Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O espaço da criatividade no jornalismo

Fim de ano, ao menos para aqueles que exercem o ofício de professor universitário, é uma época em que somos obrigados a conviver com trabalhos e mais trabalhos de alunos, além de convites para participar de bancas dos TCCs (trabalhos de conclusão de curso).

Na prática, isso significa ter de ler os livros-reportagem (a maioria dos trabalhos dos formandos em jornalismo) para você ser avaliador. No meu caso, neste final de 2006, foram cinco bancas, sendo quatro livros-reportagem e um site. Isso exige, também, uma dedicação à leitura num apertado espaço de tempo (cerca de duas semanas), sempre às vésperas do Natal. O lado bom é que às vezes nos deparamos com boas surpresas. Foi o caso de um livro-reportagem sobre a criação do Jornal da Tarde, em 1966.

Trabalhei no JT entre 1990 e 2000 e tive a honra de dividir a banca com dois de seus fundadores – Fernando Portela e Gabriel Manzano. Nós três dissemos às duas alunas (Bruna Burri e Melissa Castro, agora coleguinhas) que a opção pelos integrantes da banca poderia ter sido um tiro pela culatra: como os três conhecemos muitas histórias do jornal, qualquer escorregão da parte delas seria percebida. De fato, isso aconteceu, mas as escorregadelas foram muito poucas, diante da quantidade de acertos.

Os ‘meninos do Ruy’

Elas conseguiram reproduzir histórias deliciosas da fundação e do primeiro ano de JT, o ambiente político e social da época e, principalmente, o clima de descontração que permeava a redação – então formada pelos chamados ‘meninos do Ruy’ (em referência ao integrante da família Mesquita responsável pela Redação).

Nas muitas histórias contadas no livro estão desde o trote que era aplicado aos focas, as partidas de futebol improvisadas no corredor e as brincadeiras que permeavam o fechamento de cada edição, nas madrugadas. Na argüição, a banca lembrou outras histórias, ainda mais divertidas. Só para citar uma delas, houve um dia em que todas as laudas jogadas ao chão durante o fechamento foram coladas nas paredes da redação – atendendo ao memorando de um diretor que proibia os jornalistas do JT de jogar papel no chão. Pela manhã, ele encontrou o chão absolutamente limpo, mas as laudas nas paredes. Nunca mais aquele diretor lavrou outra ordem desse tipo, ao menos para os ‘meninos do Ruy’. Esse era um retrato do JT: um grande deboche, mas que nunca significou falta de talento, competência ou qualidade de texto.

JT como aquele, nunca mais

Após a banca, a reflexão foi inevitável. Primeiro, sob uma ótica saudosista: a de que aquele JT deixou de existir há anos e não se assemelha nem minimamente ao diário que ainda circula com o mesmo nome. Outra reflexão diz respeito à qualidade de vida que se tinha. Qualidade no sentido de se trabalhar de forma descontraída, sem estresse, com criatividade, originalidade e, por causa disso, fazendo um jornalismo de qualidade.

Essa descontração aliada à criatividade jornalística nunca mais deve se repetir na mídia tradicional. Essa foi, aliás, outra triste constatação de nós três, integrantes da banca, num café de despedida: o ambiente político e a revolução de costumes do final dos anos 1960 é que possibilitaram o surgimento de uma redação (e por conseguinte, de um jornal) como aquele JT, algo impensável na sociedade de hoje e no mundo da mídia atual, que virou um negócio como qualquer outro.

Semelhanças com as pontocom

Por outro lado, vi uma relação entre aquele modo JT de fazer jornalismo com o estilo das pontocom. Depois que saí do JT, trabalhei com web durante quatro anos. A primeira diferença que se notava quando se ia para a internet era a descontração do ambiente da então chamada ‘nova economia’. A galera da tecnologia passeando pela redação (ou pela área de conteúdo, como eles preferiam chamar) com seus carrinhos de controle remoto, chuvas de bichinhos de pelúcia para receber (e se despedir) de colegas, mesa de pebolim junto ao café, bola e cesta de basquete na copa, e até uma sala de descompressão, com almofadões para compensar o trabalho nas madrugadas.

As brincadeiras e as piadas, aliadas à liberdade para se criar no limite do impossível (ou da tecnologia) eram regra e nunca mais foram vistas depois daqueles anos do boom da internet. Atualmente, as (poucas) empresas pontocom que sobreviveram adaptaram-se às regras da velha economia – ou da economia real, diriam os mais ortodoxos.

Há muitas semelhanças entre o espírito do velho JT e daquelas pontocom. A principal delas era o espaço que se dava à criatividade, às idéias que surgiam e que nunca eram descartadas de imediato, por mais malucas ou estratosféricas que parecessem. No velho JT, numa época completamente diferente, a começar pela inexistência de computadores pessoais e da internet, a vazão das idéias refletia-se na originalidade das pautas. O jornal conseguia abordar assuntos de uma maneira como nenhum outro fazia – ou transformar assuntos aparentemente banais em histórias interessantíssimas.

Uma luz no fim do túnel

Nas pontocom, o resultado da criatividade era outro. A interatividade, o uso de hyperlinks, a navegabilidade e os recursos multimídia podiam ser pensados sem limitações, sem barreiras. O resultado se vê hoje, nos blackberrys, nos downloads, nos conteúdos que se acessa por celular e em tudo o que ainda está por vir, misturando tecnologia com conteúdo.

Até mesmo as grandes reportagens, como aquelas que eram feitas pelo JT e que hoje em dia quase não se vêem na imprensa, também acharam seu espaço na web, em blogs e sites como este, já que jornais e revistas convivem com um permanente problema de espaço. As boas reportagens, assim como as boas idéias, são fruto da liberdade de criação, da valorização do talento, de um ambiente sem estresse, do prazer em trabalhar de quem as produz.

Apesar de os modelos de negócio das pontocom terem se mostrado inviáveis, aquelas empresas provaram que é possível produzir conteúdo de qualidade, de forma criativa, mesmo nos dias de hoje. Sinal de que o espírito do velho JT não morreu, ou pelo menos pode ser revivido, em empresas que entendam o que realmente significa ‘capital humano’ e a diferença que isso pode fazer aos seus negócios.

Ou seja: há uma luz no fim do túnel para quem acredita em criatividade no jornalismo.

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Jornalista e professor universitário