Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo carece de boas histórias

Professor efetivo do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e repórter há 40 anos, Aylton Segura figura hoje como uma das vozes críticas de maior destaque na instituição com relação ao ensino do jornalismo e o mercado de trabalho. Defensor ferrenho da reportagem (o gênero jornalístico que contextualiza e aprofunda um assunto utilizando-se de técnicas variadas) e da humanização dos fatos nos veículos impressos – já que ‘o computador pode criar notícia’ –, acredita que uma revisão de valores no panorama educacional e profissional é de vital importância.

Em fevereiro de 2009, o Ministério da Educação (MEC) criou uma comissão para reformar as diretrizes curriculares dos cursos de Jornalismo no Brasil, claro sinal de que há mais gente preocupada em mudar a situação atual. Segura gentilmente cedeu cerca de uma hora de sua apertada agenda para discorrer sobre esse aparente avanço, aproveitando para criticar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em derrubar a obrigatoriedade do diploma, salientar as agruras do mercado de trabalho e traçar um perfil do estudante de jornalismo hoje, tudo isso em meio às incessantes baforadas de seus fiéis cigarros de palha.

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O dia seguinte passou a ser ontem

Em um dos encontros de discussão das novas diretrizes da comissão do MEC, o diretor de Regulação e Supervisão do Ministério, Paulo Roberto Wollinger, afirmou o seguinte: ‘Algumas profissões passaram por profundas mudanças nos últimos anos e por isso faz-se necessária a revisão das diretrizes curriculares de diversos cursos.’ Você acredita que o curso de Jornalismo, da forma que está estruturado hoje, é ultrapassado?

Aylton Segura – O curso de Jornalismo vem sofrendo pequenas mudanças desde a década de 1950, na verdade. Após a Segunda Guerra Mundial, com a Teoria de Sistemas, de Bertalanffy, o mundo começa a pensar diferente, a pensar em outros acoplamentos, deixando para trás aquele pensamento mecânico, onde tudo era pré-estabelecido e pré-definido. Depois, com a invenção do computador, a produção do jornal deixa de ser manual e passa a ser informatizada, o que possibilitaria os atuais Pagemaker e InDesign, programas de fazer jornal, e o CorelDraw, para a arte, trazendo mais recursos para trabalhar a imagem dentro da publicação. Em 1998, você tem o advento da internet, com a informação circulando de forma muito rápida. O dia seguinte passou a ser ontem. E o jornalismo se viu nesse miolo, assimilando tudo que a rede trouxe, às vezes inconscientemente. Não estou falando de jornalismo on-line, e sim da possibilidade de informações num novo panorama de coleta de informações.

Já existe o computador que faz notícia

E o curso conseguiu acompanhar essas mudanças ou ficou para trás?

A.S. – O próprio Marques de Melo (José Marques de Melo, presidente da comissão), que participa da comissão, um grande teórico, tem certa limitação com relação a essa nova perspectiva de jornalismo. Na década de 1970, quando eu estudei, ele fazia jornalismo comparado baseado na regra e na fita métrica. Ou seja, o conteúdo do jornal era medido; muito ultrapassado. A bibliografia do curso hoje ainda tem, por exemplo, o Erbolato, que foi prático em 1970, mas não pegou a produção atual, e o Marques de Melo. Essa comissão acertou; era necessária a mudança. É claro que existe um núcleo duro e imutável do jornalismo que o Erbolato, o Marques de Melo e o Juarez Bahia, os teóricos daquela época, contemplam bem. Mas também existe um jornalismo que tem que se adaptar a uma nova realidade. Quem tem que se adaptar? Os jornalistas. Onde se adapta? Nos cursos. Hoje, você pega redes sociais, por exemplo. Existem muitas, oferecendo infinitos caminhos para se fazer uma escolha, avançar. Você publica um comentário no portal Terra que imediatamente vai parar no Twitter, e assim por diante, fazendo um grande carnaval; é um negócio automático. Nessa nova perspectiva do jornalismo é que a gente tem que mudar. Só que com tudo isso, o jornalismo corre o risco de perder a humanização. E o jornalismo é humano, e não técnico. O lead (primeiro parágrafo de uma notícia estruturada em pirâmide invertida, a técnica textual mais comum nos jornais brasileiros; nele estão as principais informações), se você programar um computador com as heurísticas da notícia (quê, quem, quando, onde, como e por quê), ele te dá uma formatação. Já existe isso, o computador que faz notícia. Mas não faz reportagem, não caminha nesse sentido de humanizar.

Não se ensina experiência de vida

Em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, em julho do ano passado, Marques de Melo delineou as principais mudanças sugeridas pela comissão. Dentre elas, o desmembramento do curso de Comunicação Social, isolando o Jornalismo de suas duas habilitações irmãs, Publicidade e Propaganda e Rádio e TV, sugerindo um currículo que forme jornalistas e não comunicadores, por mais que teorias comunicacionais e disciplinas de formação humanística ainda tenham grande relevância na grade. Você acha que o desmembramento é vantajoso?

A.S. – São habilitações distintas. Principalmente a publicidade. Mas na verdade você não tem aula de publicidade. Já está desmembrado. Você estuda sociologia da comunicação, fundamentos científicos da comunicação e outros, que servem para os três, e chega um determinado momento em que cada um toma seu caminho. Não faz diferença. Talvez em algumas outras escolas confundam essa questão entre as áreas. Mas não vejo necessidade.

Outro enfoque mencionado por Marques de Melo é o de que ‘o jornalista precisa ter conteúdo para colocar nas notícias, nos comentários. Estamos reforçando ainda a formação que nós chamamos de contextual, que é a capacidade de entender os processos de comunicação e a relação do jornalismo com as outras áreas comunicacionais’. Além disso, se propõe a restauração do estágio supervisionado, um conjunto de atividades complementares designadas para que o aluno melhore sua formação em uma área específica de conhecimento, e o aumento da carga horário total do curso, que passaria de 2.700 para 3.200 horas. Como você analisa essas propostas?

A.S. – Acho besteira aumentar a grade. Já o estágio, não; mas deveria ser supervisionado, e não constituir apenas a possibilidade do aluno virar um praticista, o que ele é doido para fazer. Só que quer fazer sem aprender. Aí pensa, como todo mundo pensa, que escrevendo 10 linhas de texto já sabe fazer jornalismo. Jornalismo vai além da escrita; é pensar, é refletir. Nesse ponto, a escola não ensina o aluno a imaginar situações. Isso quem ensina é a cultura. O jornalista tem que ter um interesse cultural, tem que estar ligado no mundo, tem que andar de ônibus, tem que andar a pé, conhecer a realidade em que vive, o mundo em que vive, o momento histórico em que vive; aí sim vai poder fazer um bom jornalismo, vai poder interpretar os fatos. E tudo isso não se aprende na aula. Se recomenda até, mas não se ensina. Não se pode ensinar experiência de vida. Eu posso ensinar que um mais um são dois. O que o aluno vai fazer com esse dois depende dele.

Universidade tem que ser a referência

Se possível, adicionaria outro ponto, ou pontos, que considera essencial nessa reforma do curso superior de Jornalismo?

A.S. – Precisa-se estabelecer programas de educação permanente pro jornalista. Promover fóruns ou discussões das novidades que surgem por aí. O professor do curso deve ser um cara antenado nas mudanças, que estuda. Já o editor do jornal, no mercado de trabalho, não estuda. Trabalhei apenas como repórter por 24 anos, e nessa época eu praticamente não li livros de jornalismo. Hoje, após entrar na academia, eu leio uma base de 30 livros/artigos por ano. De certa forma, eu já vinha colocando em prática essa reforma do ensino superior, trabalhando com integração de turmas, interação de currículos. A reforma prevê isso. E tenho tido um belo resultado. O curso pretende ser holístico e trabalhar com a questão de sistemas. Eu já trabalho com isso. Essa reforma veio somente dar um reforço para o que eu já estava fazendo, que é de certa forma diferenciado da própria ementa do curso. Por outro lado, certa vez assisti a uma aula de planejamento gráfico em que fiquei envergonhado. Era aula de diagramação, coisa de segundo grau.

É a mesma coisa que vemos ao ensinarem gramática na faculdade, não é?

A.S. – É. Nesse caso, professor de língua portuguesa ensinar a fazer jornal é um grande crime. Se não sabe fazer, como vai ensinar? Teria que ensinar as questões de interpretação de texto, de estilo, que levam o jornalista a desenvolver um texto agradável. Por último, a universidade tem que ser a referência, e não o mercado. Ele não tem a capacidade de se tornar referência. O mercado deve olhar o que a universidade está fazendo e assimilar.

É primarismo achar que aluno tem que ser aprovado

O MEC está fazendo esse trabalho de reformulação no ensino superior brasileiro a partir de quatro áreas estratégicas: Direito, Medicina, Jornalismo e Pedagogia, que são, segundo o ministro Fernando Haddad, os quatro pilares para o fortalecimento da democracia. Como você vê tamanha importância conferida à profissão diante da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em derrubar a obrigatoriedade do diploma para seu exercício?

A.S. – O STF não golpeou o exercício profissional, ele golpeou a universidade. Foi uma incoerência muito grande, porque justo o órgão responsável pela manutenção das instituições atirou em uma instituição. Foi gol contra. Não sei que idiossincrasia moveu o STF, dizem até que foi tentativa de cercear a imprensa, mas acho que não foi isso. Atacar a formação do jornalismo ao mesmo tempo em que o MEC a reforça foi uma grande incoerência. O MEC está certo. Ele propõe a reformulação do direito, e o direito está mudando. Hoje você tem processos mais rápidos, e necessita de uma justiça mais sutil. Tem que mudar o curso de medicina porque se discute coisas novas, como células-tronco. Já não é mais aquela visão do especialista, do médico 007. Não tenho muito propriedade para falar da medicina, mas hoje a semiologia não é mais a mesma de quando o médico enchia cadernos e cadernos conversando com um paciente. Parece que isso as escolas pararam de ensinar ou estão ensinando muito mal. A pedagogia é a que mais tem que mudar. Temos um atraso muito grande. Um bom exemplo disso é a música The Wall, do Pink Floyd, que mostra aquela cena do ensino autoritário, as crianças todas indo para a máquina cultural de moer carne ou algo parecido. A reformulação é necessária. Temos que formar novos professores, dentro de visões atuais. Muitos personagens revolucionários do ensino, como Freinet e Piaget, ou mesmo Edgar Morin, que revolucionou o ensino na França com a Teoria da Complexidade, chegam aqui com reserva, quando chegam. Há professores que dizem que agora somos obrigados a aprovar o aluno. É um primarismo absurdo achar que o aluno tem que ser aprovado. Chego a ter dúvida se isso não acontece também na pós-graduação, mas no ensino fundamental, médio e graduação acontece. É mais importante a lista de presença, é mais importante a entrega de trabalhos do que a qualidade, normalmente feitos pro professor e não pro aprendizado. É obrigação do professor aprovar o aluno, sim, mas fazendo com que desde o primeiro dia de aula ele progrida até o ponto em que possa ser aprovado. E, se o aluno tiver condições, que seja adiantado de turma. Tem alunos que não merecem a sala em que estão.

Daqui a 10 anos, teremos a situação que temos hoje

Sabe-se que nos Estados Unidos e em alguns outros países não há regulamentação do mercado jornalístico há mais de um século. Mesmo assim, a profissão perdura. A decisão do STF teve repercussões tanto negativas quanto positivas por todo o país, suscitando calorosas discussões. De que forma você visualiza o panorama geral da profissão no Brasil daqui a dez anos, se a decisão do STF se mantiver?

A.S. – Quando a juíza Carla Richter (do STF) desencadeou esse processo, escrevi um artigo que foi publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico (www.conjur.com.br), que me rendeu inclusive o título de persona non grata na magistratura paulista. O título do artigo era ‘Vá cuidar do seu rábula’. Competência fora da escola não é novidade. Assim como se tem o rábula, que é o advogado prático, o protético, que é o dentista prático, muita gente fazendo medicina alternativa por aí, você também pode ter pessoas fazendo jornalismo alternativo. O que não se pode ter, por exemplo, é alguém como o Mainardi escrevendo numa revista como a Veja, sem o mínimo de capacitação para isso. Ele escreve crônicas que acabam assumindo o status de coisa séria, e mesmo após perder a credibilidade continua escrevendo, se promovendo, com uma temática que interessa à revista, de uma forma no mínimo irresponsável, da mesma forma que se fazia há 400, 300, até 100 anos atrás, quando Joseph Pulitzer publicava seu jornal (New York World), quando Assis Chateaubriand publicava seus jornais (da cadeia Diários Associados, a partir da década de 1930), usando pessoas que trabalhavam no jornal para propagar sua ideologia. Tivemos uma grande perda, mais importante que o registro de jornalista, que foi a criação do Conselho de Jornalismo, onde o jornalista estaria submetido a um controle deontológico, e digo deontológico em vez de ético porque acredito que ética já está implícita. E o Conselho ninguém quis porque achavam autoritário. Agora, acabar com os cursos de Jornalismo não é autoritário. Contraditório, no mínimo… Daqui a 10 anos, teremos a mesma situação que temos hoje: pessoas que não fizeram curso nenhum e enfrentaram um processo muito mais longo e incerto no auto-didatismo, quando poderiam adquirir o conhecimento sistematizado dos cursos. Neles, a formação é no mínimo mais rápida. São quatro anos, e não dez. Claro, conheço ótimos jornalistas que não foram para a escola. Mas conheço também uma massa de jornalistas que se não tivessem ido à escola, não conseguiriam exercer a profissão. Para dar um exemplo de não-diplomado, cito o Caco Barcellos, que hoje é professor de Jornalismo ao vivo e a cores (apresenta o programa Profissão Repórter na Globo). Seria um argumento dizer que ele, por exemplo, não precisou de escola. Mas Barcellos teve algo diferenciado: além de conviver com ótimos jornalistas, apostou em leituras e auto-didatismo e conseguiu se formar, por mais que tenha levado 20, 30 anos para isso. Tem que se estudar, se não na escola, fora.

Novo Jornalismo deveria ser a regra

Quanto ao mercado profissional em si, Sérgio Vilas Boas faz uma pesada crítica à forma como a notícia é produzida atualmente em nosso país, no artigo ‘Histórias bem contadas’, publicado no site Observatório de Imprensa. Segundo ele, ‘nossos jornais e revistas ainda pensam que sobreviverão lutando para ser bravamente ágeis dentro das limitações que têm. Mas acabam afundando-se em abstrações discursivas. Não há vivências, não há experiência direta, não há apuração sólida. O resultado dessa visão estreita é a oferta de hard news, apenas, ou como querem alguns donos de jornais, `a oferta do melhor resumo do dia anterior´’. Você acredita que Vilas Boas tem razão?

A.S. – O Sérgio Vilas Boas, junto de jornalistas como a Cremilda Medina, tem razão nesse aspecto. A função do jornal diário hoje, desde 1998, é justamente contar histórias bem contadas, me perdoe o trocadilho. Nisso entram dois tópicos que a classe ainda não percebeu. Primeiro: jornalismo literário não quer dizer convertimento à literatura, já que é impossível; literatura é ficção e jornalismo é realidade. A segunda é o Novo Jornalismo, (new journalism) surgido na década de 1960 nos Estados Unidos, com Gay Talese, Truman Capote e companhia, que criam esse rótulo ao perceber que o ‘velho jornalismo’ estava superado. E não estava superado naquela época, mas já em 1935, quando Eiji Yoshikawa escreveu ‘Musashi, Hiroshima’, a reportagem de John Hersey, de 1946 (publicada na revista norte-americana The New Yorker), é outro exemplo de que o jornalismo já estava superado. Como vou contar a história da bomba atômica? Pôxa, matou 100 mil pessoas. Não estou acostumado com isso, e tenho que explicar essa tecnologia. Talvez explicar não seja o melhor termo; o Dan Brown (autor de O código Da Vinci) deve ter cansado de explicar isso, os físicos do mundo inteiro explicaram. Mas como vou buscar o entendimento do leitor para isso? John Hersey conseguiu, fato comprovado pelas sucessivas tiragens da revista e pela outorga do título de ‘a melhor reportagem do século’ à reportagem. Se fala do Novo Jornalismo como se fosse algo extra-jornalismo, como se não pertencesse à rotina jornalística, fosse outra categoria. Mas é o que deveria ser regra, e não exceção. As mudanças do mundo exigem mudanças na própria prática do jornalismo ao longo do tempo. Não o on-line – ele é notícia mesmo, o trabalho de hipertexto; é outra categoria. Mas no impresso o que se tem que fazer é a reportagem, é contar boas histórias, usando humanização e participação do repórter.

Estagiário ganha até muito

Em 2007 o seu projeto de extensão universitária, o Núcleo de Estudos Cada qual com o seu dele, foi um dos projetos escolhidos no programa Rumos Itaú Cultural, no segmento Jornalismo Cultural. No texto de apresentação, você escreveu que ‘os cursos de Jornalismo, na década de 1970, enfrentavam o mesmo problema atual. Não conseguiam fazer a ligação entre a necessidade teórica e a prática. O lead e o sublead contribuíam tecnicamente, mas afastavam o jornalismo da criatividade’. Essa afirmação faz coro com a de Vilas Boas, em que ambas afirmam a falta de profundidade e atratibilidade das notícias produzidas no Brasil, com a diferença que Vilas Boas critica o mercado de trabalho, e você o ensino superior. Voltando à reformulação proposta pelo MEC, poderia ela erradicar esse problema?

A.S. – Acho que vai erradicar. O Vilas Boas critica o mercado, mas quem faz o mercado é o ensino superior. Não o contrário. Eu parto do princípio de que o ensino superior deve ter essa discussão que estamos tendo hoje. E está. Eu posso estar falando um monte de bobagem, mas provavelmente esse monte de bobagem vai servir de fonte de reflexão para uma série de pessoas, que podem até discordar. Mas vão discordar e abrir debate, e daí pode sair alguma coisa que pode mudar pontos de vista.

Ainda no texto de apresentação, você também afirma: ‘Ainda estudante, eu havia aprendido que esses desafios (os desafios decorrentes da regulamentação da profissão, a partir de 1969) não bastariam para rechear as aulas de cases da profissão[…]. A preocupação maior era que os alunos deveriam começar a criar seus próprios cases. E de preferência ainda na universidade.’ Um dos enfoques da reforma é justamente a restauração do estágio de jornalismo. Não obstante, o estágio, mesmo sem regulamentação, existe. Você acredita que o estágio como é estruturado atualmente é adequado à graduação? E supriria ele a necessidade dos alunos de criarem seus próprios cases?

A.S. – O estágio não é uma relação de dependência do aluno com o mercado nem com a universidade, mas uma relação de autonomia do aluno com o mercado e com a universidade. O primeiro choque que pode se receber da profissão é ir pro estágio enfrentar o mercado. Quanto aos cases, qualquer imbecil que trabalhe um mês no jornal já tem história para contar. Hoje você entrevista o governador, amanhã o artilheiro do time, depois o Pelé, a Hortência, o Zé Mané, e assim por diante. E todo trabalho seu acaba gerando os cases. Mas os cases em si não importam tanto. O que importa é que o aluno/profissional esteja vivo, trabalhando, vivenciando cada dia uma história diferente para enriquecer sua história pessoal. Assim, em pouco tempo você se torna um jornalista. E por pouco tempo eu quero dizer uns trinta anos… (risos). Mas o estágio, hoje em dia, não tem acompanhamento nenhum, é um subemprego. Você larga o estudante na redação e ele vai absorvendo todos os vícios que existem lá. Deveria ser o contrário. Ele deveria até sanar alguns vícios. E a supervisão a que me refiro não é só de redação, é de mercado também. É um tripé: o mercado, a empresa e a universidade. A universidade habilita para o mercado. O mercado confia na habilitação. A universidade deve satisfação ao mercado e não à empresa. Então a universidade tem que formar jornalistas que manterão eticamente o mercado. E a empresa, por sua vez, terá funcionários competentes que propiciarão o crescimento, a lucratividade etc. Mas não é do jeito que está sendo feito que conseguiremos isso. Quanto à remuneração, posso até apanhar por falar isso (risos), mas acho que o estagiário ganha até muito; afinal, não é emprego, é estágio.

Donos de jornal são competentes para tocar negócios de gado

O Núcleo de Estudos fazia, segundo o texto de apresentação, ‘uma tentativa de posicionar a universidade em seu devido lugar, desviando o eixo de referência do mercado, em muitos casos limitado pela rotina diária, e trazendo-o para a academia, com a possibilidade de refletir sobre o fazer jornalismo’. Assim, decupando a cobertura jornalística existente, os alunos discutiam e iam além do que havia sido feito, propondo novas formas de realizar o trabalho jornalístico. Mas uma vez formado e inserido no mercado de trabalho, o profissional é constantemente forçado a aderir aos vícios das redações, como você apontou anteriormente. Como adequar os ideais aprendidos na universidade numa competição de mercado tão acirrada e competitiva, se muitas vezes não há abertura?

A.S. – Por que a reflexão? É para se ter segurança, coerência, firmeza, para fortalecer os músculos para este enfrentamento com o mercado. O mercado não aceita poetas, autores, escritores; o jornalismo não aceita isso, e está correto em não aceitar. Você se forma escritor, jornalista ou poeta fora do mercado, a reflexão está lá fora. Na hora do mercado é sentar e fazer. Só que fará melhor quem tiver a densidade, a musculatura mais desenvolvida para produzir qualquer coisa, desde uma simples notícia até uma reportagem que exigiu um ano para vir à tona. Muitas vezes o mercado não sabe ser mercado. O dono do jornal às vezes não sabe ser dono de jornal; quer ser repórter, leitor, quer ser tudo. Mas tem que ser dono. Tem que se empenhar em ser a pessoa que mantém uma boa equipe e leitores fiéis. Eu vi esse processo bem representado na Folha de S.Paulo, quando o Otávio Frias Filho assumiu a redação-geral (em 1984) e resolveu ser dono mesmo. Ele contratou gente talentosa e capacitou-os, enviando para os Estados Unidos, França e Japão, para aprenderem a fazer o jornalismo de qualidade que ele almejava. Montou uma equipe para ganhar campeonato. E ganhou. A Folha de S.Paulo tem até hoje a maior circulação do país, mesmo sendo um jornal já superado. Aqui em Cuiabá não há essa perspectiva. Os donos de jornais, com exceção dos que morreram, são competentes para tocar negócios de gado, de construção civil, mas incompetentes para dirigir um jornal porque não conseguem nem pagar salário para o trabalhador.

Cursar universidade é ter um título de nobreza

Uma tendência social que tem se estabelecido como regra nos últimos anos, pelo menos para as classes média e alta brasileiras, é que os filhos cursem uma faculdade e obtenham um diploma, imediatamente após saírem do ensino médio. Isso tem colocado pessoas cada vez mais novas na faculdade, muitas vezes indecisas, como é verificado pelo alto índice de desistências nos cursos, cerca de 20% nos últimos anos, de acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), não sendo o jornalismo uma exceção. Sobre esse assunto, Luciano Bittencourt, coordenador do curso de Jornalismo da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), constatou, numa entrevista ao site Observatório de Imprensa, em novembro de 2008, que ‘tradicionalmente, a escolha por um curso de nível superior é acompanhada de angústia e imaturidade. O sistema de ensino brasileiro é perverso nesse sentido. É o sistema que gera esses sentimentos[…]. As desistências são decorrência’. Você diria que os jovens que ingressam na universidade hoje estão maduros o suficiente para absorverem o conhecimento necessário a fim de exercer a profissão escolhida?

A.S. – Eu costumava pensar que a pessoa devia escolher uma profissão e começar a trabalhar aos 35 anos de idade. Antes disso você tem mais é que viver, não ficar preocupado se vai ter lugar no mercado ou não. Até os 35 a universidade deveria ser uma coisa aberta, utilizando-se do verdadeiro espírito da instituição, que é pública (no caso da UFMT). O jovem quer entrar e assistir aula de ciências sociais, jornalismo, pedagogia… Que vá. Não precisa de vestibular nem nada. Num determinado momento, a pessoa decide o que quer fazer, e então vai se profissionalizar naquilo. Mas a essa altura já teve outras opções, não vai ficar pulando de galho em galho, cometendo enganos porque não conhece essas opções. Nós judiamos muito da nossa juventude. Queremos embutir nela uma responsabilidade que não merece, de assumir as rédeas do futuro. Eles são o futuro no futuro, não o futuro hoje. Vivem sendo castrados, podados de suas vontades. Aí se revoltam e fazem besteiras. Quanto à sede de entrar na universidade, não é privilégio só da classe média e alta. E não acaba na universidade. No Brasil, a República dos Bacharéis, como já foi chamada, cursar a universidade é como ter um título de nobreza que evolui: primeiro eu sou biólogo, depois sou especialista em biologia, depois mestre e depois doutor, mas só tenho vinte e cinco anos e não sei o que fazer com tudo isso. E é cada vez mais cedo.

Discurso primário e imbecil

Quando essa geração que se forma hoje envelhecer e chefiar as redações jornalísticas, daqui a 20, 30 anos, que mudanças você antevê no tratamento das notícias? Como o jornalismo em si será encarado?

A.S. – Bola de cristal… (risos). Acho que eu tenho me surpreendido. Tem alunos que você olha e pensa que nunca serão jornalistas. Um deles, no meu caso, foi o Rodrigo Vargas, que hoje é correspondente da Folha de S.Paulo e um dos melhores repórteres do Brasil. Quando eu trabalhava (como editor-chefe) na Folha do Estado (jornal de Mato Grosso), uma ex-aluna pediu emprego e eu disse não, pois achava que ela não fosse competente. Depois de muita insistência, acabei dando uma chance e ela tornou-se uma das melhores repórteres da redação. Então não sou a pessoa mais adequada para fazer essa prospecção. Naturalmente, só vai estar trabalhando com isso daqui a 20, 30 anos, quem se dedicar à profissão. E nesse tempo, a pessoa estará fazendo um aprendizado. De 30 anos para cá por exemplo, melhorou muito. A tendência para frente é melhorar também. Hoje existem alguns imbecis por aí, nas redações, que fazem coisas saturadamente técnicas, e alguns gênios do jornalismo; sempre existirão esses, as exceções. O Rubens Valente seria um exemplo. Eu tenho medo que daqui a 30 anos a resistência seja a mesma, mas acho meio impossível. A ficha já caiu. Os jornais ensaiam mudanças, mas ainda não têm coragem para implementá-las de vez. Quanto à resistência, em dezembro de 2008 lançamos o livro do Rumos Itaú Cultural em São Paulo e um dos palestrantes foi o Otavio Frias Filho. Em 1984 ele era vanguarda do jornalismo, mas pela palestra que fez, parece que andou para trás. Não que sua obrigação seja andar para frente; ele é dono de jornal e sua preocupação principal é pagar funcionário. Mas insistia em falar que a Folha de S.Paulo é um jornal objetivo, reafirmava certos valores que sabemos hoje não existirem mais no jornalismo. Não deu nem para conseguir se chocar com o discurso, porque foi tão primário, tão imbecil, que você saía de lá meio surpreso com o contraste. Tomara que esse tipo de coisa aconteça somente com os donos dos jornais, e não com os jornalistas. Que o jornalista passe a ter um norte, uma perspectiva mais ampla, e que ele realmente acredite nas boas histórias e se esforce para contá-las.

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Escritor e estudante de Jornalismo da UFMT, Cuiabá, MT