Saturday, 02 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O ‘furo’ do ano

No dia 4 de março de 2005, recebi a missão de descobrir quem era a jovem brasiliense da matéria abaixo (‘Piercing na língua causa infecção cerebral em brasiliense’), em destaque no site da faculdade Iesb, de Brasília. Uma história única, como ressalta a chamada da página (‘Primeiro caso no Brasil de infecção no cérebro provocado por piercing de língua é registrado no Distrito Federal’), feita por estudantes de Jornalismo da instituição, com a supervisão de professores – muitos, jornalistas. Pois bem, fui correr atrás do ‘furo’.

Telefonei para o hospital citado – Unimed. No Distrito Federal, há três Unimed, mas a matéria não cita em qual delas estaria internada a paciente. Depois de muitos telefonemas, me deram o número da empresa de assessoria que presta serviço à Unimed em Brasília, Luan Comunicação. A dona da empresa me atendeu educadamente, ouviu toda a história, também acessou o site da faculdade e prometeu me dar um retorno o mais rápido possível. Em meia hora, ela retornou. Informou que não havia registro do caso em nenhuma das três unidades da Unimed do DF nem tais médicos citados na matéria (o neurocirurgião Marcelo Freitas e o dermatologista Edil Ramos) atendendo nos hospitais da rede.

Não satisfeito – sempre desconfio de assessorias de imprensa – pedi para entrevistar algum diretor da Unimed em Brasília. A assessora me passou o telefone do médico David Urbagnez, chefe do Controle Hospitalar e de Infecção da Unimed no DF. O médico me atendeu e explicou que havia pedido a relação de pacientes internados nas UTIs da Unimed. Explicou que por se tratar de um caso raro, se fosse verdade, seria informado da paciente no dia que ela desse entrada em qualquer unidade da rede. Também tinha como obrigação notificar a Secretaria de Saúde do DF sobre o caso. E prometeu fazer uma investigação mais detalhada do caso, mesmo depois de garantir que ele não existia, pelo menos nos hospitais da Unimed no DF.

Ah, bom…

Desconfiado – da assessora, dos diretores do hospital e da própria matéria –, entrei em contato com o Conselho Regional de Medicina e o Conselho Federal de Medicina. Perguntei sobre os médicos citados na tal matéria – queria saber os telefones e endereços dos consultórios desses doutores para, enfim, descobrir toda a verdade. Mas depois de alguns minutos, os atendentes do setor de pesquisa dos dois conselhos me informaram que não havia especialistas em neurocirurgia e dermatologia trabalhando no DF com tais nomes. Nem mesmo médicos com aqueles nomes atuando em qualquer hospital ou clínica do DF.

Pronto, estava na encruzilhada: ou o caso não havia sido registrado, ou ele havia ocorrido em outro lugar, ou simplesmente não existia.

Para tirar a dúvida, tentei, por uma semana, falar com a autora da matéria. O número do telefone celular, que eu havia conseguido com colegas da estudante, não atendia. Até hoje, quando a própria Michelle Dias Piloto me ligou. A universitária tomou a atitude após uma colega entrar em contato com ela, sabendo que eu estava tentando apurar a matéria e que o departamento jurídico da Unimed estudava uma ação por danos morais contra a estudante.

Michelle alegou que a história havia sido contado a ela por uma tia que mora em Paracatu (MG), e que a tal paciente era sua prima. ‘Uma louca, meio dark, que mora em Paracatu. Ela não fala coisa com coisa’, descreveu Michelle. Pedi os telefones e endereços da tal tia e da tal prima. Ela não deu. Em seguida, afirmou que o hospital em que a prima havia sido internado não era a Unimed. ‘Minha tia inventou o nome porque o outro hospital estava abafando o caso’, explicou. E para terminar, a garota, estudante do sexto período de Jornalismo, contou que os nomes dos médicos citados na matéria eram ‘fictícios’. ‘Você sabe como é. A gente escreve a matéria, o professor mexe, aí vem um editor, que também é aluno, e mexe mais ainda. Eles gostam de matéria que chame atenção’, afirmou.

Perguntei quem teve a idéia de inventar os nomes. ‘Fui eu’, respondeu.

Ah, bom. Mas não entendi nada.

[Obs.: A matéria está disponível no site (www.iesb.br) até este momento: 17h10 de 4/3/2005]

A matéria inventada

Saúde

Piercing na língua causa infecção cerebral em brasiliense

Primeiro caso no Brasil de infecção no cérebro provocado por piercing de língua é registrado no Distrito Federal

Michelle Dias Piloto

O primeiro caso de infecção no cérebro provocada por um piercing de língua foi registrado no Distrito Federal em 25 de fevereiro. É o primeiro no Brasil e o segundo no mundo, segundo o neurocirurgião Marcelo Freitas, do Hospital Unimed, onde está internada a paciente de 23 anos. A equipe médica informou que a infecção está sob controle, a paciente está consciente e continua em observação, mas só terá alta na próxima sexta-feira, dia 11.

A jovem sentia fortes dores de cabeça desde que colocou o piercing, há dois anos, segundo sua mãe, Maria do Carmo de Souza. Um desmaio foi o que a levou ao hospital, onde os médicos detectaram a infecção. Bactérias típicas da boca chegaram à corrente sanguínea e alcançaram o cérebro. A paciente teve que retirar o piercing, foi submetida a cirurgia e ficou em coma induzido por quatro dias. ‘Foi o primeiro piercing que minha filha põs, nunca pensei que o adereço pudesse causar um dano tão grande à saúde’, conta Maria do Carmo.

O dermatologista Edil Ramos, da equipe que atende a jovem, lembra que a língua e os genitais são as piores escolhas de quem quer usar o adereço. O especialista recebe queixas freqüentes de dentes deslocados pelo contato com a peça e gengivas irritadas. Por serem regiões úmidas e muito vascularizadas, são vulneráveis a infecções. Em sua opinião, o melhor local para colocar o piercing é o lóbulo da orelha.

Segundo a dentista Lidiane Britto, os problemas mais comuns na língua são a halitose, a periodontite, dentes quebrados, dificuldade de fala e lesões no palato por atrito. Mas também existe a possibilidade de transmissão de viroses, como hepatite e AIDS. O câncer bucal está relacionado a muitos fatores, como o fumo e o álcool, entre outros. ‘Para quem fuma, bebe e usa piercing, as chances de câncer aumentam’, adverte a odontologista.

Apesar de tantos riscos, a adesão ao piercing de língua cresce entre os jovens. Em São Paulo, uma lei estadual (lei nº 9.828/1997) proíbe a perfuração em menores de idade mesmo com a autorização dos pais. Em Brasília, não há regulamentação sobre o assunto. Para a adolescente Larissa Guedes, de 17 anos, foi a melhor experiência de sua vida. A mãe foi com ela e as duas colocaram piercing no umbigo. Ao contrário de Larissa, Débora Fontes, de 22 anos, foi expulsa de casa por colocar cinco piercings.

A psicanalista Caroline Macedo relata que há casos em que adolescentes colocam as peças para chamar a atenção dos adultos. Outros adeptos vivem um processo de erotização da dor semelhante ao experimentado pelos sadomasoquistas. ‘A dor é grande, mas para eles o prazer da perfuração é quase sexual’, diz. Essa teoria não explica a massificação do uso do piercing que, segundo a psicanalista, faz parte de um conjunto de tendências estéticas que envolvem a manipulação do corpo em busca da beleza, como é o caso das lipoaspirações e das próteses de silicone.

A nota oficial da faculdade

Aviso aos leitores

Nota de esclarecimento

No dia 16 de março, diante da quebra de conceitos básicos da ética jornalística, a Coordenação de Comunicação Social do IESB foi obrigada a retirar do site do Jornal Laboratório Na Prática a reportagem intitulada ‘Piercing na língua causa infecção cerebral em brasiliense’. A referida matéria tratava da suposta existência de um caso raro de infecção cerebral registrado no Distrito Federal. Uma estudante não identificada teria sido vítima de uma contaminação bacteriológica decorrente da aplicação de um piercing na língua.

A aluna responsável pela apuração e construção do texto jornalístico em questão admitiu ter inventado as informações contidas na matéria. No texto, os nomes dos médicos e as declarações imputadas a eles são fictícios, assim como a referência ao hospital onde a estudante contaminada estaria internada. Feita uma apuração preliminar dos fatos, descobriu-se que as inverdades inseridas na matéria foram ditadas à repórter por um parente, mas nem isso pôde ser inteiramente confirmado. A aluna, ainda assim, não fez nenhuma checagem das informações, nem as repassou, previamente, aos professores e ao editor da reportagem.

Uma comissão disciplinar irá avaliar e decidir as medidas a serem tomadas com relação à aluna envolvida nesta grave fraude jornalística e acadêmica. A Coordenação de Comunicação Social irá analisar o caso para tomar providências que possam, no futuro, impedir novas ocorrências desta natureza. Espera, no entanto, que as conseqüências deste fato lamentável sirvam de exemplo, em todos os sentidos, para os alunos do curso de Jornalismo.

Só nos resta pedir, formalmente, desculpas à UNIMED por ter tido uma de suas unidades hospitalares citadas indevidamente na matéria.

Coordenação de Comunicação Social Habilitação Jornalismo

(Publicado em 17/3/2005)

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Repórter de Cidades do Correio Braziliense