O objeto de estudo desta tese é a revista semanal Veja, publicada pela Editora Abril. O período analisado situa-se entre janeiro de 1989 e outubro de 2002 (4/1/1989 a 30/10/2002). O objetivo da investigação é deslindar os interesses de classe defendidos na linha editorial da revista neste período, identificando os sujeitos políticos, econômicos e sociais que se fazem representar na linha ideológica expressa pela revista. A revista é um instrumento que permite noticiar, defender e encaminhar ações de sujeitos concretos. Sendo assim, buscamos compreender quais são e a quem atingem os posicionamentos defendidos editorialmente, apontando sua relação com o desenvolvimento do sistema de reprodução e ampliação do capital.
A revista Veja age como partido político, na acepção gramsciana do termo. Suas táticas para alcançar tal objetivo são: formulação, organização, policiamento. Tudo isso pode ser sintetizado como sendo sua ação pedagógica, constituindo-se, portanto, num intelectual coletivo.
É parte da ação pedagógica da revista a constituição do sujeito Veja, como discutimos ao longo da tese. Para construir tal sujeito, a revista se apropria do trabalho jornalístico, que é editado, filtrando eventuais divergências e assegurando através de instâncias hierárquicas que o resultado expresse a posição de Veja. Dessa forma, o sujeito que aparece nas matérias é Veja, e não os jornalistas (mesmo quando assinam), uma vez que seus textos são refeitos, dando sempre o sentido que as editorias definem. Esse sujeito é a base a partir da qual Veja se expressa de forma unívoca, todas as matérias tendo sido ajustadas às suas condições.
É também a partir de tal sujeito que a revista propõe sua caracterização como liberal, procurando legitimar-se em noções como opinião pública, responsabilidade social, quarto poder. Veja diz ter a responsabilidade de narrar o presente, avaliá-lo, selecionar o que importa, sintetizar, explicar… Além disso, diz ser capaz de demonstrar o que seria a opinião pública. Ela se pretende sistematizadora do que seria bom para ‘os brasileiros’, o ‘Brasil’, ‘a sociedade’. Ao apresentar-se enquanto mera portadora, abrindo espaços para divulgar essa opinião pública, Veja também diz portar o que seriam os interesses ‘da nação’. Ainda que em mais de um momento a revista explicite que ela mesma forma essa opinião pública, para cuja formação sua atuação tem um peso crucial, a revista persevera na insistente repetição de que sua posição traduz os ‘interesses da sociedade’. De fundo, trata-se da formulação do senso comum sobre a realidade, selecionando, excluindo, definindo, massificando, simplificando, manipulando.
Este ‘sujeito Veja’ permite que a revista se coloque como um sujeito à parte do processo histórico, ocultando os reais sujeitos representados. Ao afirmar que fala em nome da sociedade, é como se ela própria não fosse parte da sociedade (que, por sua vez, é quem forma o próprio Estado). E como se não representasse sujeitos reais. Na sua definição, esses sujeitos são estanques e separados. Desta separação artificial deriva a noção de quarto poder, como se a imprensa (que não faria parte da sociedade) não estivesse representada também no Estado, não fosse uma empresa que tem interesses econômicos e de classe. Este veículo de imprensa quer mostrar-se não apenas como neutro e independente, mas fora do processo, sem vínculos, sem projetos. Por isso é tão repetida a idéia de que a imprensa seria o quarto poder, aquele que vigiaria os demais poderes. A concepção gramsciana que sustenta nossa análise não permite manter esta divisão estanque, pois no sistema capitalista Estado e sociedade se confundem, e os poderes convergem a um mesmo sentido, a dominação de classe. A análise da postura de Veja ao longo dos anos 1990 nos mostrou que é correto dizermos que ela vigia o poder. O erro está em dizer que faz isso ‘em nome de todos’. Se Veja vigia, e faz isso com muita propriedade, o faz em nome de um programa e um projeto muito bem definido por ela e seus estados-maiores formuladores.
Porta-voz do Fórum
Assim como ocorre com os demais partidos formais, existe para Veja um projeto e um programa de ação que são estabelecidos em conjunto com outros grupos. A revista assume o papel de estado-maior de um projeto discutido no âmbito do Fórum Nacional, entidade vinculada ao Instituto de Altos Estudos, coordenado pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso. Dele fazem parte remanescentes de vários grupos de organização da direita que se articularam em torno de um projeto, vinculados ao complexo Ipes/Ibad/ESG e posteriormente ao Movimento de Convergência Democrática. Eles foram a base intelectual do projeto econômico posto em prática pela ditadura militar. Após a democratização, o Fórum se colocou como portador do moderno e de um programa para o Brasil. Sua atuação foi paralela à constituição do Partido da Social Democracia Brasileira, o PSDB. As duas agremiações compartilham alguns membros de direção, com destaque para Fernando Henrique Cardoso.
O Fórum propunha, em inícios de 1990, a prática de um aggiornamento, que constituiria uma contra-reforma moral e intelectual, resumida na sua teorização sobre o ‘moderno’. Seu projeto buscava traduzir a experiência do reaganomics e thatcherism para a realidade brasileira. Em torno disso, buscou fundar a noção reiterada de que ‘não há alternativas’. Estabeleceu-se uma luta constante para apontar rumos e caminhos, assumindo papel dirigente diante das crises políticas que envolviam outros grupos: os partidos formais, o Congresso Nacional, outros grupos articuladores. Buscava, portanto, administrar os conflitos intra-classe dominante, apontando uma direção para a dominação, sistematizando a coerção e defendendo formas de repressão.
O Fórum teve, portanto, papel de intelectual coletivo, reunindo os mais diversos membros da sociedade civil e política, incluindo-se empresários e governantes, e contando com financiamento do grande capital. Eles se reúnem, divulgam pesquisas previamente encomendadas a seus intelectuais, debatem, publicam e propõem encaminhamentos necessários à ‘nova ordem’. Assim agiram ao longo da década de 1990, o que foi plenamente apoiado e divulgado por Veja, em continuidade à ação gerenciadora dos membros desse grupo, propagador de um programa que há muito vinha sendo implementado no país: a abertura ao capital associado, o fim das restrições ao capital externo, a transformação de parcela da empresa nacional em parte dos conglomerados transnacionais, entre outras.
Destinatários e interlocutores
Justamente por ser um instrumento de defesa incondicional da abertura da economia, Veja colocou-se como portadora dos ‘interesses nacionais’, em sintonia com o Fórum Nacional. Em vários momentos buscou legitimar-se ‘na sociedade’, na ‘opinião pública’, no ‘país’, para colocar-se como intérprete desses supostos interesses (que ela mesma formula). Veja se colocou contra todo e qualquer elemento impeditivo do processo de desregulamentação. Mas, mais do que combater os movimentos sociais – o que também fez – combateu as manifestações do ‘atraso’. Os sujeitos do atraso por ela nomeados foram os ‘defensores do Estado’, que seria sempre ineficiente; os industriais defensores do que seria, segundo ela, a atrasada indústria nacional; e também os movimentos sociais e trabalhadores organizados em ‘estruturas sindicais falidas’. Veja se constitui, se expande e se sustenta dessa forma: colocando-se como defensora do que ela chama de interesses nacionais, mas desde sempre vinculada a um projeto do capital, sem fronteiras e que tem na fase em análise um estágio de expansão suas áreas de atuação.
A atuação se deu nos múltiplos aspectos da realidade: político, cultural e comportamental. Mas a questão principal se colocava sobretudo como econômica, pois reiterava-se a necessidade de estabelecimento de consenso em torno do projeto, utilizando táticas de convencimento que propunham um padrão de pensamento para o qual a única verdade permitida é o mercado. Ele moveria tanto a macroeconomia como as razões dos indivíduos isolados, ‘em qualquer lugar do mundo globalizado’. Como aponta Ramonet, o pensamento único reproduz um economicismo vulgar. Cria-se uma visão de mundo pela qual a ação humana sempre deve buscar o lucro, a vantagem, o ganho pecuniário. E para isso, os sujeitos-alvo (gerentes) devem conhecer uma série de regras, que são didática e repetidamente ensinadas por Veja. Essa visão de mundo deve ser compartilhada, e o pensamento único é a sua forma de expressão: não basta apresentar sua visão, é preciso colocá-la como a única possível, destruindo o contraditório. A revista Veja se colocou como portadora desses ideais. A sintonia de projeto e programa entre a revista e o Fórum Nacional é nítida, e remete ainda a outros estados maiores de nível internacional.
Não nos propusemos averiguar quem constitui o público-leitor da revista, pois as fontes pesquisadas não nos permitem isso. É possível, e nos interessa, apontar quem foram os destinatários, ou ainda, os interlocutores a quem a revista indicou estar se referindo em suas falas e a quem prioritariamente se dirigiu. Para isso é necessário dar conta de duas ordens de questões: a quem a revista diz que fala; e a quem sua fala se dirige prioritariamente, que não é necessariamente o ‘público-leitor’ assinante (entidade difusa). O primeiro campo esteve presente ao longo da tese, quando percebemos a revista dizendo que seu público é a ‘elite do país’, ou ainda a ‘classe média’. Parte da literatura disponível defende que a revista fala para ‘a classe média’. A pesquisa mostrou que Veja busca, sim, atingir uma ampla categoria de leitores dos setores médios, incluídos aqueles que estão no seio da reestruturação produtiva e necessitam aprender a moldar novas formas de trabalho. São esses também os sujeitos das novas formas de comportamento e consumo englobados na ‘sociedade do espetáculo’. Esse é o público alvo do gerenciamento em torno dos interesses do capital: as reengenharias, as adequações ao desemprego, que devem aparecer sempre como um desafio pessoal.
Cobrança sistemática
Mas a revista não se restringiu a esse público. Ela teve uma ação sistemática de diálogo com a sociedade política e civil. Além de tentar pautar temas que seriam discutidos no Congresso, ela buscou propor e encaminhar saídas concretas para os problemas políticos e econômicos que foram colocados nos diferentes contextos. Veja preparou suas campanhas sobre os grandes temas: a ‘desmoralização’ do serviço público; a ‘falência das estatais’; as reformas constitucionais; a abertura de capitais. Ao mesmo tempo em que buscava o apoio de seus leitores em troca de sua ‘informação’, cobrava uma atuação específica e nitidamente direcionada do Congresso Nacional e do Poder Executivo.
Houve sempre uma coerência de raciocínio no que fundamenta a posição da revista, que é dada sempre pelos interesses de abertura de capital, privatizações, oligopolização, enfim, os interesses do capital financeirizado que constituiu o cerne do neoliberalismo e que são também os principais anunciantes da revista. Mas não se trata de uma relação automática de defesa dos anunciantes, e sim uma coerência entre quem anuncia e a linha editorial. Não é o fato de ‘ser empresa’ que define a razão de ser de Veja e faz com que ela ‘diga o que os anunciantes querem’, e sim o fato de ser partido, de estar a serviço concreto dos interesses do capital que anuncia (que também são os seus). Não é por acaso que ela se constitui na maior conta publicitária do mercado brasileiro de revistas.
A ação partidária se deu na permanente campanha política travada por Veja para pressionar o Congresso Nacional e o Executivo a aprovarem leis de desregulamentação e abertura ao capital externo. Com relação a eles, há uma cobrança sistemática de atuação. Para tanto, Veja busca criar uma opinião pública (senão de toda a sociedade, ao menos de extensas parcelas sociais que procura atingir) que lhe dê sustentação, muitas vezes chamando atenção do governo e do Parlamento para a necessidade de que eles, em conjunto com a revista, consolidem tais posições: criem opinião pública para aprovar seus projetos.
Impeachment e ‘independência’
Em alguns momentos a revista propõe mostrar o que faz o próprio Congresso, por exemplo, ao fazer pesquisa de opinião sobre o que ‘o Congresso pensa’ acerca de determinados assuntos. Neste caso, a pesquisa serve para identificar as possibilidades de aprovação dos projetos em sintonia com o seu, pressionar os parlamentares e denunciar aqueles ‘atrasados’ que não se apresentavam em pleno acordo com as medidas globalizantes. Também o Executivo é alvo de cobrança cerrada. Além de entrevistas (e no caso de Fernando Henrique Cardoso, Veja foi uma tribuna aberta para ele), há também espaços de opinião cedidos a outros intelectuais em sintonia com o projeto, seja nas páginas amarelas, seja nas seções assinadas ou em outros espaços editoriais.
Embora a sintonia com Fernando Henrique Cardoso seja indiscutível, seria um erro definir Veja como simplesmente governista, pois o apoio aos governos que ela oferece está em relação direta com o cumprimento de determinadas condições por ela estabelecidas. A relação da revista com os diferentes governos brasileiros teve uma linha de coerência inarredável em torno de seu programa, com embates permanentes na busca de sua aplicação. Mesmo quando há apoio, a cobrança é permanente e sistemática contra quaisquer desvios. Sua ação chega a ser de policiamento, denunciando em suas páginas qualquer medida contra o programa em curso, ou ainda buscando desestabilizar medidas governamentais, como foi prática durante o governo de Itamar Franco.
Durante o governo Collor se acirraram essas práticas, em consonância com o crescimento de vendas da revista. O impeachment viria a dar impulso à propaganda da revista pregando sua suposta independência. No entanto, demonstramos que a sua atuação foi sistemática em torno da manutenção de Collor no governo, em nome da governabilidade e da estabilidade, imprescindíveis para o aprofundamento do programa neoliberal. Apenas quando se tornou insustentável, às vésperas do impeachment, Veja mencionou uma sugestão de renúncia do presidente, quando o clamor social exigia sua punição. A preocupação que se colocava era empossar Itamar Franco, evitando riscos de mobilizações populares que exigiam novas eleições.
Gerenciamento do capital
Durante o governo de Itamar Franco, a posição da revista se manteve coerente na defesa do programa neoliberal. Embora Franco tenha sido eleito no mesmo processo eleitoral que Collor, quando finalmente a revista se decidiu pela defesa do impeachment, apoiou incontestavelmente a nomeação de Franco. Como no governo anterior, buscou comprometer o novo presidente com o mesmo projeto que estava sendo posto em prática e fora parcialmente interrompido pelas denúncias de corrupção. Embora Franco coloque em práticas importantes medidas neoliberais, dando continuidade ao programa de privatizações, Veja foi extremamente crítica com ele, e não conseguiu impor sua posição da mesma forma que fizera com Collor. Denunciou várias vezes a proximidade do governo com setores ‘atrasados’, especialmente a Fiesp, que estaria querendo ‘voltar no tempo’ defendendo uma política industrial. Foi com uma marcação cerrada que a revista seguiu os passos do governo e sua aproximação com alguns setores industriais paulistas. Das suas medidas a primeira enfaticamente elogiada por Veja foi a escolha de Cardoso para o Ministério da Fazenda, seguida da criação do Plano Real. A partir daí, passa a tratar como interlocutor não o presidente, mas o ministro, a quem faz o possível para eleger sucessor.
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso há uma plena convergência de interesses e posições entre o governo e a revista. É insuficiente dizer que o presidente era influenciado pela revista; tampouco o contrário resolve. Há um sentido dirigente compartilhado pelos dois (embora não formalmente), que são vinculados ao mesmo think tank, o Fórum Nacional (é relevante lembrar que FHC era do Conselho Fundador do Fórum Nacional). Foi neste governo que se consolidou a opção neoliberal no plano da construção de políticas públicas condizentes com ela. E foi nele também que ocorreram as grandes crises do capital: mexicana, asiática, russa, brasileira. Nestes momentos de dificuldades, a revista se colocou ao lado do governo, apoiando sempre suas medidas. A solução para os problemas gerados pela aplicação das medidas neoliberais apresentada foi sempre o aprofundamento dessas mesmas medidas.
Um dos eixos norteadores de ação de Veja foi o gerenciamento do capital. Foram sistemáticas as ações para formar os organizadores das mudanças necessárias à ordem neoliberal. Trata-se de ensinamentos àqueles que seriam os pequenos e médios gerentes dessas medidas, que precisam aprender e introjetar as ordens, tornando-se capazes de acreditar que a única saída é a demissão, o enxugamento de postos de trabalho, o fim de direitos e o aumento de obrigações por parte dos trabalhadores que eles administram. Essa ação se dá em conjunto com os outros veículos da Editora Abril, que complementam esses ‘ensinamentos’ com a revista Exame, por exemplo.
Admirável mundo novo
Os porta-vozes do neoliberalismo foram sempre privilegiados, com o sentido de difundir e assegurar a execução das novas formas propostas para gerenciar o capital. Ao longo de toda a década, a cada embate político e revés econômico, houve novas matérias, novas entrevistas, buscando o convencimento, que se completam com o quadro político geral, com Veja sempre buscando ‘apontar o rumo’. Aparecem de forma eventual conflitos com o centro do imperialismo, os Estados Unidos, enquanto centro financeiro mundial. Lá surgiram ameaças concretas de abalo ao sistema, nas crises da bolsa, no escândalo da Enron e da WordCom. Mais uma vez a revista girou em torno de si mesma, sem discutir o âmago da questão, estimulando uma fuga para adiante do capital, o livre mercado a tudo [deveria] regular, exceto, é claro, as exigências que o próprio capital financeiro impunha, tanto no âmbito da transformação das políticas anteriores, quanto no estabelecimento de políticas de suporte e garantia para seus momentos de crise. Estes eram, aliás, os pontos nevrálgicos do sistema.
A atuação pedagógica de Veja foi imprescindível, como a qualquer partido que propõe formular e organizar e necessita transformar o seu projeto em senso comum. A revista tem assumido para si uma dupla responsabilidade: a atuação como educadora continuada, que tem como alvo os profissionais já formados ou em formação (nível superior); a atuação visando ampliar seu público através de projetos diretamente voltados ao público estudantil (fundamental e médio). Trata-se da revista (e sua editora) assumindo para si o papel da escola, ou ainda, complementando o seu papel de educar para o capital. Por isso também há uma sistemática definição sobre a história vivida, que nesta concepção deve ter sempre o sentido da naturalização das relações de exploração.
Este sentido pedagógico nos parece que se centra em três aspectos. O primeiro deles é a cobertura internacional da revista. O segundo é a cobertura ‘cultural’, que propõe a formulação de um admirável mundo novo. O terceiro é a defesa incondicional de que não há alternativas, como uma forma de legitimar a repressão aos movimentos existentes. Por isso, Veja se constitui numa excelente fonte para o estudo do senso comum formado nos anos 1990.
Pensamento homogeneizador e linear
A cobertura internacional tem um papel altamente relevante na construção da credibilidade jornalística da revista. Não se trata da seriedade jornalística, mas da crença disseminada de que as notícias internacionais seriam mais neutras, e que ao menos neste campo Veja seria mais informativa e menos parcial. Quando fatos relevantes no cenário internacional acontecem, há indícios de que a vendagem da revista aumenta, como ocorreu nos episódios de 11 de setembro de 2001.
Este tipo de cobertura costuma ter grande aceitação para a ‘atualização’ dos professores do ensino fundamental e médio, que encontram na revista uma forma mais fácil e passível de ser levada à sala de aula, sobre os fenômenos da história imediata. Aqui também ela aparece como neutra, portadora da ‘notícia’. No entanto, o que a pesquisa nos mostrou é que a cobertura de Veja sobre acontecimentos internacionais é construída segundo o modelo de propaganda: o privilégio de fontes oficiais, as razões do império como naturalmente hegemônicas, o controle das vozes dissonantes, o anticomunismo acirrado. Os diferentes casos analisados demonstraram uma coerência com a preservação da hegemonia norte-americana como gendarme mundial, vista como indispensável para a manutenção dos padrões de acumulação e reprodução do capital.
A formulação de um ‘admirável mundo novo’ é o outro eixo de ação pedagógica. Os temas ‘culturais’ não se dissociam da economia política, posto que são essenciais para a manutenção e reprodução do sistema do capital. Eles permitem a elaboração de uma contra-reforma moral e intelectual, agindo no sentido de definir um estilo de vida, central para o projeto político e econômico gestado em Veja. Ao mesmo tempo, cumprem uma função peculiar, ao expor alguns dos aspectos contraditórios da realidade, aqueles elementos que o discurso apologético não tem como negar, organizando-os entretanto segundo os parâmetros de um pensamento homogeneizador e linear, que obscurece a percepção do seu sentido contraditório: a única voz ouvida deve ser a sua e de seus agentes autorizados.
Repressão e filantropia
Os temas das megalópoles, da miséria, da violência são reduzidos em sua importância social, sendo apresentados como resultado de opções individuais. E é neste campo que a revista busca intervir, pois evidentemente não está se dirigindo aos próprios miseráveis. Contra essa realidade é proposto um mundo de aparente harmonia, o mundo do espetáculo. A homogeneização é proposta nos diversos níveis de consumo: tecnologia, saúde, esporte, cultura, família. Todos são redutíveis a mercadorias na opção de vida que é apresentada como única possível por Veja.
A ação pedagógica e partidária tem ainda um aspecto crucial: a defesa irrestrita da repressão. Ela exige que o Estado cumpra seu papel policial, pertinente à sua forma capitalista. Um dos eixos do Estado neoliberal é o reforço de sua ação policial, o desmantelamento dos movimentos sindicais, a cooptação dos movimentos sociais. Para isso há uma ação sistemática no sentido de desmoralizar a ação coletiva dos trabalhadores. A destruição ideológica das alternativas foi o elemento central na atuação da revista com relação aos movimentos e às lutas sociais. Por isso, no seu discurso monocórdio, para Veja não pode haver alternativa, do ponto de vista do seu projeto político. Decerto, ocorreram mudanças programáticas, que procuravam adaptar o projeto às conjunturas, mas sua posição sempre se manteve coerente com o projeto neoliberal.
Ora, as alternativas se criam pelos diversos movimentos, organizações, partidos, que se colocam contra a ordem vigente, aos quais a revista combate no seu discurso unilateral, chamando a atenção de seus aliados de classe, e procurando atingir especialmente a classe média, naturalizando uma suposta ‘necessidade’ da repressão e da filantropia. Assim, ao mesmo tempo, prega a liberalização e exige a repressão, usando todas as táticas que estão ao seu alcance para deslegitimar os movimentos sociais de cunho anticapitalista. Ela vai criando uma interpretação da história dos movimentos, permanentemente, dizendo que está noticiando e apresentando a verdade. Relega ao esquecimento o que quer ocultar, deturpa e manipula quando não pode esconder.
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Historiadora, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná