Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O pecado (quase) mortal da Bloomberg

Virou notícia no mundo todo o obituário de Steve Jobs publicado erroneamente pela agência Bloomberg no dia 28 de agosto. O erro da agência não é novidade no meio jornalístico: não são tão raras as vezes em que uma personalidade foi ‘morta’ antecipadamente pela imprensa. A falha é inerente à atividade humana. No caso da Bloomberg, as observações contidas no texto publicado – sobre pessoas na Apple a serem contatadas no dia da morte de Jobs e as informações factuais substituídas por espaços ocupados por XXX – aumentam ainda mais o impacto do erro cometido.

Mas é importante ressaltar aos leitores em geral – e àqueles jornalistas que ainda não passaram por uma redação – que é prática comum a produção de obituários. Não, não se trata de qualquer tipo de mau agouro por parte de jornalistas (embora seja verdade a máxima do jornalismo americano de que good news are bad news). A preparação de um obituário, assim que determinada personalidade apresenta sinais de graves problemas de saúde, é que permite aos veículos de comunicação – especialmente aos jornais, que têm seu dia-a-dia tão corrido – uma cobertura da carreira dessas pessoas à altura de sua importância.

Grande Otelo

Os exemplos de como a imprensa tratou as mortes do compositor Dorival Caymmi e do banqueiro Olavo Setúbal são emblemáticos. Boa parte do material publicado já estava antecipadamente preparada pelas redações. E não há nenhum mal nisso. Da mesma forma que uma redação planeja antecipadamente grandes coberturas – como uma Olimpíada, uma Copa do Mundo ou as eleições – as edições com obituários de personalidades são planejadas (e escritas) com antecedência. Trata-se, é verdade, de uma postura fria por parte do jornalista, mas compreensível.

Certa vez, quando trabalhava na área de Cultura do Jornal da Tarde, à época em que o jornal estava completando 30 anos de fundação, destaquei uma repórter para levantar as grandes matérias produzidas naquele período, para constar de uma edição especial comemorativa. A repórter voltou com uma constatação: a maioria das grandes (e boas) matérias publicadas eram obituários de grandes nomes do mundo artístico – como o compositor Cartola (1980) e o escritor João Cabral de Melo Neto (1999). O episódio mostra que a antecipação no preparo do material de arquivo (escolha de fotos e elaboração do texto) atinge seu objetivo: resulta em uma boa cobertura.

Apesar de bem-sucedida, a estratégia da preparação antecipada de material pode gerar outros dilemas para os editores. Também no JT, vivenciei uma experiência peculiar a respeito. Em 1992, o ator Grande Otelo foi internado às pressas com suspeita de problemas no coração. Destacamos, sem hesitar, o crítico Edmar Pereira para produzir o obituário do artista (Edmar foi um dos melhores críticos de cinema da história do jornalismo brasileiro). Otelo recuperou-se, e ainda teve saúde para fazer uma participação especial na novela Renascer, de Benedito Ruy Barbosa, no ano seguinte. Mas o destino fez com que o jornalismo perdesse o talento de Edmar Pereira em meados de 1993.

Pior erro é falta de apuração

Em novembro daquele ano de 1993, Grande Otelo sofreu um ataque do coração fulminante, na França, onde estava para receber uma homenagem do Festival de Nantes, e a redação viu-se diante de um dilema. Ou publicava sem assinatura o texto de Edmar Pereira, que estava brilhante como sempre (e que poderia ser identificado como tal pelos leitores mais atentos); ou mostrava transparência para os leitores, revelando que o texto fora escrito pelo crítico também já falecido. A decisão foi difícil e ousada, mas acertada: o JT ‘explicou’ ao leitor que a matéria sobre a carreira de Grande Otelo havia sido escrita pelo crítico Edmar Pereira um ano antes, por ocasião da internação de Grande Otelo. Acabou resultando não apenas num texto memorável, como funcionou como uma ‘homenagem póstuma’ a um de seus maiores críticos.

A produção de uma matéria antecipada, com o obituário de uma personalidade, não significa nada além de um planejamento antecipado de edições. Não significa mau agouro e tampouco mau jornalismo. O erro cometido pela Bloomberg foi grave e denota mais um problema estrutural das redações, decorrente da redução de pessoal e da chamada ‘juniorização’.

Pior que esse erro são os erros de apuração que podem fazer com que uma notícia errada acabe publicada. Em 1999, chegou às redações dos jornais a notícia de que o escritor Zuenir Ventura havia morrido em um acidente de carro na Lagoa Rodrigo de Freitas. O próprio Zuenir tratou de ligar para as redações, de forma bem-humorada, desmentindo a notícia de sua morte. Explicou que o primeiro repórter telefonou para um número que não mais lhe pertencia e a mulher que atendeu ao telefone se identificou como empregada da casa do autor de 1968 – O ano que não terminou e deu a informação errada do acidente.

Como àquela época a internet engatinhava no Brasil, evitou-se uma propagação maior da notícia falsa. Mas mesmo se o próprio Zuenir não tivesse tratado de ligar para as redações desmentindo a própria morte, manda o bom jornalismo que se apure com rigor qualquer informação antes de publicá-la.

O pecado da Bloomberg foi grave, mas pior é o erro da falta de apuração da notícia.

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Jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero, São Paulo, SP