O Enade deste ano, aplicado dia 8 de novembro a mais de um milhão de alunos de diversos cursos de graduação, provocou forte reação da nossa imprensa, com acusações de manipulação ideológica associada à prática de regimes totalitários. À parte o exagero que sempre acompanha denúncias desse tipo contra o atual governo, de fato muitas das questões evidenciam a intenção de fazer propaganda, que, de tão primária, é mesmo constrangedora. Uma dessas questões, discursiva, ainda na parte de ‘formação geral’, chega ao requinte de enaltecer o MEC e o próprio Enade como critério de aferição da qualidade dos cursos, a despeito do boicote promovido sistematicamente por uma parcela de estudantes que, em anos anteriores, já combatia o ‘provão’.
Entretanto, além de resvalarem para uma clara rejeição a qualquer crítica ao papel da imprensa, que uma prova destinada a alunos de jornalismo poderia perfeitamente contemplar, os três principais jornais do país deixaram de lado outro aspecto de absoluta relevância, que demonstra a precariedade da elaboração do exame e sua incapacidade para avaliar ‘conhecimentos gerais’ ou competências específicas de nossos universitários.
‘Verdadeiras’ ou ‘falsas’
O absurdo é flagrante logo na primeira questão deste Enade, que exibe duas charges de um mesmo autor, uma sobre o esvaziamento do campo, outra sobre o inchaço das cidades. Explorando a relação de causa e efeito que marca a concepção de boa parte das perguntas, associa as hipóteses de múltipla escolha com indagações sobre a veracidade ou falsidade… das charges!
É possível perguntar se uma charge é verdadeira ou falsa?
A segunda questão procura levar o estudante a concluir que há uma correlação entre o trabalho infantil, de acordo com um gráfico do IBGE, e o ingresso de crianças no ‘mundo do crime’, através de uma charge que mostra um menino ao pé de uma favela, armado e encapuzado, com a frase ‘meu primeiro emprego’. A justificativa: ‘Ambos se associam ao mesmo contexto de problemas socioeconômicos e culturais vigentes no país’. Não é muito difícil perceber que nesse argumento cabe exatamente qualquer coisa: a rigor, a marginalidade social, a pobreza extrema, o desemprego e o subemprego estão no ‘mesmo contexto’ dos elevados lucros do mercado financeiro e do alto padrão de consumo das ilhas de prosperidade nas grandes cidades do país. Mas é muito provável que a correlação estabelecida na opção ‘correta’ decorra da adoção de uma antiga concepção, hoje muito questionada, que associa pobreza e criminalidade.
Um detalhe curioso: numa prova a cargo do governo federal, o gráfico de uma instituição oficial (o IBGE) é retirado não da fonte original, mas de uma notícia do site da Folha de S.Paulo. E não há qualquer menção ao período a que se refere.
As armadilhas da ‘marolinha’
Na parte específica sobre Comunicação Social, os problemas prosseguem. A já famosa questão 19, que causou tantos protestos dos nossos grandes jornais por destacar a ‘previsão’ de Lula sobre o impacto da crise mundial no Brasil – que aqui não seria um ‘tsunami’, mas uma ‘marolinha’ –, não seria criticável apenas pelo elogio à figura do presidente, mas principalmente por outros dois motivos: primeiro, o próprio argumento do texto, que afirma: ‘Agora é a imprensa internacional que lembra e confirma a previsão de Lula’. Será a ‘imprensa internacional’ (ou ‘estrangeira’, como seria correto dizer) confiável e fidedigna na cobertura de países periféricos como o nosso? Acaso os principais jornais, revistas e redes de televisão estrangeiros não reverberam interesses de empresas e governos de seus próprios países ao tratarem da economia brasileira? Por que não considerar a hipótese de que o enaltecimento de Lula, o ex-operário que encanta as elites européias e norte-americanas, faz parte de um script guiado por interesses de outra ordem?
O segundo motivo é inerente à concepção de uma questão como esta. A pergunta proposta, sobre a maneira mais adequada de se classificar a atitude de boa parte da mídia brasileira em relação à ‘marolinha’, comporta inúmeras interpretações, devido exatamente à polêmica que envolve. Como definir – espertamente, aliás, porque vale a pena exibir tolerância – como ‘correta’ a opção de que houve ‘livre exercício da crítica’? Pelo contrário, de acordo com a sugestão do próprio enunciado, o estudante que quisesse acertar a resposta haveria de buscar alguma opção condenatória da imprensa, ainda que não concordasse com a alternativa escolhida.
Profusão de incongruências
Finalmente, na última parte, destinada apenas a alunos de Jornalismo, os disparates são tais e tantos que fica difícil imaginar que os responsáveis pela formulação das questões sejam professores experientes no ramo. Apenas alguns exemplos:
1.
Sobre a clássica (e polêmica…) separação entre informação e opinião (questão 28), por que afirmar que os textos de opinião estão ‘principalmente na página de editoriais’? Pior: como definir como certa a opção de que, ao redigir seus textos, ‘o repórter reproduza fielmente a opinião de especialistas no assunto’? À de não especialistas, não precisa ser fiel? Só ‘especialistas’ servem como fonte?2.
A questão 30 reproduz a capa de uma edição do Jornal de Angola – e não de qualquer jornal brasileiro, não utilizado talvez para evitar qualquer sugestão de favorecimento a alguma empresa jornalística –, para, a partir daí, verificar a capacidade de identificação de alguns aspectos básicos dos elementos que compõem um jornal impresso. Então fala-se em ‘manchete principal’. Somos levados a crer na estranha hipótese da existência de ‘manchetes secundárias’.3.
O tema ‘direito de resposta’ é reconhecidamente controverso, ainda mais depois que o Supremo Tribunal Federal derrubou a Lei de Imprensa. No entanto, a questão 35 sugere a situação hipotética de um jornalista que publica num blog matéria ofensiva a uma pessoa e indaga, ‘considerando-se o direito legal de resposta’, qual a atitude correta a ser adotada pelo jornalista. Porém, qual é exatamente o direito de resposta aplicável na internet? Como responder a essa pergunta, a não ser em tese, considerando-se genericamente o direito constitucional e apostando-se no comportamento ético do jornalista – que, se existisse, provavelmente evitaria a própria publicação da matéria ofensiva?4.
A questão 37, sobre assessoria de comunicação, indaga qual a melhor conduta dos profissionais da área diante de ‘momentos de crise’. Resposta: ‘estar atendo (sic) aos acontecimentos e não mentir jamais‘ (grifo meu). Quem sabe foi uma pausa para descontração, para divertir os estudantes já cansados perto do fim do exame.5.
Para concluir, uma das questões discursivas (nº 38) que também repercutiram negativamente nas reportagens sobre o Enade: a que caracteriza muito esquematicamente um ‘jornal popular’ e outro ‘de grande porte’ – oposição já por si problemática, para não dizer equivocada porque o que é de ‘grande porte’ é a empresa, que frequentemente publica jornais ‘de referência’ e ‘populares’.Casos condenáveis de manipulação
Assim se estabelecem as características de cada um: o ‘popular’ seria sensacionalista, irresponsável, inventaria fatos e se preocuparia apenas em ‘faturar’ e agradar a um determinado público; o ‘de grande porte’ seria ‘considerado mais responsável’, mas ‘por vezes’ esqueceria ‘o verdadeiro valor da informação, manipulando a notícia em favor de outros interesses empresariais, comerciais, financeiros etc.’, podendo, por isso, ‘incorrer em muitos erros’. A tarefa é: ‘Comparar as linhas editoriais, apontar as principais inconsistências desses veículos e propor uma inovação que signifique um avanço na relação mídia e sociedade’.
Tudo isso em dez linhas.
Seria preciso um estudante especialmente qualificado para realizar essa proeza de capacidade de síntese, resumindo em tão breve espaço uma tese de doutorado. A não ser que se trate de um convite para a reprodução dos conhecidos chavões sobre ‘manipulação’ e ‘democratização da comunicação’.
A crítica dos nossos grandes jornais (perdão, dos nossos ‘jornais de grande porte’) investiu previsivelmente na condenação do enunciado fixando-se na rejeição às hipóteses de invenção ou manipulação dos fatos. Bobagem: sobre invenção, basta lembrar da loura fantasma, do bebê diabo ou do chupa-cabra, para ficarmos apenas em alguns exemplos da fértil imaginação dos jornalistas da imprensa popularesca, tão ao gosto de seu público. Quanto à manipulação – isto é, à deturpação –, este Observatório está repleto de artigos bem fundamentados que apontam diversos casos condenáveis no cotidiano da nossa imprensa ‘de referência’.
Tentativa canhestra
A primeira edição do Enade para Comunicação Social, em 2006, já permitia identificar esses problemas. O que dizer, por exemplo, da questão (de ‘formação geral’) que reproduzia um fragmento de quadro (uma das ‘marinas’ de Pancetti), com três coqueiros, um barco estacionado na areia, um barquinho à vela ao fundo, mar e céu azuis, e pedia que a essa imagem fosse associado o trecho de um dos cinco versos da múltipla escolha, ‘aquele que mais se aproxima(sse)’ da tela? Qual será exatamente o objetivo dessa espécie de psicotécnico universitário? Verificar se os estudantes sabem distinguir coqueiros de elefantes? Que literalidade é essa? Que espécie de compreensão sobre estética, literatura e arte fundamenta os formuladores de uma questão como essa?
Mais adiante, o que dizer de uma questão que mistura uma charge obviamente satírica sobre a guerra de audiências (que lida de maneira humorística com o título ‘Sexo e violência na TV’) e um texto analítico ‘sério’ que dá como assente a tese absolutamente discutível da influência de programas televisivos violentos no comportamento do público?
O que dizer, finalmente, da pergunta a respeito das maneiras pelas quais o Brasil poderia ‘enfrentar a violência social e a violência no trânsito’, em um espaço de oito a 12 linhas?
Não se trata aqui de fazer considerações sobre o projeto de avaliação que resultou no Enade. Seguramente, o ensino superior precisa ser avaliado e, desde o antigo ‘provão’, são claras as dificuldades para se chegar a uma proposta adequada. Entretanto, aparentemente os anos passam e as coisas não mudam: uma parcela de estudantes insiste no boicote, os jornais se agitam quando percebem alguma oportunidade de acusar o governo de manipulação ideológica – e é só. A preocupação fundamental com o teor das provas acaba sendo deixada de lado.
Não deveria, porque se trata de dinheiro público – muito dinheiro – investido nesse processo. Pelo visto, dinheiro jogado fora.
Como em outras ocasiões, este ‘provão da marolinha’ evidenciou muito mais do que uma tentativa canhestra de propaganda política. Em vez de avaliar os estudantes, serviu para expor a qualidade dos avaliadores. E a inépcia, a incúria ou o descompromisso dos órgãos responsáveis pela condução do exame.
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Jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)