Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O fenômeno afundado em dívidas

Dedico este texto a Michael Jackson em protesto à mídia tradicional, aos taxativos e espertinhos que vivem em seus escafandros, aos piadistas, a toda multidão desenfreada, cega, surda, sem massa encefálica e que só fala asneira (como disse muito bem Charles Chaplin, cada ser individualmente pode ser incrível, mas a massa é um monstro sem cabeça).

Muito foi dito até hoje sobre a conduta monstruosa, bizarra, perniciosa deste ícone imortal. Alguns episódios do cantor são motivos de riso e condenação, de conspiração e pré-julgamentos. Confesso que, não apenas pela figura que abordo, mas por discordar da onda irresponsável que engole a opinião pública, promovida pelos veículos de comunicação, é que me permito analisar os fatos à minha moda, digna dos achismos de qualquer humano que tenha o mesmo direito de quem estampa o ‘poder de fogo’.

Não há como negar que não é prudente que alguém chegue muito perto de uma sacada com um bebê. Mas dá para imaginar que a pressão pública para ver a criança o induziu a tal atitude desnecessária, que seria muito mais maculada e rechaçada por terceiros. Se Michael quisesse pôr seu filho em perigo não o teria feito em público, aquela certamente não seria a melhor oportunidade para piadas e brincadeiras de humor negro e mau-gosto envolvendo uma criança. Portanto, entendo que ele quis agradar ao seu público, sem maiores inconsequências e talvez até por pura falta de bom senso ou habilidade paterna.

O estigma racial

Convenhamos que ele mais se parecia com uma criança. Maldade? Muito improvável para um ser que escreve uma música como Heal the World enquanto apanhava desmedidamente do pai rígido durante a infância. Improvável igualmente a acusação de abuso sexual contra menores, certamente eu seria a primeira a repudiá-lo. Você faria um acordo com o réu em qualquer quantia financeira depois de saber que o cara molestou seu filho? Qual dinheiro no mundo valeria a integridade sexual de uma criança? Porque a acusação de um garoto de 13 anos não o pôs atrás das grades? Porque teria sido ele absolvido? Porque as mães permitiam que suas crianças fossem brincar com Michael, se ele passou a não ser mais muito normal depois de sua mudança de cor? Será que não tinham mais nada a sugar do astro pop? Será que Michael poderia exigir indenização em igual valor para as pessoas civis que o acusaram? Será por isso talvez, e claro, por causa de seu padrão de vida claramente diferenciado, não se pode negar, que hoje o maior fenômeno da música pop morre em uma casa de aluguel, afundado em dívidas?

Francamente, a imprensa mundial, a justiça e os responsáveis pelas crianças arranjaram uma ótima oportunidade de arrendar uma graninha do multi-milionário excêntrico, mas não lobo-mau. Se o pai de Michael o usava desde a infância, parece que ao invés de se livrar desta sina, ela se perpetuaria. Que traumas terão levado Michael a querer mudar de cor, se ele realmente o fez? Me parece que ele não tinha muita habilidade em persuasão, me parecia ser tímido fora dos palcos e um furacão dentro deles. Me parece que havia algum processo psicológico que o devastava e que seria um prato cheio para oportunistas. Será que o preconceito racial jamais o traumatizou? Será que o estereótipo do formato de um nariz de negro nunca foi motivo de piada ou até mesmo desconforto para as pessoas que sofrem com o escárnio tão discreto do povo branco? Será que, principalmente na América do Norte, o estigma de que pretos eram pretos e inferiores, pobres e não-dignos e que brancos sempre estampam melhor o rosto de uma nação desenvolvida, nunca existiu? Será que o cinema, a arte e a música nunca contribuíram para reforçar esta idéia?

Não parecia mais humano

Imagine o que um produtor pode fazer com uma pessoa que ele vê como produto. Imagine quão mais fácil manipular que alguém foi conduzido à fama sob porrada. Creio que há uma grande hipocrisia no mundo todo, ao julgar um bobalhão em sua vida pessoal, mas um homem espetacular em sua arte. Ouvi hoje pela manhã no rádio, um comentarista destes que fecha os vidros do seu importado filmado e não tem sensibilidade alguma, talvez porque conviva apenas com seus próprios odores, dizer que ‘Michael frustra seus fãs mais uma vez’, com relação ao show que faria no próximo mês, em Los Angeles, cuja lotação parece já estar esgotada.

O homem não pode nem morrer em paz, que vão querer processá-lo depois de morto para que devolva o valor dos ingressos. Ele não teve consideração com os fãs, como sempre, e morreu assim, descaradamente. Sinceramente, o público aclama e o público mata, com o aval inescrupuloso da imprensa tapada. Mas muitas rádios estão se enchendo de grana e disponibilizando as canções dele em seus sites. Simbólica homenagem capitalista. ‘Espero que um dia ele encontre uma luz que o tire da `Terra do nunca´ e o traga de volta à realidade dos homens’, foi o que disse Adalberto Vittori, colunista da seção de música do Paulínia News, e muito mais dizem por aí certos bobocas. Se ele não conseguiu lidar com a pressão que a mídia impõe é porque a mídia está sem princípios.

Sinceramente espero que ele permaneça na Terra do Nunca, pois a realidade dos homens é muito, mas muito sádica e ignorante. Eu, sem dúvida, preferia o Michael negro, com sua voz absurda, sua dança fantástica, suas causas humanitárias e só. Ele poderia ser um Zé da Esquina. É bem verdade que ele já não parecia mais humano. E nós? O quanto temos sido, mesmo preservando nossos trejeitos? Mas nós o elegemos, abusamos de sua arte e o devolvemos à condenação sem ter chegado perto do homem. Compramos 750 milhões de discos, o maior número da história e acho eu que, se Deus, ou o Espírito Santo, ou Jesus, Alá, Buda, Maomé ou seja lá quem for, falava por meio dele, já que a cultura atribui tal dom ao artista, ‘acho’ que muita gente realmente não o escutou.

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Licenciada em Letras e estudante de pós-graduação em Gestão da Comunicação, São Paulo, SP