Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O impeachment como resultado da exclusão informativa

O presente artigo tem como tema o papel desempenhado pelos meios de comunicação, notadamente a imprensa, no processo que culminou com a destituição da presidente Dilma Rousseff do cargo, em agosto de 2016. O referido processo, admitido inicialmente na Câmara, em rito previsto pela Constituição e regulamentado pelo Supremo Tribunal Federal, em abril daquele ano, foi apresentado pelos então oposicionistas como impeachment, caso raro na República brasileira e inédito, até então, no chamado período da Nova República.

Os governistas à época interpretaram o pedido de impedimento da presidenta eleita como uma manobra política e chamaram o episódio de golpe parlamentar, golpe branco ou, simplesmente, golpe. A imprensa brasileira, por sua vez, de forma quase unânime, alinhou-se à versão de que se tratava de um impeachment, excluindo, quase que completamente, a percepção de que se estava diante de um golpe, e restringindo, assim, o direito do eleitor à pluralidade de temas e à diversidade de vozes, como convém ao jornalismo e ao Estado democrático de direito.

É neste contexto de exclusão comunicacional do país – de uma esfera pública atrofiada em sua capacidade de problematizar questões, de acolher discursos, de validar argumentos e de construir consensos que poderiam vir a bater à porta de palácios, parlamentos e tribunais (HABERMAS, 2003) – onde se encontra o objeto de estudo aqui abraçado. Trata-se das representações que fazem diferentes vozes – cientistas políticos, cientistas sociais, juristas, economistas, jornalistas etc. do Brasil e do exterior -sobre o papel da imprensa no episódio da destituição.

Referidas vozes, a despeito do reconhecimento nacional e internacional de seus estudos e de suas práticas, não encontraram a acolhida da imprensa brasileira para os seus discursos e para o bom debate. Manifestaram-se, oportunamente, em palestras, artigos e livros, levados ao público em tom de denúncia, desde os primeiros movimentos pró-impeachment que, se não compensam os possíveis estragos políticos – e historiográficos – da exclusão comunicacional, buscam um lugar para a destituição da presidenta, na acepção de golpe, perante a esfera pública e a história.

Partindo da premissa de que o jornalismo deve abordar os fatos e temas de interesse público de forma ampla, profunda e isenta, de forma a contribuir com a inclusão comunicacional, pergunta-se àquelas vozes dissonantes que papel teve a imprensa na destituição. Intui-se, como resposta, que a imprensa teve importante papel como coadjuvante da destituição e que se deslocou do âmbito do jornalismo para o da publicidade, do interesse público para o do interesse privado, na criação de opinião pública favorável ao impeachment.

Exclusão comunicacional

A exclusão comunicacional é um conceito que se propõe aqui, na tentativa de facilitar o entendimento da participação da imprensa relativa à destituição da presidente Dilma Rousseff. É um conceito em formação, mas não exatamente novo, dado que seus possíveis significados há muito aparecem em expressões utilizadas por autores dedicados a analisar a negação total ou parcial do direito à comunicação – entenda-se como as liberdades de informar e de ser informado, de se expressar e de dialogar – a que são submetidos indivíduos e grupos.

Neste sentido, contribuem, entre outros autores, Habermas (2003); Maia e Castro (2006); Gomes e Maia (2008); Kucinski e Lima (2009); Marques e Costa (2009); Marques e Matos (2011); Lima (2012); Lima, Guimarães e Amorim (2014); e Perdigão (2016), ao defender que aquelas liberdades são uma condição ao Estado democrático; que, uma vez asseguradas, incluem o cidadão como sujeito da comunicação e capaz de se auto inserir como protagonista nos processos econômicos, políticos, sociais e culturais que impulsionam para cima o desenvolvimento humano.

Perdigão (2016) acrescenta que a exclusão comunicacional gera outras formas de exclusão. O autor defende que, do ponto de vista político, o comunicacionalmente excluído é quem não participa da esfera pública, onde as questões do mundo da vida são problematizadas, onde se constroem, por via da validação dialógica de argumentos, os consensos que apontam possíveis soluções, é quem não se identifica como ator político, não estabelece relação de pertencimento com a política, tampouco reconhece que a sua alienação, deliberada ou inconsciente, também é da política.

Ainda conforme Perdigão (2016), sendo a exclusão comunicacional entendida como uma liberdade a menos, um direito a menos, uma capacidade a menos, um poder a menos para muitos, é factível pensar que o seu contrário, a inclusão comunicacional, estaria reservada a uns poucos. A exclusão comunicacional seria um processo de transferência de poder que ampliaria os poderes de informar e de ser informado, de se expressar e de dialogar para os que já concentram ativos de poder, como o capital e os meios de produção.

Essa pode ser entendida como uma questão de fundo. A destituição da presidente Dilma Rousseff, como se analisará a seguir, foi perpetrada no Brasil dos comunicacionalmente excluídos da esfera pública, onde uma elite de super privilegiados da comunicação domina os meios de produção e de circulação da opinião pública; um território onde os temas em debate são poucos, onde as vozes são as mesmas, onde as representações da realidade são as da ótica e do interesse dos hegemônicos, onde o interesse público é retórica e a democracia é simulacro.

Meios de comunicação no Brasil e a destituição

Na perspectiva da destituição presidencial, tem-se, em Guimarães (2016), que o sistema de comunicação brasileiro é uma ferramenta da classe hegemônica “para construir o imaginário do povo, para manipular as informações e para justificar o sistema econômico e social vigente e desmoralizar aqueles que lutam por mais igualdade, mais liberdade, mais fraternidade e pelos direitos das minorias, em um contexto de desenvolvimento” (p. 382).

Para o autor, os meios de comunicação aportaram “ajuda providencial” para “derrubar ou imobilizar a presidenta e, assim, anular a vontade da maioria do povo brasileiro” (p. 379). Borón (2016) classifica os principais meios de comunicação do Brasil como “tercer protagonista” [os outros dois seriam o parlamento e o Judiciário] (…), “cuya vocación golpista e ethos profundamente reaccionario son amplamente conocidos porque han militado desde siempre en contra de qualquier proyecto de cambio en uno de los países más injustos del planeta” (p.114).

Além de serem excludentes em relação a quem fala, ao que se fala e ao como se fala na televisão; de manipularem os conteúdos segundo os interesses políticos e econômicos privados, em detrimento do interesse coletivo; e de servirem a projetos antidemocráticos e injustos, na análise de Merlin (2016), “os meios de comunicação corporativos assumem um papel crucial: configuram a realidade, operam sobre as subjetividades, manipulam significações: definitivamente, colonizam a opinião pública” (p. 412).

Na perspectiva da destituição, a autora afirma que “isso se voltou à produção de desprestígio da direção do PT, (…), para desestabilizar a presidenta Dilma Rousseff, apesar de sua legitimidade por ter sido eleita democraticamente”, conseguindo impulsionar um processo de impeachment. (p. 412-413). A autora chama atenção para outra característica dos meios no Brasil, a da concentração da propriedade, no que é seguida nas análises mais recentes, como em Peixoto (2016).

No Brasil, não há, rigorosamente, mercado de informações. Há um peculiar e pré-moderno sistema oligárquico-familiar, que veicula e advoga um ideário a um só tempo escravocrata e ultraliberal, e que se constituiu no rastro da última ditadura, como é o caso da Rede Globo e da Rede Brasil Sul, paradigmaticamente. São sete famílias que comandam as pautas, que igualam manchetes, que detêm televisões, jornais, rádios e agências de notícias que não respondem a ninguém, que mal tributam (quando não sonegam) e que constituíram um véu de ignorância e ódio racista contra o que é democrático, popular e institucional (PEIXOTO, 2016, p. 30).

A este respeito, amplia Miranda (2016):

Hoje, é público e notório, aqui e fora do Brasil, que a concentração da propriedade dos vários meios de comunicação, para desgraça de nossa democracia, acha-se nas mãos de poucas famílias. Trata-se de pessoas cujas empresas profundamente conservadoras, manipulam leitores, ouvintes e telespectadores, criando o que já foi chamado de opinião publicada e não opinião pública (MIRANDA, 2016, p. 64-65).

Neste aspecto da concentração da propriedade, e de suas possibilidades nefastas à democracia e aos direitos humanos, Rosário (2016) considera que os meios de comunicação regrediram nas décadas mais recentes, não obstante a redemocratização do país e a Constituição dita cidadã. O autor observa que “o sistema de comunicação não foi tocado após o fim do regime militar. Ao contrário, os feudos se consolidaram ainda mais. O universo midiático tornou-se ainda mais oligárquico e corrupto ao longo dos últimos 30 anos de democracia” (p. 327).

A imprensa e a cronologia da destituição

A destituição da presidenta Dilma Rousseff teve a participação da imprensa, como não poderia deixar de sê-lo. A questão que se coloca, no intuito de analisar o papel desempenho por essa imprensa, é perceber a quantidade e a qualidade da referida participação, expressos no planejamento da cobertura (pauta), no conteúdo veiculado (notícia, notas de coluna, artigos, editoriais, entrevistas, debates etc.) e mesmo na repercussão dos conteúdos abordados (suíte), que lhes prolonga a vida útil e lhes agrega valor simbólico de relevância, às vezes de verdade.

As teorias da comunicação dão suporte a pensar que mecanismos como a agenda setting e o newsmaking, entre outros, determinam, em grande medida, a formação de certas opiniões, como se vê em “Espiral do Silêncio” (HOHLFELDT; MARTINO; FRANÇA, 2012). Os filtros, os enquadramentos e as representações que a imprensa impõe contribuem à formação de opinião pública favorável aos interesses dos donos dos meios de produção de sentido, ao mesmo tempo em que se afastam, desta forma, do interesse público, às vezes até do princípio básico da veracidade.

Outra questão que se coloca é perceber como o papel exercido pela imprensa se localiza no tempo e no espaço. Deve-se olhar em que momento surge a cobertura, quando se intensifica e por quanto tempo perdura, até se diluir, para dar espaço a outros temas e fatos, a outros interesses. Convém considerar ainda a desterritorialização e, em certa medida, a desintermediação da produção dos conteúdos jornalísticos, que proporcionam alcançar, respectivamente, maior contingente de público e que este reproduza aqueles conteúdos em redes sociais virtuais da internet.

As tecnologias da informação e comunicação mudaram muito e muito rapidamente. Mas a participação da imprensa, movida por seus interesses, em processos de destituição de um presidente, mantém-se, em essência, inalterada. Foi assim na pressão dos jornais e das rádios, por conseguinte da opinião pública, exercida sobre Getúlio Vargas, que o teria levado ao suicídio, em 1954; em 1964, quando os militares retiraram do cargo o presidente João Goulart; e em 1992, quando Fernando Collor renunciou, para escapar de um processo de impeachment de resultado, para a imprensa, previsível (SOUZA, 2016; LOPES, 2016; NOGUEIRA, 2016).

Jornais e revistas fizeram em 2016 o papel dos tanques em 1964”, relaciona Nogueira (2016), ao analisar o papel da imprensa na destituição da presidenta Dilma Rousseff. Com a mesma intenção, Lopes (2016) resgata o aspecto de uma espécie de superpoder gerado pela concentração dos meios nas mãos de poucos proprietários.

Quatro famílias decidiram: Basta! Fora! Os Marinho (Organizações Globo), os Civita (Grupo Abril/Veja), os Frias (Grupo Folha) e os Mesquita (Grupo Estado). A essas famílias somaram-se outras com mídias de segunda linha, como os Alzugaray (Editora Três/Istoé) e os Saad (Rede Bandeirantes), ou regionais, como os Sirotsky (RBS, influente no sul do país). Colocaram em movimento uma máquina de propaganda incontratável, sob o nome de “imprensa”, para criar opinião e atmosfera para o golpe de Estado contra o governo Dilma Rousseff, eleito por 54 milhões de pessoas em 26 de outubro de 2014. Foi o que algumas dessas famílias (os Marinho e os Mesquita, por exemplo) já haviam feito para derrubar o governo João Goulart em 1964. E, antes disso, em 1954, contra Getúlio Vargas. É espantosa a simetria discursiva das máquinas de propaganda na ofensiva contra Goulart e agora contra Dilma (LOPES, 2016, p. 120).

Na cronologia da destituição, os autores retomam o ano de 2003, quando se iniciava o primeiro governo do presidente Lula da Silva que, uma vez eleito, teria contrariado a preferência da parte mais conservadora dos empresários brasileiros, no grupo incluídos os empresários de comunicação. Guimarães classifica como “campanha sistemática” (p. 379) a atuação publicitária da imprensa, que se instalava naquele ano e que duraria pelos próximos governos do Partido dos Trabalhadores.

Desde 2003, as televisões, em especial a TV Globo; os maiores jornais, como O Estado de S. Paulo, a Folha de S.Paulo e O Globo; e as principais revistas, quais sejam a Veja, IstoÉ e Época, se empenham em uma campanha sistemática para desmoralizar o Partido dos Trabalhadores e os partidos progressistas e para tentar “provar”, a ineficiência, o descalabro e corrupção dos governos do PT, inclusive de seus programas sociais, que retiraram 40 milhões de brasileiros da miséria e da pobreza (GUIMARÃES, 2016, p. 379).

Ramalho (2016) também faz referência ao que classifica como “forte campanha” (p. 57) dos principais veículos de comunicação contra o governo e o partido dos trabalhadores, neste caso, voltada às suas maiores lideranças. A estratégia “foi minando o apoio popular e criando as condições políticas para dar musculatura à oposição política que durante quatro eleições seguidas fracassara nas urnas, mesmo com apoio insofismável e ilegal dessa mídia partidarizada (…)” (p. 57) – nos anos de 2002, 2006, 2010 e 2014.

Souza (2016) cita o episódio do Mensalão, ocorrido em 2005, com ampla cobertura da mídia tradicional, como “um ensaio geral [da imprensa] para o que aconteceria anos depois na [operação] Lava Jato e no processo de impedimento da presidenta Dilma” (p. 48-49). O autor aponta o ano de 2013, e mais especificamente as manifestações de rua que se tornaram conhecidas como Jornadas de Junho, como o ponto de partida da “campanha midiática” (p. 95) da imprensa associada às instituições do aparelho jurídico-policial, no processo de deslegitimar o governo eleito.

O autor chama a atenção para a “federalização das manifestações” e “personificação do descontentamento na pessoa da presidente da República” (p. 95), bem como para a construção simbólica de uma “classe média revolucionária” sobre “a fração da classe média moralista e conservadora, que sempre desprezou os pobres” (p. 100).

A novidade aqui não é o simples acordo de sentimentos e de visão de mundo, que sempre existiu entre as grandes redes de TV e os grandes jornais e esse seu público cativo há décadas. O que é novo, tornando-se um dado decisivo a partir de 2013, é a verdadeira conversão midiática desse ator político conservador normalmente discreto e recluso em “classe revolucionária” com extraordinária e súbita autoconfiança, podendo exprimir-se nas ruas sem qualquer vergonha ou pejo (SOUZA, 2016, p. 96).

A pesquisa bibliográfica aponta com clareza o papel desempenhado pela imprensa brasileira, que se ampliaria e se aprofundaria após a nova eleição da presidenta Dilma Rousseff. Não tendo mais o vigor necessário à espetacularização exigida pelos meios de comunicação, o episódio do Mensalão cedeu lugar à investigação da Lava Jato que, então, passou a municiar o noticiário da destituição que se construía no Congresso e, sobretudo, na opinião pública. A julgar pelos mecanismos utilizados, por toda a mídia, o esforço se deu como nunca se vira na história do país.

Retomando a narrativa ao ano de 2014, tem-se, em Souza (2016), que “uma série de prisões espetaculares e os assim chamados ‘vazamentos seletivos’, cuidadosamente orquestrados entre os participantes do complexo jurídico-policial do estado e a mídia conservadora, criaram uma atmosfera de linchamento político” (p. 110). O autor acrescenta que “a criminalização do PT – e, por extensão, do projeto inclusivo que ele representou – passou a partir daí a ser uma construção incansável dos dois principais parceiros do golpe: o complexo jurídico-policial do Estado e a mídia conservadora” (p. 110).

O ano de 2015 seria o primeiro do novo governo de uma presidenta que, embora legitimada pela eleição, segundo Rocha (2016), não estaria autorizada a governar pela mídia.

A mídia dominante, representada em maior peso pelos jornais e revistas de grande circulação e as redes de televisão, extremamente descontente com o resultado revelado pelas urnas nas últimas eleições presidenciais, passou a adaptar seu secular enredo a fim de defenestrar ilegitimamente uma presidente eleita pelo voto popular (ROCHA, 2016, p. 88).

A estratégia se manteve de forma aguda e ampliada no ano de 2016, até o definitivo impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Enquanto o processo se instalava e tramitava, primeiro na Câmara dos Deputados e depois no Senado, a imprensa incorporava, como protagonistas daquela cruzada, outros atores do Legislativo, do Judiciário, do empresariado e da, por ela então chamada, vozes da rua. Em sua narrativa, Silva Filho (2016) faz uma referência àquele momento em que o governo agonizava.

Ao longo do ano de 2016, antes que o golpe de Estado fosse dado, João Roberto Marinho conspirava com políticos, empresários, procuradores e juízes golpistas e seu Jornal O Globo estampava sucessivas manchetes e editoriais de apoio ao golpe parlamentar, assim como fizeram também quase todos os jornais da grande mídia (e entre eles a Folha de São Paulo, o Estadão e a Revista Veja). A Rede Globo de Televisão teve papel decisivo e protagonista por meio principalmente dos seus programas de notícias e jornalismo (SILVA FILHO, 2016, p. 198).

Nada escapava à influência dos conteúdos veiculados pela mídia em geral, notadamente pelos noticiosos, no seu papel de impor outros discursos e outras práticas. Era preciso banir da história as camisetas vermelhas dos partidos alinhados à esquerda. Era preciso emplacar uma nova palavra de ordem, como “Muda Brasil”, na análise de Souza (2016), “como forma cifrada de invocar a verdadeira bandeira – ‘Muda (de governo) Brasil’ – passaram a dominar o imaginário das manifestações” que levavam os mais ricos para as ruas (p. 94).

Numa referência ao resultado do esforço da imprensa expresso naquelas manifestações – que foram estimuladas e enaltecidas pelos meios, como se verá a seguir, Kucinski (2016) analisa que “seus filhotes [das classes médias], bem nutridos, trocaram as camisetas de grife por camisetas verde-amarelas de um patriotismo que nunca sentiram e, açulados por uma mídia venal, investiram, em topelias obscenas, contra o vermelho do PT” (p. 126).

O modus operandi da imprensa

O papel exercido pela imprensa na destituição da presidenta Dilma Rousseff fica mais claro quando se observa o modo como jornalistas e empresários da comunicação operacionalizaram seus esforços. Costa (2016) considera que a imprensa agiu como um partido político. Afirma que “a linha editorial da ‘grande’ imprensa brasileira é falaciosa, enganadora, inverídica, confirmando a correção de sua denominação como PIG: Partido da Imprensa Golpista” (p. 186).

Para Carballido (2016), o que concorreu para a destituição da presidenta, no tocante ao papel da imprensa, foi “una descarada manipulación por parte de los más importantes medios privados de comunicación e información (y de producción de opinión), marcando agenda, ocultando hechos, tergiversando versiones, sobre-representando parte de la realidad en el imaginario social” (p. 351). No mesmo sentido avalia Énders (2016), para quem “os grandes grupos de imprensa, TV Globo à frente, conduziram uma campanha desavergonhada contra a presidente e contra o PT” (p. 112).

Outro aspecto citado pelos autores é o da seletividade das informações veiculadas pela imprensa de “porte histórico elitista” (NAGIME, p. 303), que, desta forma, restringiria do público a capacidade de conhecer aspectos da realidade e de formar um juízo isento sobre a notícia. Para a autora, durante o processo de destituição, “a mídia de massa passou a ser um forte instrumento para dar credibilidade a ilações, quando vindas do governo democraticamente eleito, assim como abafar crimes comprovados, quando vindos da oposição golpista” (p. 303).

A seleção de certas notícias necessárias à construção de uma opinião pública favorável à destituição corresponde a uma omissão da imprensa, e esta a uma ferramenta para a desinformação exigida pelo projeto de banir a presidenta, ou os males que ela representaria. É o que sugere Rocha (2016), ao analisar o papel desempenhado pela imprensa à época.

Questões de extrema importância são deixadas propositalmente de lado, afinal não se busca a imparcialidade da notícia, mas a criação de um enredo que leve todos à salvação através da exterminação do mal, justificados os meios para consecução deste fim. Por conseguinte, as ilações ganham status de prova, as especulações são tidas como raciocínios lógicos incontestáveis, eu o ‘senso de justiça’ de cada um se firma como fundamento robusto e suficiente para um decreto condenatório (ROCHA, 2016, p. 89).

Outros autores apontam o objetivo da imprensa de desqualificar e até de criminalizar também os apoiadores da presidenta Dilma Rousseff, o que teria contribuído à geração de um clima de ódio a estes eleitores, uma intolerância classificada por Souza (2016) como “protofascismo” (p. 101). O autor afirma, a respeito da desqualificação, que “o Jornal Nacional sugeria em suas coberturas que os ‘amarelinhos’, quando iam às ruas, reagiam espontaneamente, enquanto os ‘vermelhos’ eram militantes profissionais sectários” (p. 101).

Grabois (2016) registra a participação dos meios de comunicação no esforço de criminalizar os que se opunham ao impeachment, o qual seria praticado por todos os agentes interessados na destituição da presidenta. Afirma a autora que “esse movimento que busca golpear a democracia tem apoio de parte da grande mídia, que criou uma narrativa de ódio e de criminalização das forças progressistas e dos movimentos sociais, propiciando o surgimento de discursos e atitudes fascistas nas relações pessoais e cotidianas na vida em sociedade” (p. 77).

Há, entretanto, um ponto que une as análises dos autores que se dedicaram a avaliar o papel desempenhado pela imprensa, na construção da destituição, qual seja o uso das informações produzidas seletivamente pela operação Lava Jato para desqualificar o Partido dos Trabalhadores, o governo do partido, daí o mandato presidencial; ou, na via inversa e complementar, para credenciar o juiz federal responsável pelo caso, Sérgio Moro, promotores e outros atores da Justiça a produzir e publicizar aquelas informações necessárias à parceria.

Foram citadas por Assis (2016), Uchôa (2016), Guimarães (2016), Esquivel (2016) e Feitosa (2016), como expressões de uma parceria mídia-Justiça são citadas, por um lado, a visibilidade positiva reservada pela imprensa a cada novo movimento dos membros do Judiciário naquela operação, por outro o vazamento de informações de forte apelo midiático ou a realização de ações espetaculares por parte do sistema polícia-Ministério Público-Justiça com dia e hora agendados com a imprensa. A este respeito, afirma Assis:

Diuturnamente, os oligopólios distribuídos entre meia dúzia de famílias abastadas passaram a servir apenas aos interesses da classe dos patrões, disseminando manchetes ocas de veracidade, mas plenas de gatilhos jurídicos. Desta vez, o Judiciário, que na ditadura entrou em cena depois do golpe dado, para sustentar a repressão, as prisões ilegais e os desaparecimentos, resolveu entrar em campo na preliminar. Desta vez, referendando notícias falsas veiculadas na mídia, fruto de “informações” contrabandeadas de operações espetaculosas, carentes de apurações e investigações mais aprofundadas (ASSIS, 2016, p. 95-96).

O quadro abaixo ilustra a convergência de avaliações que fazem os autores a respeito do papel da imprensa na destituição da presidenta Dilma Rousseff, com ênfase na atuação paralela e parceira com a Justiça.

Ideia-chave Avaliação
Circo Armou-se um circo, onde um juiz obscuro, alçado à condição de super-herói, foi aplaudido e incensado por todos os veículos de comunicação, por humilhar, sequestrar e espionar ao arrepio da lei que deveria seguir. Como esses processos costumam ter efeitos colaterais, asfixiou as ações de uma presidente proba, desleixando dos reais corruptores (ASSIS, 2016, p. 96).
Factoide A grande imprensa do país escancara apoio à pretendida destituição presidencial, patrocinando a disseminação de todo o qualquer factoide possível para manter a sociedade absolutamente confusa diante dos fatos em apuração no Congresso. (…). A operação Lava Jato vem servindo de munição para robustecer a mídia em seu processo de manipulação de opinião pública (UCHÔA, 2016, p. 282).
Vazamento Fazem isto divulgando dia a dia s declarações de delatores, criminosos confessos, e de procuradores, policiais e juízes que as “vazam”, seletivamente, para os meios de comunicação, cometendo notória ilegalidade, e publicando notícias sobre o extraordinário descalabro e corrupção em que viveria o país (GUIMARÃES, 2016, p. 379).
Vazamento É o mesmo procedimento dos ensaios realizados anteriormente: o uso massivo dos meios de comunicação para alimentar um processo de desprestígio por meio de uma série de acusações, a cumplicidade de alguns juízes, como é o exemplo de Sérgio Moro, que chegou a vazar escutas telefônicas privadas envolvendo o ex-presidente Lula e a própria presidente da República (ESQUIVEL, 2016, p. 76).
Vazamento A Operação lava Jato, levada a efeito pela Justiça Federal, e sua estranha parceria com a grande mídia, com vazamentos seletivos, exibidos com estardalhaço nos noticiários televisivos, com destaque para a TV Globo, transformou seus atores, membros do Judiciário Federal, em heróis nativos, justiceiros e vingadores, que, em nome do combate à corrupção, poderiam cometer excessos processuais e legais (…) (FEITOSA, 2016, p. 379-380).

Exclusão informativa

O presente artigo analisou dados obtidos em pesquisa bibliográfica sobre o papel desempenhado pelos meios de comunicação, notadamente a imprensa, no processo que culminou com a destituição da presidente Dilma Rousseff do cargo, bem como a sua possível interface com o quadro de exclusão comunicacional – e de debilidade da esfera pública – que caracteriza o Brasil; teve como objeto de estudo as representações que fazem diferentes vozes que se colocam como dissonantes à versão de impeachment acolhida prevalentemente pela mídia tradicional.

Depois de apresentar alguns aspectos conceituais de exclusão comunicacional, entendida aqui como a restrição ao direito de comunicar – de informar e de ser informado, de se expressar e de dialogar -, o artigo tratou de relacionar os meios de comunicação no Brasil e a destituição. Percebeu-se, entre outras características, que o sistema de comunicação brasileiro é uma ferramenta política da classe hegemônica; que seus meios, concentrados nas mãos de poucos donos, são excludentes em relação a quem, ao que e ao como se fala; que seus conteúdos são manipulados segundo os interesses políticos e econômicos privados; que têm servido a projetos antidemocráticos e injustos; e que pouco avançaram depois do Regime Militar, e até regrediram após a Constituição de 1988.

O artigo também tratou da atuação da imprensa no passo a passo da destituição, por meio da qual se verificou que ação semelhante ocorrera contra os presidentes Getúlio Vargas (1954), João Goulart (1964) e Fernando Collor (1992); que, desta feita, a ação oposicionista da imprensa teria se iniciado no primeiro governo do presidente Lula da Silva (2003); que o caso Mensalão (2005) serviu de ensaio ao que se executaria dez anos depois; que o ponto de partida para a campanha pela destituição foram as Jornadas de Junho (2013), quando se verificaram a “federalização” das insatisfações manifestadas nas ruas, a “personificação” das causas destas na pessoa da presidente Dilma Rousseff e a criação de uma “classe média revolucionária” para o front da campanha.

E abordou, finalmente, o modo utilizado pela imprensa no seu contributo à destituição, através de que se observou o exercício de papel coadjuvante, mas fundamental, comparado ao de um “partido político” a encetar uma “campanha desavergonhada”, uma “descarada manipulação”; a atuação com seletividade, em relação à pauta – ademais da omissão -, satanizando o PT e a presidenta Dilma Rousseff, e sacralizando o juiz federal Sérgio Moro e a Justiça; e a espetacularização de notícias fomentadas por ações produzidas ou por informações vazadas da Justiça para os meios de comunicação.

Diante do exposto e analisado, é possível aferir validade à hipótese inicialmente levantada de que a imprensa teve importante papel como coadjuvante da destituição, deslocando sua atuação do âmbito do jornalismo para o da publicidade, ou do interesse público para o interesse privado. Espera-se, desta forma, haver contribuído com o esclarecimento, se não tanto sobre um possível golpe de Estado travestido de processo de impeachment, pelo menos sobre a atuação que empresários de comunicação e jornalistas tiveram no episódio, o qual, pelas razões analisadas aqui, não teve lugar digno nos conteúdos da imprensa, e, talvez, também não venha a tê-lo no curso da história.

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Alberto Perdigão é doutorando em Ciências da Cultura da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro-UTAD, mestre em Políticas Públicas e Sociedade e professor do curso de jornalismo da Unifor