Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O movimento que incomoda a classe dominante

‘Malditas sejam todas as cercas!/ Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar!/ Malditas sejam todas as leis, amanhadas por poucas mãos para ampararem cercas e bois e fazer da terra, escrava e escravos os humanos!’

Estes versos de dom Pedro Casaldaliga representam o rancor que a realidade tem gerado entre aqueles que lutam para minorar a injusta distribuição de terras no Brasil.

Antes de apresentar os argumentos que justificam o título deste artigo, trago um pouco da trajetória histórica da estrutura fundiária no Brasil, desde os primórdios da colonização até a contemporaneidade, para termos uma melhor reflexão acerca da concentração latifundiária do país.

Pois bem, desde a colonização do nosso país observamos a desigual distribuição da terra. Visto que, primeiramente as terras, na época ainda sob o domínio de Portugal (por direito de conquista), foram divididas em capitanias hereditárias e doadas como sesmarias para nobres e pessoas de confiança do rei, os homens que formavam um grupo social de grande poder econômico e que buscavam no novo cenário político da época espaços que garantissem, sobretudo, a manutenção de seus interesses.

Anos depois, com a independência do Brasil, a legalização pela ‘posse’ da terra culminou com a Lei de terras de 1850 que transcrevia: ‘Fica o governo autorizado a vender as terras devolutas, em hasta pública, ou fóra della, como e quando julgar mais conveniente, fazendo previamente medir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras.’ No entanto, esse processo de medição das terras devolutas esbarrou nos poderes locais, na propina, na mobilidade das cercas e nos conchavos políticos, ficando, portanto, os próprios sesmeiros os donos absolutos das terras, legitimando assim a posse, independentemente do tamanho. Dessa forma, continuou a mesma lógica, só que, no primeiro momento era o rei que decidia a quem doar as propriedades, agora era a junta do Imperador que decidia a quem conceder uma propriedade, a quem vender as outras e a que preço vender as terras. Isso implica dizer que o governo continuou a possuir o controle absoluto da movimentação da propriedade da terra no Brasil. Essa inicial distribuição de terras gerou posteriormente latifúndios, deixando marcas profundas na distribuição de terras no país.

A impunidade no campo

Dando um salto para a constituição de 1967 na qual definia 3.000 hectares a área de terra devoluta máxima que poderia ser vendida a brasileiros natos e naturalizados. A distribuição continuou desigual, visto que, mesmo com a lei, o senado federal autorizou o governo do Mato Grosso a vender 1 milhão de ha de terras a apenas cinco proprietários (OLIVEIRA apud STEDILE, 2002). Valor este muito acima do permitido por lei. Diante disso e de outros fatores, a distribuição de terras no Brasil não mudou muito, pois este país continua sendo considerado uma das estruturas fundiárias mais desiguais do mundo. Segundo dados do IBGE, 2006 enquanto pequenos lotes com menos de 10 hectares ocupavam 2,7% da soma de propriedades rurais, grandes fazendas com mais de 1 mil hectares concentravam 43% do total. Isto é, enquanto muitos dispõem de pouca terra ou nenhuma, outros têm posse de milhares de terras, como o fazendeiro João Francisco Martins Barata, que possui 71.000.000 ha, área que é quase equivalente em tamanho à soma dos países da Bélgica e Holanda.

Essa introdução histórica e estatística foi para mostrar a desigual distribuição de terras que gerou uma elevada concentração fundiária dando origem a questão agrária, cujas relações econômicas, sociais e políticas foram e continuam sendo cristalizadas em uma estrutura agrária inibidora do desenvolvimento à população do campo. Sendo assim, quando se tenta formular ou executar ações que envolvam direitos de cidadania para uma população cuja marca principal é exatamente essa ausência de direitos fundamentais – pessoas cujo sistema capitalista inclui na condição desumana de escória – àqueles, os donos do capital, se sentem incomodados então reprimem qualquer ato que seja contra os interesses do capital, chegando até a criminalizar um dos mais importantes instrumentos de cidadania: o protesto.

Trago como exemplo de criminalização dos movimentos sociais, a repressão aos movimentos de luta pela terra, em especial o MST (por ser o de maior expressão), pelos donos do capital representados pela mídia massiva. Para uma melhor aproximação com a nossa realidade, na cidade do Recife, no dia 15/04/2010, o MST deu início à Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária, conhecida como abril vermelho, realizada em memória dos 19 companheiros assassinados no Massacre de Eldorado de Carajás em 1996. Esse protesto reivindica, segundo Cassia Bechara, dirigente estadual do MST de Pernambuco, o assentamento das 90 mil famílias acampadas em todo o país e o aumento de investimento em infraestrutura, além de apoio à agricultura familiar após a entrega da terra. A marcha também tem o caráter de protesto contra a criminalização dos movimentos sociais e contra a impunidade no campo.

Os que legitimam o cenário de desigualdades

No entanto, a visibilidade desse protesto do MST, construída pela mídia e pelo Estado, não foi nada boa, já que as reivindicações do MST, citadas acima, não chegaram aos ouvidos da sociedade. O que foi veiculado pela mídia massiva a respeito do ato foram apenas os pontos negativos da mobilização, como o congestionamento causado na principal avenida do Recife e o acampamento realizado no Incra. Como exemplo, trago uma reportagem da revista Veja publicada no dia 19/04/2010 : ‘Crime anunciado’ Escrevi `crime´ no título? Sim. É um ato criminoso invadir um órgão público, impedindo seu funcionamento e cerceando o direito de ir e vir. (…)’ Blog de Reinaldo Azevedo.

Essa reportagem criminalizou o ato de protesto do MST cerceando, assim, a atuação do movimento social pelo seu processo de organização e luta popular. Este é apenas um, dos que representam os meios de comunicação do Brasil e defendem a vontade dos grupos dominantes. Sendo assim, a mídia não-crítica voltada ao interesse do capital torna público esses interesses, e para isso, se apoderam da sua credibilidade diante da sociedade, por ser considerados uma categoria culta e imparcial e por estarem ligados diretamente ao povo através dos meios de comunicação. Então, por possuir o poder da informação que mobiliza a sociedade, a mídia consegue articular ações que desvirtuam o ideário dos movimentos sociais e limitam a veiculação de suas reivindicações e de sua existência organizada, alimentando a desmobilização das lutas sociais.

Enfim, o que a mídia ‘esqueceu’ de veicular na semana do abril vermelho sobre os trabalhadores rurais sem terra que estavam acampados na sede do Incra no Recife, além de suas reivindicações, foram as ações que eles realizaram durante o período que estiveram na cidade. Como por exemplo, os diversos mutirões de solidariedade com a sociedade. Onde um grupo de 50 trabalhadores estiveram na Ilha de Deus trabalhando em mutirão com moradores na limpeza do mangue que cerca a comunidade; Outro grupo foi à ocupação Josué de Castro, uma ocupação urbana de luta por moradia no bairro do Ibura, participando de um mutirão de limpeza do mato e dos terrenos; e outro grupo, de 70 trabalhadores rurais, esteve no Hemope, fazendo um mutirão de doação de sangue.

A mídia também deixa de informar a população que a luta pela reforma agrária, em seu contexto geral, busca reverter o processo de um país marginalizado pelos donos do capital e luta contra uma política que insiste em massacrar os que estão fora dos interesses da classe dominante, tentando assim, diminuir a desigualdade social do nosso país.

Mesmo com as formas de opressão e de dominação contra a reforma agrária, que se manifesta por meio de diferentes estratégias, que além de criminalizarem, estigmatizam, restringem e reprimem as ações dos movimentos sociais, é importante que a sociedade civil promova, cada vez mais, as lutas sociais na tentativa de garantir a construção de um modelo de agricultura que priorize a produção de alimentos e a distribuição de renda. Sem se deixar influenciar por aqueles que legitimam o cenário de desigualdades e reproduzem a lógica mercadológica do sistema capitalista.

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Estudante do 8º período Serviço Social –CCSA-UFPE