Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O filósofo que observou a mídia

Vilem Flusser, filósofo brasileiro nascido na antiga Checoslováquia e que escrevia em alemão, costumava dizer que o esforço fundamental do ser humano, em qualquer cultura, consiste em mover-se do mundo das aparências para o mundo da realidade. Flusser foi ignorado pela mídia cultural e desprezado pela universidade enquanto viveu. Só virou filósofo cult depois de morto porque sua obra despertou grande interesse na Europa.

Foram muitas as lições com que impregnou as mentes de jovens candidatos ao título de jornalista ou de publicitário, no começo dos anos 1970, quando discorria sobre os meios de comunicação, a cultura de massa, a transnacionalidade, e diagnosticava o fenômeno da substituição crescente da atitude pelo gesto. Quem pôde folhear velhos cadernos de anotações e lembrar os chás em que ele revisava permanentemente sua obra, tem hoje uma amostra clara do que o filósofo vislumbrava há mais de trinta anos.

Para não cair na tentação de viajar no amplo espectro dos pensamentos de Flusser, convém situar estas observações naquilo que ele dizia sobre o processo que chamamos civilizatório e o papel da mídia. Ele dizia que, no esforço de mover-se do mundo das aparências para o mundo da realidade, a evolução do ser humano encontra três tipos básicos de objeções: o ceticismo, que nega a capacidade do espírito de atravessar as aparências; o niilismo, que nega a existência de uma realidade além da aparência; e o misticismo, que constrói realidades aparentes, negando a transcendência da realidade e impossibilitando ao espírito comunicar-se para além dos limites da aparência.

Um exercício ‘filosófico’

Flusser registrou essas reflexões em seu livro Língua e Realidade, no qual também intuía que uma nova linguagem, unificadora das múltiplas formas e níveis de aproximação da realidade, poderia significar tão diretamente a realidade que seria também um contêiner fechado no qual não caberiam descrições do mundo aparente. Mas foi nas entusiasmadas aulas da FAAP, em São Paulo, e nos chás para pequenos grupos de embasbacados discípulos que ele fez as observações que hoje nos ajudam a entender a mídia.

Em primeiro lugar, ele dizia que os jornais diários poderiam até colocar como meta expressar a realidade e, com isso, cumprir um papel relevante no processo civilizatório, mas sempre cairiam na tentação de construir seus labirintos no universo da aparência. A televisão, para ele, era o instrumento mais acabado da dissimulação, por sua capacidade de mostrar imagens da realidade e convencer o telespectador de que aquilo era apenas uma aparência, ou fracionar de tal maneira o discurso paralelo à imagem que a realidade retrocedesse em aparência.

Em certa ocasião, quando explicava a diferença entre gesto e atitude, Flusser chutou a mesa para representar o significado da atitude – e quebrou seu próprio cachimbo. O comentário que se seguiu foi um retrato do que viria a ser a imprensa do nosso tempo. Ele disse algo como: ‘O gesto tem um efeito enorme na platéia, você pode construir uma carreira e até uma biografia com gestos, mas não terá alcançado a realidade. A atitude contém mais riscos, no mínimo pode quebrar nosso cachimbo, mas é a expressão que nos aproxima da realidade’.

A imprensa é, hoje, majoritariamente, um espaço nobre dedicado ao mundo das aparências. Colocada a serviço de mudanças pontuais que forjam uma ilusão de movimento evolutivo, transformou-se em veículo das objeções que contribuem para manter o espírito humano preso às aparências. Não é necessário um grande esforço de observação para se constatar em que pacote de objeções cada veículo da mídia melhor se enquadra. Pode-se dizer, por exemplo, como exercício ‘filosófico’, que a Rede Globo é essencialmente niilista, enquanto a Rede Record é essencialmente mistificadora; que a Folha de S.Paulo tem como característica mais evidente o ceticismo, enquanto o Estadão rejeita qualquer hipótese de realidade que se estenda além de suas convicções, o que se enquadra nas objeções místicas e no ceticismo.

A realidade encoberta

Toda a mídia, claramente, valoriza o gesto sobre a atitude. Não têm significado mais apropriado a mania de transformar declarações em manchetes, o vício de encher as páginas com frases e deixar para segundo plano a descrição e a narração. A investigação (teoricamente um instrumento para a perfuração da aparência em busca da realidade) é valor cada vez mais raro.

Por fim, não é demais citar Vilem Flusser na observação magistral sobre a conversação (que em nossa sociedade se dá, em termos de massa, por meio da mídia): ‘A grande conversação que é a sociedade ocidental gira em círculos cada vez mais amplos em torno de umas poucas situações primordiais (…)’ e esse movimento circular revela e encobre a realidade. O poder da mídia estaria, então, em definir quando, nessa conversação, se expande a percepção para fora da aparência. Mas tudo indica que ela, a mídia, não está interessada em romper esse círculo.

Vilem Flusser nasceu em Praga, em dia 12 de maio de 1920. Fugindo do nazismo, passou rapidamente pela Inglaterra e se fixou no Brasil, onde deu aula na USP, na FAAP e no ITA. No fim da vida, foi viver na França e só voltou a Praga para dar uma conferência, em 20 de novembro de 2001. Morreu no dia seguinte, num acidente de carro, quando voltava de um piquenique com sua mulher. Sua obra merece a atenção dos comunicadores.

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Jornalista