Eis que num debate ocorrido quando do encerramento do ano de 2004, no âmbito da disciplina Telejornalismo, no Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), apresenta-se o seguinte dilema: como fotografar ou filmar em local público, realizando cobertura jornalística, sem que isso represente algum tipo de desrespeito a alguém.
A busca de esclarecimento sobre a questão teve um motivo específico: repórteres em treinamento receberam como missão (previamente discutida em reunião de pauta) a tarefa de demonstrar como a UnB é uma instituição de ensino superior aberta a estudantes estrangeiros, em especial os oriundos de países africanos, com os quais o Brasil mantém acordos bilaterais de aceitação de universitários, sem vestibular.
Havia, portanto, de se apurar as informações para o texto da reportagem e, paralelamente, obter as fotos ilustrativas. Surgiu, entre os repórteres pautados, a idéia de filmar os personagens da matéria nos espaços circundantes ao Restaurante Universitário da UnB, local onde costumam se encontrar em função de momentos de pausa, após as refeições, um cafezinho e, claro, o animado papo entre eles – ocasião em que os transeuntes podem ouvir, aqui e acolá, um certo sotaque ou mesmo algum dialetos falados em Cabo Verde, Guiné, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Tratava-se, é preciso dizer, de uma matéria muito mais promocional do que investigativa. Não estava em questão nenhuma denúncia. Portanto, algo mais para o gênero faits divers do que para as coberturas hard, em que, por vezes, não resta outro recurso senão o típico flagrante: a foto-surpresa-do-fato, no momento em que ele acontece.
Noções de dever
Os repórteres saíram a campo munidos do pressuposto de que não há qualquer problema moral, ético, deontológico e legal em filmar pessoas em área pública – sendo, portanto, um ato legítimo. Ocorreu, no entanto, que os referidos alunos ‘africanos’ notaram que estavam sendo o objeto da reportagem e alguns deles chegaram a se queixar da exposição a contragosto de suas imagens. Sentiram-se, portanto, constrangidos.
Há, aqui, um detalhe cultural há ser levado em conta, mas lamentavelmente desconhecido, na ocasião, pelos alunos: fotografar alguém de cultura islâmica não é a mesma coisa do que fotografar, em contexto semelhante, um ocidental.
Houve, entre os próprios alunos de Telejornalismo, uma polêmica sobre o direito de repórteres filmarem alguém sem seu consentimento prévio. Teria havido, no caso em foco, algum tipo de violação, abuso, constrangimento ou alguma transgressão ao direito à imagem e ao direito da imagem?
O caso é banal. O tipo de pauta é banal. Mas, a circunstância colocada foi rica em possibilidades de análise e conclusões úteis e esclarecedoras acerca de procedimentos corretos no trato dos direitos individuais, mas também com relação à liberdade de expressão e ao estrito cumprimento do dever profissional.
Tem este texto, portanto, o objetivo de pontuar alguns elementos para reflexão. Primeiramente, é sempre útil examinar a tradição de alguns conceitos, a começar pelas noções de dever, de obrigação e deontologia, já que, do ponto de vista ético, as codificações geralmente estabelecem, para além dos princípios gerais, as situações relacionadas ao dever e as restrições que caracterizam o não-dever e que implicam, de um lado, as obrigações morais e, de outro, as infrações (morais) e penalidades (morais).
Espaços públicos
Curiosamente, dever vem de dívida. E quem deve tem a obrigação de saldar o seu débito. Ora, qual o dever fundamental do jornalista? A resposta mais básica é: o dever de informar, sobretudo quando a informação buscada se adensa dos valores-notícia que caracterizam as matérias de interesse público – envolvendo, por exemplo, aspectos de utilidade, urgência, denúncia e esclarecimento.
Deontologia, por sua vez, significa o ‘estudo dos princípios, fundamentos e sistemas de moral’. E é aí que passamos ao campo de uma ética aplicada a um contexto específico – no caso, o exercício do jornalismo e, na circunstância analisada, o ‘estrito cumprimento do dever profissional’, algo capaz de legitimar algumas ações e de diferenciá-las da simples curiosidade de alguém e da mera bisbilhotagem do vulgo.
Existem as figuras da inviolabilidade, da intimidade e da privacidade quando o âmbito não é mais o da esfera do lar, mas do espaço comum, que é o espaço da circulação, portanto, das áreas e vias públicas?
Pode-se entender que mesmo quando alguém se retira da proteção básica que lhe proporciona a oikos, a vida doméstica (domus), ainda leva consigo algumas salvaguardas de proteção, especialmente contra algumas formas de abordagem, assédio, abuso e constrangimento. Ou, quando menos, dos limites impostos pelos costumes – estes sim, regulam de forma difusa o comportamento social, a boa educação, o respeito, a etiqueta e os modos de se conduzir publicamente.
A etiqueta profissional, no entanto, representa um degrau específico mais elevado em relação ao que comumente se espera das pessoas. Trata-se de uma metalinguagem, de um metadiscurso em relação ao simples bom senso. É então quando nos permitimos distinguir entre o simples espaço público da circulação (que preferimos denominar de ‘espaço comum’, seguindo a terminologia do sociólogo francês Dominique Wolton em Pensar a Comunicação, Editora da UnB, 2004) e o espaço público enquanto abrigo das instituições e das pessoas institucionais, ou seja, em pleno desempenho de suas funções e papéis públicos – entre elas, o de jornalista.
Termo de concordância
Algumas pessoas públicas ou institucionais, quando em trânsito pelo espaço comum das áreas e vias públicas, no desempenho de alguma ação de interesse público, até merecem que se lhes abramos espaço, haja vista a livre passagem que demandam as ambulâncias e as viaturas da polícia, do corpo de bombeiros e (assim entendemos) das reportagens.
Entendemos que uma câmera em ação postada desde uma viatura ou, ostensivamente, em operação por um profissional de imprensa, significa igualmente um estrito cumprimento de um dever profissional, havendo, porém, alguns pré-requisitos, como: alguma identidade visual característica e, se necessário, o porte de documentos ou credenciais para a comprovação de que se trata de alguém no exercício profissional, direito a que todos têm e que, no caso específico da imprensa, não pode ser objeto de nenhuma forma de obstrução.
Há que se ponderar, em síntese, que os jornalistas dispõem de uma certa ‘licença’ para captar imagens em público e de dar publicidade à vida em público – ressalvados os limites impostos pelo direito que todos têm de não serem individuados no contexto da cena pública, sobretudo se isso lhes causar algum tipo de violação, assédio, constrangimento, abuso e dano (físico, material ou moral).
No caso em tela, a conclusão foi a de que não houve, por parte dos repórteres em treinamento, um deliberado abuso, má-fé ou aproveitamento indébito de um direito (de filmar pessoas em área pública). Entretanto, entre os próprios alunos da turma de Telejornalismo I, houve o consenso de que teria sido melhor se as pessoas-objeto da filmagem estivessem prevenidas, até mesmo para salvaguarda de alguma ação por dano material ou moral (por vezes, alguns desses alunos estrangeiros vêm de contextos politicamente adversos).
Foi lembrado igualmente que em situações dessa natureza outro percalço é munir-se de uma ficha contendo termos de concordância quanto ao aparecimento em reportagem jornalística. Perde-se, é claro, em espontaneidade, mas ganha-se em procedimento técnico isento de seqüelas deontológicas.
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Professor de Ética na Comunicação na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília