A reabilitação do Lamarca despertou pouco interessa à imprensa. Na TV, especialmente na Rede Globo, o caso foi narrado como algo absolutamente trivial. Tudo se passou como se Lamarca fosse mais uma vítima de bala perdida. Uma vítima cuja história não merecesse ser contada. Mesmo quando a imprensa conta a história dele, omite a história das outras vítimas e a dos torturadores.
Não existe dúvida de que a anistia beneficiou – inclusive e principalmente, os torturadores. Formalmente eles não podem ser julgados pelos crimes de tortura e pelas execuções que praticaram. Qualquer norma legal que for aprovada para possibilitar sua punição seria inconstitucional, pois a CF88 proíbe expressamente a retroatividade da Lei Penal mais severa.
A anistia, entretanto, não pode ser um argumento para permitir a supressão da História do país. Os documentos que estão sob custódia de militares e que relatam as execuções e torturas já deveriam ter sido digitalizados e publicados na internet (inclusive, os referentes aos crimes dos militantes de esquerda), de maneira a que os cidadãos pudessem pesquisar e conhecer a verdadeira a história do Brasil.
Ideologia intolerante
As pessoas que defendem a tese de que a esquerda não aceita a divulgação de todos os documentos, pois pretende preservar a imagem de terroristas conhecidos e que ocupam ou ocuparam postos no governo Lula, desvia a população da verdade. A falácia de seu argumento é evidente. Todos os documentos são conservados por militares e, portanto, eles não precisam do aval da esquerda para divulgar o conteúdo de peças que já fizeram parte de inquéritos e processos movidos contra ex-guerrilheiros.
Na verdade, os militares que conservam os arquivos da ditadura não estão obrigados a entregar os documentos para uma prévia seleção que beneficiaria os supostos terroristas. Podem divulgar tudo a qualquer momento. Não fazem isto porque pretendem preservar a imagem de oficiais da ativa e os militares reformados.
Os defensores do golpe de 1964 dizem sempre que os militares eram nacionalistas, que lutavam contra comunistas. Dizem, também, que a ideologia marxista-leninista é nociva aos interesses nacionais. Entretanto, sob o ponto de vista estritamente filosófico, o nacionalismo de direita também é uma ideologia. Uma ideologia intolerante porque procura a destruição de outras ideologias. Todos os nacionalismos modernos (inclusive o nacionalismo brasileiro, forjado na Escola Superior de Guerra) são construções intelectuais desprovidas de base científica e histórica (ver aqui).
Direito de matar e torturar
É evidente, portanto, que os defensores do nacionalismo de direita imposto ao Brasil a partir de 1964 partem do pressuposto de que sua ideologia devia prevalecer. Sob seus argumentos podemos identificar um componente básico da intolerância política de direita: nossa ideologia é melhor porque é superior moral, ética ou religiosamente. Assim, as semelhanças entre o nacionalismo de direita brasileiro e o nazismo alemão são evidentes. Contudo, como somos todos mestiços, o conceito de ‘pureza racial’ não podia ser adotado no Brasil. Portanto, os ideólogos do nacionalismo de direita descartaram o viés biológico de sua versão do nazismo, não sem preservar sua brutalidade e intolerância em relação às ideologias de esquerda.
A superioridade moral do nacionalismo de direita brasileiro – que dominou as décadas de 1960/1970 – é uma mentira. Os militares e seus amigos enriqueceram às custas do erário público, usaram da violência para calar o movimento operário, rebaixando a participação dos salários no PIB, se mantiveram no poder contra a vontade de uma parcela da população e mediante a censura da imprensa. A superioridade religiosa dos integrantes e defensores do regime totalitário também é uma falácia. Eles se diziam cristãos e, no entanto, perseguiam, espancavam e matavam seus concidadãos. Não há uma só palavra no Novo Testamento justificando o uso da violência.
A força bruta foi o único argumento da ditadura (na verdade, ainda é o principal argumento de seus defensores). Segundo os militares e seus lustra-botas civis, os golpistas tinham o direito de matar e torturar porque estavam em guerra com os comunistas. Não cometeram crimes porque a venceram. Os militantes de esquerda deviam ser torturados e mortos porque estavam desarmados ou mal treinados e foram vencidos.
Os arquivos da ditadura
Contudo, se os militantes de esquerda eram criminosos e deviam ser tratados como criminosos, os militares tinham a obrigação de resguardar sua integridade física e moral na forma da legislação da época, o que não ocorreu. O Brasil era signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Declaração Universal dos Direitos do Homem, diplomas que proíbem expressamente a tortura e a execução de prisioneiros.
Ainda que encaremos a atuação da repressão sob a ótica estritamente militar, a justificativa da tortura e da execução de prisioneiros é inexistente. O uso da tortura ou da execução sumária são proibidos em tempos de guerra. A atuação das forças armadas brasileiras no período 1964/1988 foi ilegal porque violou a Convenção de Genebra (diploma aplicável em tempo de guerra externa ou civil).
Antes que me acusem de petista, digo aqui que não votei no Lula. Muito pelo contrário, fiz campanha do voto nulo, dentre outros motivos porque Lula se comprometeu com o sigilo dos arquivos da ditadura. Também não sou comunista. Nasci em 1964 e, atualmente, até que estou satisfeito com o capitalismo (tanto que quero até minha história, algo que os militares se recusam a me entregar, certamente porque são anarquistas).
Os fundamentos do poder
As viúvas da ditadura não gostam deste termo. Insistem que de 1964/1988 não houve uma ‘ditadura’, mas um ‘regime militar’ ou um ‘regime autoritário’. Sustentam, às vezes, que as crianças estão sofrendo lavagem cerebral porque os professores comunistas lhes ensinam que houve uma ‘ditadura’. Entretanto, quem estudou em escolas públicas no início da década de 1970 (este é meu caso) era obrigado a decorar as biografias do Costa e Silva, do Médici e do Jarbas Passarinho como se eles fossem grandes nacionalistas, e não golpistas truculentos. Minha geração sofreu a mais descarada, desavergonhada e estúpida lavagem cerebral sob a supervisão de um ministro da Educação militar.
Aqueles que ainda vêm a público defender o golpe de Estado que ocorreu em 1964, continuam sendo o que sempre foram, ou seja, militares brutais e dogmáticos. Mesmo após vinte anos de democracia, ainda se julgam ‘donos da verdade’, a ponto de acreditarem que ficariam impunes. Mas ninguém pode rasgar uma Constituição, cuspir na democracia, ignorar a vontade popular, torturar e matar seus concidadãos e ainda assim reescrever a história do país.
O autoritarismo desses pulhas não tem fim. Ficam frustrados porque não conseguem mais impor sua maneira de pensar à força. Acusam os interlocutores que defendem a legalidade e a democracia de intransigentes, como se o golpe de Estado que realizaram e ainda defendem não fosse uma intransigência ainda maior. O poder só tem três fundamentos: a) divino; b) força bruta; c) voto popular.
Liberdade para odiar
O poder divino é o fundamento das monarquias (vivemos numa República, portanto não perderei tempo cuidando desse tema). A força bruta é o fundamento das ditaduras. O voto é o fundamento das democracias.
Nas democracias a oposição é admitida, pois a disputa pacífica e eleitoral é a única maneira de chegar ao poder e se manter nele. Nas ditaduras, a oposição é proibida, pois quem está no poder o conseguiu e o mantém pela força das armas. Enquanto na democracia há possibilidade de negociação entre situação e oposição, na ditadura somente há repressão. A corrupção na democracia é um desvio que pode ser investigado e punido. Na ditadura, a corrupção é a maneira pela qual o dono das armas assegura o apoio de uma parte da população. Como dependem da corrupção, os ditadores usam a força para calar a imprensa, algo que não pode ocorrer na democracia.
Tudo bem pesado, os que ainda defendem o golpe de 1964 deveriam agradecer o fato de viverem numa democracia. Afinal, somente uma democracia proporciona ao cidadão liberdade até para odiar, para fomentar a discórdia civil, pregar idéias racistas e conspirar para a destruição do regime político. Se fizessem campanha aberta de um golpe de Estado numa ditadura, os golpistas de 1964 seriam chamados de dissidentes, terroristas, guerrilheiros e receberiam o tratamento exemplar que certamente dariam aos defensores da democracia (se pudessem, é claro).
Violaram a hierarquia militar
Há uma perfeita simetria entre os argumentos dos defensores do golpe de 1964 e os que foram usados à época. Mas eles nunca admitem que em 1964 ocorreu um golpe de Estado. Isto nos obriga a discutir e rediscutir várias vezes o passado.
João Goulart foi eleito vice-presidente pelo voto popular. Em razão da renúncia de Jânio Quadros, deveria ser empossado no cargo de presidente. Na época, Goulart estava na China e a resistência à sua posse como presidente foi muito grande. A solução para o impasse foi a aprovação de uma mudança na forma de governo. Com a adoção do parlamentarismo, Goulart se tornou apenas chefe de Estado e o chefe do governo passou a ser o primeiro-ministro eleito pelo Congresso Nacional. Em razão de ser desprovido de substância política e histórica, o parlamentarismo rapidamente se tornou frágil e o presidencialismo foi restabelecido. Assim, o legítimo vice-presidente eleito pelo povo foi empossado no cargo de presidente da República.
O art. 87 da Constituição Federal de 1946 (que estava em vigor quando ocorreu o golpe de 1964), prescrevia que o presidente da República era o comandante-em-chefe das Forças Armadas. Inconformados com o resultado das urnas, desrespeitando a vontade popular e violando a hierarquia militar, os militares depuseram um legítimo presidente, empossado na forma da CF/1946. Portanto, em 1964 ocorreu um verdadeiro golpe de Estado. Mas a história não seria contada assim.
Risco de vida
A ditadura vitoriosa tratou de se legitimar dizendo que havia realizado a vontade popular. Tratou de divulgar a versão de que Goulart não tinha legitimidade política para governar e, portanto, sua deposição não teria sido um golpe de Estado (foi esta história que aprendi na infância, quando era submetido à lavagem cerebral organizada pelos militares). Com o fim da ditadura, essa versão foi desmentida e os fatos contados tal como ocorreram. Mas os golpistas e seus simpatizantes pretendem legitimar a revisão histórica (para, eventualmente, possibilitar de um novo golpe).
Os defensores da ditadura racionalizam sobre fatos incontroversos e historicamente irrefutáveis. Sua racionalização é perfeitamente compreensível. Afinal, como em 1964 houve um golpe de Estado, se os militares responsáveis fossem julgados com base na legislação penal militar, não haveria a menor possibilidade de serem inocentados. Eles violaram a hierarquia e seriam considerados traidores (em tempo de guerra poderiam até ser fuzilados).
Em razão do conteúdo do art. 87, da CF/46 e da legislação internacional vigente à época (inclusive a Convenção de Genebra), Carlos Lamarca só pode ser considerado um herói. Ao contrário de seus colegas, Lamarca não desonrou sua farda, nem manchou o galardão do Exército. Ele não aderiu ao golpe e, portanto, não violou a hierarquia militar. Ao contrário dos outros oficiais, Lamarca correu risco de vida para preservar a hierarquia e lutou contra os golpistas.
Vítimas e descendentes
Quem ainda diz que, a partir de 1964, houve um regime militar, pretende glorificar o passado dos torturadores e impor a sua versão da história do período. A versão mais adequada, que foi produzida por dezenas de historiadores (alguns dos quais ex-torturados), diz exatamente o contrário – ou seja, que de 1964 a 1988 vivemos sob uma brutal, cruel e desumana ditadura que não respeitava nem as convenções internacionais, nem a legislação que estava em vigor.
Vivemos atualmente numa democracia. Portanto, até os amigos dos torturadores têm o direito de tentar glorificar o passado deles. Mas isto não nos impede de querer conhecer melhor o nosso. Esta controvérsia poderia ser resolvida com a abertura dos arquivos da ditadura, mas é claro que os defensores dos torturadores preferem a preservação do sigilo.
Muito tem se dito e se escrito sobre a concessão de indenização às vítimas da ditadura. A única maneira de passar a limpo a história, de superar o trauma do regime militar e resolver a querela das vítimas é o Estado brasileiro assumir de vez sua responsabilidade para com as vítimas do regime.
Os arquivos do regime militar estão de posse de órgãos públicos ou de agentes públicos. Assim, é inegável que o Estado sempre teve e ainda tem todas as condições de levantar exatamente quantos e quais foram as vítimas de abuso policial e militar. Os dados levantados dos arquivos militares e policiais podem ser perfeitamente cruzados com outros bancos de dados estatais, como, por exemplo, as listas de eleitores, cadastro de contribuinte e registros de identidade, de maneira que o Estado tem condições de localizar as vítimas e seus descendentes.
Um outro plebiscito
A questão não é saber se todas as vítimas têm direito ao mesmo tratamento que Lamarca, se é possível localizá-las e a seus descendentes, mas por que o Estado ainda não fez isto. E nem se diga que não há permissivo constitucional para que isto ocorra.
O Estado é responsável pelos atos praticados pelos seus servidores. Como há uma lei determinando as indenizações, a responsabilidade pode ser reconhecida mediante ato administrativo, desde que respeitados os princípios da impessoalidade e moralidade aos quais a administração pública federal está sujeita por força de dispositivo constitucional. Portanto, desde logo, a União federal estaria obrigada a tratar todas as vítimas da mesma maneira que tratou Carlos Lamarca. Se não fez isto, foi porque faltou caráter, coragem ou vontade de superar o impasse criado por alguns setores da sociedade.
A mídia ainda não percebeu que esta história de obrigar o cidadão a provar na justiça que foi vítima é um absurdo. Os agentes do Estado brasileiro não respeitaram a legislação e o devido processo legal quando perseguiram, torturaram e mataram os opositores e destruíram suas famílias. Assim, este mesmo Estado não pode agora submeter as vítimas ao devido processo que lhes negou no passado.
Não bastasse tudo isto, as brutalidades do regime militar eram ilegais mesmo para os padrões jurídicos da época. Assim, é inegável que o Estado brasileiro é culpado pelos abusos cometidos em seu nome, mesmo que os servidores que cometeram tais abusos tenham sido anistiados. A anistia conferida aos criminosos políticos não alcança o próprio Estado porque este, obviamente, é distinto daqueles que o fazem funcionar.
Além de localizar e indenizar as vítimas, o Estado brasileiro deveria pedir desculpas formalmente pelos abusos que seus agentes cometerem no passado. Cada uma das vítimas do regime (perseguidos e familiares) ajudou e ainda ajuda a sustentar com seus impostos o Estado, o mesmo Estado que os maltratou e que deve agora tratá-los com alguma decência. Nunca é tarde para resgatar a dignidade.
Há bem pouco tempo foi realizado um plebiscito para verificar se a produção de armas deveria ou não ser proibida no país. Por que não se pergunta ao eleitor se o Estado deve ou não localizar e indenizar todas as vítimas do regime militar, independentemente de processo judicial? Esta é uma questão que os jornalistas deveriam responder.
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Advogado, Osasco, SP