Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O jornalismo está doente

Há um texto que trata de relatos jornalísticos – cuja leitura deveria ser mais difundida entre os profissionais e estudantes da área – que, ao referir-se à narrativa jornalística, afirma que a ela ‘faz falta o juízo, a mais exímia qualidade do intelecto, para que, por meio dele, as coisas dignas de crédito sejam separadas dos rumores infundados que se fazem correr: as leves suspeitas e as coisas e ações diárias sejam separadas das coisas públicas e daquelas que merecem ser contadas. Este juízo faltou em outros tempos, sobretudo aos monges, assim como a muitos escritores, ou seja, aos autores das crônicas, e também falta frequentemente aos redatores de periódicos quando procuram falar de banalidades e minúcias e omitem o que seria útil e fácil de ler, envernizam com documentos o que ouviram dizer por outros e, por fim, quando não têm coisas exatas, fazem passar por história as suspeitas e conjecturas dos outros’.

Esse comentário, extraído de oportuna tradução de Paulo Rocha Dias, poderia ser aplicado a boa parte das coberturas jornalísticas de hoje. Entretanto, ele foi escrito em 1690 por Tobias Peucer e faz parte da primeira tese sobre jornalismo de que se tem notícia.

Os rumores infundados, os fatos que não merecem ser contados, a omissão do útil, a imprecisão dos relatos e outras impropriedades que impedem o bom jornalismo puderam ser testemunhadas por todos aqueles que acompanharam a cobertura televisiva da Copa do Mundo de futebol vencida pela Espanha. Foi possível constatar que as emissoras de televisão não preparam os seus enviados para fazer uma cobertura jornalística competente, apesar de todas as equipes se auto-intitularem de ‘jornalismo esportivo’. Faltou pesquisa, curiosidade, empenho e coordenação à maioria delas.

Jargões sem nexo

Boa parte dos repórteres e narradores demonstrou não ter conhecimento da organização política da África do Sul e, por isso mesmo, não conseguiu identificar as suas capitais (Cidade do Cabo, Pretória e Bloemfontein). Johannesburg foi informada a milhões de espectadores brasileiros como sendo a cidade que centraliza todos os poderes políticos constituídos do país. A tardia retificação foi feita fora de contexto e, possivelmente, talvez tenha passado desapercebida.

As referências à cultura sul-africana foram lamentavelmente pobres. A maioria dos jornalistas de televisão concentrou comentários e informações em costumes locais sem contextualizar a formação dessas práticas, mas fazendo comparações indevidas com paradigmas de procedência estranha às onze etnias da África do Sul. O polígamo presidente Jacob Zuma, da etnia zulu, por exemplo, foi inspiração para muitas piadas dos comunicadores brasileiros, que ofereceram aos telespectadores uma visão distorcida da organização social e formação étnica das várias nações daquele país.

A contextualização também esteve ausente quando foram tratados os problemas sociais dos sul-africanos. Alguns profissionais parecem não ter arredado pé do hotel em que se hospedavam e do centro de imprensa. Pela exaltação ao fim do apartheid feita por alguns jornalistas, parece que negros e brancos convivem em perfeita harmonia no país; que os problemas de violência foram solucionados e que a educação é direito de todos.

Para a maioria das emissoras, principalmente para os canais abertos, o fato jornalístico relacionado à Copa do Mundo ficou restrito às partidas de futebol. Algumas matérias desses canais cumpriram a aventura de falar (superficialmente) sobre certos dados periféricos ao jogo, mas nada que viesse aprofundar o conhecimento do telespectador em relação a um mundo que não faz parte de seu horizonte.

Os equívocos desse ‘jornalismo esportivo’ não ficaram somente na falta de conhecimento e de sensibilidade dos profissionais. Ele se agravou com a substituição de jornalistas por jogadores e ex-jogadores que foram elevados (ou rebaixados) à categoria de ‘comentaristas esportivos’. Alguns desses novos cronistas, efetivados na função, tentam criar jargões e os repetem à exaustão: ‘É brincadeira’; ‘É um cracaço’; ‘Está na minha seleção’; ‘Deu de três dedos’. A inclusão de um ou mais desses jargões nas falas ocorre, em boa parte das vezes, sem o menor nexo com o tema. Encobre a falta de repertório linguístico e raciocínio lógico.

Alguns trabalhos salvaram o jornalismo

Para valorizar a presença do ex-atleta como comentarista ou repórter foram criados codinomes que lembram a sua passagem pelos campos ou qualificam a sua atuação nessa nova função: ‘o craque Fulano’; ‘Sicrano show’, ‘Beltrano, o completo’ e outras individualizações desnecessárias à profissão. Ao contrário do que se justifica, a presença dessa nova geração em nada contribui para a cobertura jornalística do fato porque os seus comentários são redundantes à narração e à imagem, pois não extrapolam a jogada. Na falta de lances dúbios, que são os verdadeiros motivos da existência desses comentaristas durante as transmissões dos jogos, são forçadas situações para levantar hipóteses e gerar polêmicas. Essas situações tipificam as banalidades e minúcias de que falava Peucer. Em outras palavras, esse tipo de cobertura não é considerado jornalismo desde o final do século 17.

E o jornalismo, depois da Copa, não ficou impune. Alguns desses olimpianos do esporte promovidos a jornalista permanecerão na tela. Na avaliação das emissoras, eles conseguiram cooptar o público, mesmo construindo frases como: ‘Quando eu era jogador eu se esforçava….’; ‘A gente fizemos muitos treinos…’ e outras construções linguísticas semelhantes.

Mas a cobertura da Copa não ficou, felizmente, restrita a essas barbáries. Em meio a toda banalização do jornalismo, surgiram algumas boas matérias. Uma entrevista feita em Orânia – uma pequena cidade habitada somente por brancos – foi emblemática como referência ao preconceito racial que ainda existe na África do Sul. O bom jornalismo também foi marcado por entrevistas com um guia do Museu do Apartheid e um membro da Igreja Reformada Holandesa, que apoiou a segregação e hoje é um dos baluartes em favor da convivência pacífica entre brancos e negros. Matérias sobre o Soweto: com lideranças comunitárias desse distrito negro; com líderes (brancos e negros) da luta contra o apartheid, ajudaram a salvar o jornalismo transmitido pela televisão durante a Copa. E foram feitas por jornalistas de profissão.

Aprovação bem-vinda

O saldo da cobertura revela que o jornalismo está enfermo. E a enfermidade parece estar agravada por uma profunda crise de identidade. Em determinados programas o doente satisfaz a máxima atribuída a César: ‘Ad populum panis et circensis.’ Em outros, transforma o ‘jornalista’ em bufão do Império Bizantino, levando-o a usar máscaras, perucas e a imitar olimpianos. Esses ‘profissionais’ não dominam a ética do carpinteiro a que se referiu Cláudio Abramo, portanto não sabem exatamente o papel que exercem. Por vezes parecem adotar a teoria do espelho atuando como um mediador desinteressado, mas jamais conseguirão entender a teoria do newsmaking porque não dominam a dimensão do fato jornalístico e se comportam como se fossem eles a própria notícia. A inconsistência do jornalismo praticado na cobertura da Copa pela maioria das emissoras não atendeu a qualquer dos pressupostos básicos que fundamentam a importância do jornalismo para a sociedade: o direito fundamental de ser (bem) informado e o interesse público.

Esse triste cenário indica que a aprovação, no dia 14 de julho, da exigência de diploma universitário específico para o exercício da profissão de jornalista, por uma comissão especial da Câmara dos Deputados, é bem-vinda. Em contra-partida, as escolas precisam adequar os seus programas de ensino às verdadeiras funções do jornalismo na sociedade moderna, preparando-se para formar jornalistas, e não produtores de mídia para o mercado.

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Professor de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP, São Paulo, SP