ainda tem, consciente ou inconscientemente, um viés que transcende o puramente racional.
Racionalmente, teríamos de enveredar pelo relativismo – e, de fato, kantianos ilustres como Gustav Radbruch, Hans Kelsen (este, a meu ver, o maior dentre eles) eram expressos no sentido de dizer que não se poderia falar em um conceito científico do que fosse o justo.
Uma ética de base puramente racional não poderia deixar de ser, pois, essencialmente formalista. Não existe um conceito científico, racional, do que seja o ‘bem’ ou o ‘mal’, o ‘justo’ ou o ‘injusto’.Os referenciais para tanto – antes que se venham a converter em regras de conduta socialmente aceitas, como as do direito, as do costume etc. – não são provenientes da ciência.
Religiões e mitos
A quantos pensem que o deísmo implica, necessariamente, a legitimação da ação violenta e a alienação, gostaria que me trouxessem suas reflexões sobre a atuação de Gandhi – cujo assassinato, por sinal, completa sessenta anos neste ano –, tendo em vista os resultados que o seu método produziu para o efeito de dobrar as forças do Império inglês – algo que as armas durante séculos não conseguiram – e isto, numa luta iniciada em 1919, quando ele percebeu que jamais a civilizada Inglaterra estaria disposta a conceder aos seus súditos indianos as prerrogativas inerentes à cidadania britânica. O deísmo esteve à base da atuação e do pensamento de Gandhi, que foi muito atacado, por sinal, por George Orwell.
Por outro lado, é possível estudar com espírito científico as religiões e mitos, sem os tratar aprioristicamente como tolices de uma mentalidade infantilizada? Com certeza, e aí vão exemplos.
Uma obra excelente, com aval da comunidade científica competente, é o Tratado da história das religiões, de Mircea Eliade, na qual são amplificados os temas versados em Mito e realidade e O sagrado e o profano, do mesmo autor.
Confiabilidade e credibilidade
Por sinal, é precisamente neste sentido que se colocou o texto do jornalista Júlio Ottoboni, muito longe, pois, de apoiar o criacionismo, e que não deixa de realizar uma crítica ao posicionamento da ministra Marina Silva, embora sem a reduzir, desnecessariamente, ao ridículo:
‘O Estado brasileiro se diz laico, mesmo sem conseguir se explicar em que se baseia para manter os feriados santos, a existência de crucifixos em departamentos dos três poderes e o próprio carnaval datado a partir de uma atividade cristã. Neste cenário de papéis difusos, a ministra Marina Silva confundiu sua opção pessoal com sua posição no governo.
‘Ela foi buscar no arcaico puritanismo sulista norte-americano a idéia de propor aulas de criacionismo nas escolas sob o argumento de que o evolucionismo é matéria curricular. Extrapolou, sem dúvida. Num Estado constitucionalmente laico, a educação formal é desenvolvida nas escolas de ensino regular e a formação religiosa é de responsabilidade familiar ou de interesse individual.
‘Faltou à ministra distinguir o que é crível, por ser cientificamente provado, e o que se trata de dogma de fé, isento assim de comprovação. O evolucionismo, apesar de todas suas falhas é tema pesquisado, estudado e detentor de base científica. No editorial `Criacionismo, não, a Folha de S.Paulo (20/1/2008) foi ao cerne da questão:
‘`Que a religião fique onde está, e não se faça de ciência: eis uma exigência, afinal modesta, mas inegociável, da modernidade.´
[…]
‘A revista optou pelo caminho mais fácil, o de tratar a ministra Marina Silva como uma fanática religiosa ou `uma ex-candidata a freira que se tornou evangélica e é missionária da igreja Assembléia de Deus desde 2004 – defendeu o ensino nas escolas do criacionismo ao lado do evolucionismo´. Esse foi o máximo que conseguiu se aproximar do que, necessariamente, nortearia uma produtiva discussão.
‘Como nenhum dos órgãos de imprensa foi questionar a própria ministra, mantendo-se a lógica da Rondas Ostensivas Tobias Aguiar (Rota) – `atira primeiro e pergunta depois´ –, o cientista Antonio Donato Nobre, ecólogo do Instituto de Pesquisa da Amazônica (Inpa) e membro do IPCC, cumpriu o papel que caberia aos jornalistas. Tratou do assunto com a protagonista da polêmica, num dos intervalos da conferência sobre mudanças climáticas, ocorrido em Bali, em dezembro último.
‘Marina esteve longe de se mostrar uma fanática religiosa enrustida em seus dogmas. Conversou tranqüilamente com o pesquisador, mostrou seu ponto de vista como crente no cristianismo e na criação divina, sem a defesa literal das escrituras do livro do Genesis. Ou seja, a ministra pode ter derrapado, porém continua trilhando os caminhos da confiabilidade e credibilidade’ [‘A imprensa que afaga e apedreja‘].
‘Operadores do Direito’
Antes que se diga que somente no campo religioso se podem apontar exemplos de atrocidades, como os processos de Joana D’Arc, Girolamo Savonarola, Giordano Bruno e Galileu – irrelevante, no caso, serem ou não mártires da ciência (quanto aos dois primeiros, claro que não; quanto a Giordano, há controvérsia; quanto a Galileu, sem dúvida que sim), basta que se os coloque como mártires da intolerância –, lembremos que a República positivista, em relação a Canudos, foi denunciada por Euclides da Cunha – que também via com maus olhos o fanatismo dos seguidores do rábula Antônio Conselheiro – como autora de um crime e que tanto o Cyclon B (o gás utilizado nas câmaras de extermínio nos campos de concentração alemães) como as bombas V2, o napalm, as bombas de Hiroxima e Nagasaki foram desenvolvidas não por ‘operadores do Direito’ – anglicismo de que não gosto, mas que já está em voga – mas por cientistas da área das exatas.
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Advogado, Porto Alegre, RS