Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

O relativismo cultural faz sentido?

Não é raro que algo relativo às ideias de multiculturalismo e relativismo cultural seja noticiado pela imprensa. No entanto, as discussões sobre isso raramente saem do mero achismo e de ortodoxias acadêmicas. Quando muito, os jornalistas ligam para algum antropólogo de plantão em busca de um comentário, com resultado geralmente insatisfatório. A razão disso é que não há como falar sobre essas ideias de maneira mais informada sem levar em conta problemas puramente morais (e não exatamente antropológicos) que tanto o multiculturalismo quanto o relativismo cultural envolvem. O presente artigo é uma tentativa de dar uma contribuição ao debate.

Os objetivos pretendidos aqui são 1) oferecer razões para pensar que o relativismo cultural é implausível; e que 2) a tentativa de utilizá-lo como base moral para defender o que será entendido aqui como multiculturalismo falha. A motivação para o artigo é o fato de não ser raro defender o multiculturalismo com base em uma crença no relativismo cultural. Por exemplo, é comum as pessoas condenarem a intromissão em prática cultural qualquer que entendemos como bárbara com base na razão de que estamos avaliando a prática em questão com nossas “lentes ocidentais”. Um terceiro objetivo, menos importante, é a sugestão de que os resultados da discussão sobre o relativismo irão nos sugerir a alterar a caracterização do multiculturalismo.

Matéria da Folha de S.Paulo (7/8) mostra uma disputa no Congresso com relação aos infanticídios praticados per certas tribos indígenas no Brasil. Segundo a matéria, os evangélicos no Congresso pretendem que agentes públicos sejam responsabilizados pelos assassinatos cometidos pelos índios, ideia que desagrada ao governo. Os evangélicos ganharam força com a história da índia Muwaji Suruwahá, que fugiu da tribo onde vivia para salvar a filha, nascida com paralisia cerebral, de ser assassinada. A índia e sua filha estão sob os cuidados de uma ONG de evangélicos chamada Atini. A responsável pela ONG, Márcia Suzuki, afirmou que “respeitar os índios também significa respeitar e proteger a vida deles”. Por outro lado, o antropólogo da UFRJ João Ferreira de Oliveira disse que “tirar índios de suas aldeias para criá-los sob a ética cristã é uma interferência violenta, não um projeto humanitário”.

Caracterizando as ideias

A intuição de Suzuki parece ser a de que existem valores, como o respeito à vida, que estão acima de qualquer costume cultural. De acordo com essa perspectiva, há certos valores que não podem ser violados mesmo quando se assume que várias culturas possuem hábitos diferentes e noções muito diferentes acerca do que é certo e do que é errado. Já Oliveira, aparentemente, tem a intuição de que devemos deixar que os índios pratiquem aquilo que é comum em sua comunidade, por mais que isso inclua assassinatos de crianças. Se Suzuki parece ser anti-relativista e anti-multiculturalista, Oliveira aparenta ser um multiculturalista (e imagino que seja relativista cultural). Vou começar por caracterizar o multiculturalismo e depois farei o mesmo com o relativismo cultural.

A ideia de multiculturalismo caracteriza-se por uma crença particular acerca de como tratar a diversidade cultural em uma determinada sociedade – sobretudo quando lidamos com minorias. Para os multiculturalistas, não basta apenas que as diferentes culturas sejam toleradas no seio da sociedade; é também preciso que elas tenham suas diferentes práticas rigorosamente respeitadas e protegidas. E tal proteção pode ser positivada a partir de legislações que garantam aos diferentes grupos a possibilidade de praticar aquilo que for entendido por eles como um aspecto cultural particular. Embora seja defensável que o multiculturalismo tenha mais elementos do que isso, penso que a caracterização dada seria aceita pela maioria dos multiculturalistas.

O relativismo cultural caracteriza-se pela crença de que não há valores morais absolutos, dado que várias culturas discordam entre si acerca do que é certo e do que é errado. Tudo o que há, nessa perspectiva, são diferentes códigos, costumes, convenções e práticas encontradas dentro de diferentes culturas – que também são apenas diferentes, e não melhores ou piores. O que define o que será moralmente certo ou errado será a tradição ou aceitação pela maioria. Assim, não faz sentido para o relativista dizer, por exemplo, que o aborto é moralmente condenável independente de onde é praticado. Para ele, não há um valor de verdade universal para a proposição “o aborto é moralmente condenável”. O valor de verdade dessa proposição irá variar de acordo com o costume da cultura dentro da qual é exprimida. Uma das consequências disso é tornar o nosso conjunto de valores morais (ocidentais) como apenas mais um entre vários outros e de modo algum acima deles.

Que as culturas sigam seu caminho

O relativismo cultural e o multiculturalismo não se implicam. É possível ser relativista cultural sem ser multiculturalista e ser multiculturalista sem ser relativista cultural. Do fato de alguma pessoa endossar o relativismo cultural, não se segue que ela esteja obrigada a defender tratamento igual para todas as culturas e respectivas práticas culturais. Pode haver uma razão qualquer para um relativista cultural eventualmente querer interferir em práticas de uma ou mais culturas, tratando-as, assim, de modo desigual em relação às outras.

Suponha que o Jonas e alguns amigos morem perto de uma comunidade que tem há milênios o hábito de fumar maconha. Jonas não tem nenhuma objeção quanto à moralidade dessa prática, assim como não vê a comunidade de modo algum como sendo inferior. Tais pontos de vista são endossado por seus amigos – eles sempre foram relativistas culturais convictos. No entanto, eles se sentem mal com o cheiro que a maconha exala e não conseguem, por causa disso, concentrar-se na atividade que desempenham, atividade esta que consiste em refletir sobre as maravilhas do relativismo cultural. Por essa razão, pedem ao governo que tome uma medida com relação à comunidade de maconheiros. Assim, ao mesmo tempo em que Jonas e seus amigos professem sua crença no relativismo cultural, defendem que uma prática de outra cultura seja pelo menos limitada por uma questão de mera convivência. Não há aqui a presença de nenhuma objeção moral ao hábito de fumar maconha nem de quaisquer noções de superioridade e inferioridade entre culturas.

Nem do fato de alguém ser multiculturalista se segue que estará comprometido com o relativismo cultural. Pode ser o caso de uma pessoa defender o multiculturalismo ao mesmo tempo em que nega que não há culturas inferiores ou superiores e também que o que é moralmente correto ou errado reflitam simplesmente aspectos culturais particulares. A Maria, por exemplo, pode defender que o melhor modo de lidar com as várias culturas presentes no país dela é permitir que elas sigam o caminho que quiserem, sem intervenção em suas práticas. De fato, Maria acha que a ideia de permitir que cada cultura siga seu caminho dentro de uma dada sociedade é universalmente correta. Os eventuais males provenientes de se colocar isso em prática, pensa Maria, são menores do que a terrível atitude de intromissão em uma cultura qualquer.

Multiculturalismo plausível

Embora uma mesma pessoa possa aceitar uma das ideias e rejeitar a outra, é bastante comum que os multiculturalistas utilizem a suposta verdade do relativismo para argumentar em favor do multiculturalismo, como o exemplo do início do artigo apontou (não vou, aqui, tratar da possibilidade de ocorrer o contrário). Eles não precisam mostrar que o relativismo cultural implica o multiculturalismo, tarefa que o exemplo do Jonas e seus amigos mostrou ser difícil. Basta que eles, partindo do relativismo como base moral, ofereçam razões para pensar que o multiculturalismo é uma boa ideia.

Se não há valores morais que não sejam relativos às varias culturas e se a nossa cultura ocidental (e também nossas práticas) não é superior de modo algum a elas, como impedir, utilizando razões morais, que um membro de uma cultura qualquer pratique um ato plenamente aceito dentro do seu meio, seja lá qual for o ato? Embora possa haver casos como o do nosso amigo Jonas, eles não são regra. E, de todo modo, não se trata de um caso em que há uma objeção propriamente moral: Jonas continua não fazendo objeção moral alguma aos vizinhos. Se, em vez de fumar maconha, seus vizinhos tivessem o hábito de degolar os filhos em idade escolar silenciosamente durante as terças-feiras, Jonas não teria qualquer objeção. Ele muito provavelmente se oporia à intromissão do Estado nesse hábito dado que isso em nada o atrapalha (e supondo que ele objete a matança, não é bizarro que ele o faça alegando razões apenas de convivência?).

A minha intenção é a de justamente retirar as razões que Jonas pensa ter para concluir que matar crianças nas terças-feiras é algo correto relativamente à cultura das pobres crianças. Quero, assim, tornar o relativismo implausível. E se eu for bem sucedido, ele não poderá ser utilizado como uma boa base em favor do multiculturalismo.

Antes de prosseguir com as objeções ao relativismo cultural, é bom sumarizar o que temos até aqui. Primeiro, tracei os objetivos e a motivação do texto. Após isso, ofereci caracterizações para as ideias de multiculturalismo e relativismo cultural, respectivamente. Afirmei também que, embora as duas ideias não sejam implicadas uma pela outra, o relativismo cultural pode ser usado como uma razão para se aceitar o multiculturalismo. A seguir apresento algumas razões para rejeitar o relativismo cultural.

Objeções ao relativismo cultural

1. O argumento em seu favor não é válido

Da caracterização do relativismo cultural, podemos extrair o seguinte argumento:

Diferentes culturas têm diferentes pontos de vista sobre questões morais, logo não há tal coisa como valores morais absolutos. Assim, se diferentes culturas têm pontos de vistas diferentes sobre a questão do aborto, não existe uma verdade sobre a moralidade do aborto que extrapole o que uma cultura particular pensa sobre isso.

Repare que o argumento parte de uma premissa acerca de uma observação de algo que ocorre no mundo para uma conclusão sobre a natureza da moralidade. Ora, por que uma coisa deveria se seguir da outra? Podemos concluir que não há verdade sobre questões morais partindo da premissa de que culturas têm diferentes pontos de vista tanto quando podemos concluir que não há verdade sobre o formato da Terra partindo da premissa que várias culturas pensam coisas diferentes sobre o tema. O ponto dessa objeção não é afirmar que há verdades morais absolutas, mas sim, que a conclusão que elas não existem não se segue da premissa oferecida. O fato do argumento não ser válido torna-se evidente quando vemos que a premissa pode ser verdadeira e a conclusão falsa, coisa que não pode ocorrer em argumentos válidos. Em um argumento válido, se a premissa ou premissas forem verdadeiras, a conclusão também tem de ser verdadeira.

2. O relativismo cultural nos permite derivar conclusões horrorosas de argumentos pretensamente sólidos

Considere as seguintes conclusões: matar judeus é um bem, discriminar negros é justo e bater em mulheres é correto. Se relermos a caracterização da ideia do relativismo cultural, vemos que aquilo que pode ser caracterizado como correto é aquilo que é socialmente aceito. Suponha que o Renan mora na sociedade X. Ele diria algo como “para qualquer prática, esta prática será moralmente correta se, e somente, se ela for aprovada pelos códigos culturais da cultura X”.

Condenada e moralmente errada

Poderíamos adicionar a isso uma premissa como “os códigos de cultura da sociedade X aprovam a prática da matança de judeus”. O que se segue? Ora, a conclusão é que na sociedade em que vive Renan, matar judeus é moralmente correto. A ideia do relativismo cultural fornece a Renan um argumento válido (e um relativista cultural está comprometido, no caso do exemplo ser real, a considerar o argumento como sólido, i. e., válido e com premissas verdadeiras) em favor de uma conclusão horrorosa. Não penso que alguém sensato considere moralmente aceitável, sob qualquer ponto de vista, a matança de judeus (e de qualquer povo). O mesmo tipo de argumento poderia ser formado com vistas a derivar qualquer uma das conclusões que listei.

3. Não poderíamos discordar do que fosse socialmente aceito

O relativismo cultural nos força a adotar o ponto de vista bizarro de que é impossível discordar daquilo que é socialmente aceito sem entrar em contradição. Assim, dizer que “o aborto é errado” em uma sociedade favorável ao aborto é dizer que uma prática moralmente correta é moralmente errada, o que é uma contradição. Imaginar que um alemão qualquer se contradisse quando eventualmente condenou o que os nazistas estavam fazendo é mais que implausível, é ridículo. Será que Rosa Parks estava também estava se contradizendo?

4. O relativismo cultural abole o progresso

O Brasil de meados do século 19 era um país que escravizava negros. O Brasil do século 21 é um país que não escraviza negros. Bom, qual desses “dois países” é melhor? De acordo com o relativista cultural, nenhum. O relativista argumentaria que as convenções sociais de ambos eram apenas distintas e que não podemos dizer que um é melhor do que o outro. Logo, estamos errados ao dizer que o que se fazia no século 19 era moralmente errado na época, uma vez que escravizar negros era uma prática socialmente aceita. Nossa mentalidade atual, no entanto, condena essa prática, fato que faz com que, agora, ela seja moralmente errada. Não podemos de modo algum, conclui o relativista, dizer sem qualificações que a escravidão é moralmente condenável. Por fim, nós não evoluímos de lá para cá, uma vez que a noção de progresso pressupõe um juízo valorativo entre duas culturas distintas, coisa que o relativista cultural rejeita.

Os protestos de Rosa Parks

Aliás, eu não ficaria surpreso se muitos dos defensores das cotas para negros em universidades se revelassem relativistas culturais observantes! Em todo o caso, seria estranho reivindicar cotas com base em um acontecimento passado que não se pode lamentar – uma vez que a escravidão era moralmente correta e é insensatez discordar do que é moralmente correto. Ao se lamentar a escravidão, assume-se que as convenções morais atuais são superiores às anteriores. Isso, mais cedo ou mais tarde, conduzirá ao abandono da posição relativista.

5. O relativismo cultural deixa os grupos mais fracos desamparados

A condenação da agressão contra grupos minoritários dentro de uma sociedade ficaria a mercê de a ideia de não agredi-los ser uma convenção social. Mas se por um algum motivo a maioria da sociedade brasileira, por exemplo, resolvesse que eliminar os canhotos seria uma boa ideia (ai de mim), o relativista simplesmente cruzaria os braços e me diria que essa é uma ação da mais reta correção. Como consolo, ele poderia me dizer que outros canhotos, no futuro, poderão não ser eliminados. Basta que a maior parte da sociedade se convença que tratar os canhotos assim não é bom.

Acredito que as razões acima tenham mostrado que o relativismo cultural é pelo menos implausível. Embora eu acredite que a implausibilidade dessa ideia seja um bom indício para pensar que ela está errada, nada do que foi dito aqui implica que ela de fato está. De todo modo, quem aceita o relativismo cultural tem de se comprometer com posições completamente bizarras. O relativismo cultural tem, além da desvantagem de ser implausível, a característica desagradável de fazer com que seus adeptos tenham de assentir com bizarrices, como foi mostrado nas razões apresentadas logo acima. Qualquer ideia que diga respeito à moralidade que implique que, como vimos, os protestos de Rosa Parks resultariam em contradição, está muito provavelmente equivocada.

Saída é repensar o multiculturalismo

Uma vez que temos razões para pensar que a ideia do relativismo cultural não é, afinal, boa, temos também razões para não argumentar favoravelmente ao multiculturalismo utilizando o relativismo como base. Afinal, não me parece ser uma boa estratégia utilizar como base algo que tem todas as probabilidades de estar errado. Assim, qualquer um que pretenda argumentar a favor do multiculturalismo terá de o fazer sem evocar o relativismo cultural. E caso o evoque, terá de lidar com as objeções.

De mais a mais, uma sugestão final que eu quero que fique tão clara quanto possível é que assumindo (assumamos isso, por um instante) que o relativismo cultural está errado, teremos consequências interessantes referentes à plausibilidade da caracterização dada de multiculturalismo. Se temos razões para pensar que há, pelo menos, algumas práticas incorretas para além da cultura que praticadas, podemos colocar em causa a noção de que devemos garantir que as diferentes culturas “tenham suas diferentes práticas rigorosamente respeitadas e protegidas [e que] tal proteção pode ser positivada a partir de legislações que garantam aos diferentes grupos a possibilidade de praticar aquilo que for entendido por eles como um aspecto cultural particular”.

A discussão acerca do relativismo apontou com bastante clareza para a ideia de que há práticas culturais que são simplesmente inaceitáveis. Sendo assim, não temos razão para fechar os olhos quando confrontados com estupros, mutilação vaginal, matanças etc. Não é nada óbvio que devamos permitir que membros de determinada cultura pratiquem atrocidades com algum outro membro dessa mesma cultura. Uma omissão dessa natureza deixaria de poupar muito sofrimento. Acredito que exista a necessidade de reformular, assim, a caracterização do multiculturalismo.

Mas não precisamos negar o multiculturalismo em bloco, claro. Pessoas diferentes possuem práticas culturais diferentes e há um grande número de práticas que devem ser respeitadas. Não faz parte, evidentemente, das pretensões deste artigo negar o direito de cultuar qualquer entidade que seja, ou de acreditar em qualquer coisa que seja. Sociedades multiculturais podem ser ricas, diversas e tolerantes. Mas a reflexão sobre o relativismo cultural sugere que nem tudo deve ser tolerado e que uma melhor caracterização do multiculturalismo deve levar isso em conta. Afinal, se estamos dispostos a condenar atrocidades como os exemplos dados na última seção, por qual razão deixaríamos de estar dispostos de condenar atrocidades que podem ocorrer dentro de culturas que convivem conosco?

Vimos, mais acima, que uma pessoa pode não ser relativista e mesmo assim apoiar o multiculturalismo como ele está descrito no início do texto. Será que a posição da Maria, personagem do exemplo, é razoável? Penso que não. É bastante difícil saber qual seria o bem gerado em permitir que membros de determinada cultura cometam atos bárbaros, mas é fácil ver o mau que podemos evitar quando consideramos que há coisas que claramente violam a dignidade e a autonomia dos indivíduos. Ao se defender o multiculturalismo apresentado no início do texto, a dificuldade de justificar barbarismos sem apelar para o relativismo irá surgir. Uma vez que se rejeita o relativismo, vemos que uma boa saída é repensar o próprio multiculturalismo.

Referências:

RACHELS, James. Elements of Moral Philosophy. New York, Mc-Graw Hill Higher Education, 1986.

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[Aluízio Couto é estudante, Ouro Preto, MG]