Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

O tátil e o visual

Janela da Alma, filme dirigido por João Jardim e Walter Carvalho (2002), apresenta falas daqueles que se põem no mundo de outras formas, com outros modos de ver. Talvez haja um interesse em trazer pessoas que, em graus variados, apresentem ‘problemas na visão’. Problemas esses que percorrem desde a miopia da atriz Marieta Severo, passando pela ‘cegueira’ do vereador mineiro Arnaldo Godoy e colhendo ideias de Hermeto Pascoal, José Saramago, Agnès Varda, dentre outros.

Logo de início, o músico Hermeto Pascoal brinca com seus olhos. Ele diz que ‘eles dançam’. Ele vai além da dança: com sua quase cegueira, ele afirma enxergar com a nuca, deslizando suas formas de perceber o mundo por imagens. O poeta Antônio Cícero provoca a afirmação de que o olho é a janela da alma. Para ele, se de fato o é, então se deve olhar pela janela com outro olho e o outro olho traz outra janela, mas quem olha é o olho; assim, a compreensão da visão é embaralhada por essas inter-relações estabelecidas pelo olhar.

Wim Wenders acredita que as imagens devem obedecer a uma história. O enquadramento, para ele, é uma forma de apreender o mundo, excluindo mais do que incluindo. Uma forma de condicionar o olhar. O enquadramento também é uma possibilidade de descrever a experiência de quem usa óculos. As lentes, em uma armação, funcionam como um enquadramento. Quando se tira os óculos, o problema não está na miopia ou no astigmatismo, e sim, no excesso de imagens, não mais filtradas pelos óculos. João Ubaldo, escritor brasileiro, diz não gostar de tirar os óculos; pedidos inesperados para que ele tirasse já foram feitos até durante o sexo. Segundo ele, apenas moças degeneradas eram capazes de fazes esse pedido. Já a atriz Marieta Severo não vive sem lentes ou óculos. Estar sem eles é como estar nua. Perder uma lente durante sua atuação gera desconcerto. Em suas próprias palavras ‘você tá no olho do outro’.

Expressões equivalentes

O cinema, um dos principais espetáculos da ilusão ótica, foi o que desencadeou problemas de visão no cineasta Walter Lima Jr. Tal percepção da dificuldade em apreender a imagem cinematográfica estava em não visualizar de forma focada. O desfocamento, a imagem borrada… Desafios para olhos que são a todos os momentos exigidos, pressionados, estimulados. Somos orientados a nunca perder o foco, a insistir em nossos modos de ver.

Temos, ao ver o filme, afinadas questões da subjetividade do olhar. São formas distintas de apreender o mundo; parte-se desde a fisiologia do órgão humano responsável pela visão, até a posição do olhar frente uma sociedade mediada por imagens. Segunda Annateresa Fabris:

‘A centralidade adquirida pela visualidade está provocando uma alteração significativa no predomínio que a cultura ocidental estava acostumada a atribuir ao verbal. A crença na palavra como a forma mais elevada da prática intelectual […] está sendo colocada em xeque a todo o momento. O mundo como texto, defendido até pouco tempo atrás por vertentes como o estruturalismo e o pós-estruturalismo, está cedendo lugar ao mundo como imagem, isto é, à tendência a visualizar a existência, mesmo no caso de fenômenos que não são visuais em si’ (2007, p.1).

A afirmação de Fabris pode ser entendida a partir do momento que construímos nossas representações de mundo por imagens, pensamos através delas e criamos redes de significação com as associações oriundas das experiências do ‘ver’ cotidiano. A transformação do verbo em signo é um dos caminhos que permitem pensar a existência no campo da predominância do visual. Ao arranjarmos um conjunto de letras, de tal maneira que formamos uma palavra, temos ali a própria representação da imagem, mesmo que indiretamente. A expressão gráfica é, também, uma expressão visual.

Fluxo de uma imagem

Bernardo Carvalho, ao escrever sobre a linguista francesa Clarisse Herrenschmidt e o seu livro Les Trois Écritures – Langue, Nombre, Code, retoma a ideia de que ‘a escrita tornou visível o invisível’ (2007) e ele vai além, ao dizer que ‘A escrita representa não só o que não está presente, mas o que não existe’ (idem). Se a materialização da palavra é capaz de resgatar o invisível, qual o estatuto da imagem ao confrontá-la com a escrita? E o que torna a imagem incapaz de dizer ‘não’?

A imagem não gera significados por si só, ela não carrega uma rede de sentidos prontos e acabados. Ela depende do ‘outro’ que a olha e abre um espaço para a ressimbolização. A imagem não se põe em confronto com a escrita; a própria escrita pode ser imagem. Pensemos nas experiências que partem desses conceitos, como a poesia concretista no Brasil de Augusto de Campos, Décio Pignatari, e Haroldo de Campos, que ao (des)ordenar palavras, cria poemas visuais.

Se na imagem não o existe o não, isso se deve em muito pela forma como nos colocamos no papel de visualizadores ou observadores. É o que nos mostram alguns depoimentos do filme Janela da Alma. Os empecilhos para um ‘olhar’ tido como perfeito conduz os entrevistados a diversos assuntos, possibilitando reflexões no campo da literatura, política, artes. E cada um atribui a sua especificidade, aos seus detalhes da experiência do ver. A cineasta Agnès Varda percebe na visão uma relação íntima com os sentimentos vividos, distinguindo o reconhecimento visual da visualização emocional. A ligação afetiva ou outros sentimentos é capaz de interferir nos modos de ver. Ao amar alguém, acho-o belo, sublime, perfeito; não noto seus ‘defeitos’ ou características que podem ser consideradas negativas. Se o que nutro aproxima-se da raiva, da mágoa, do ódio, posso ressaltar todos os deslizes e falhas desse pessoa.

Ao deslocar a questão do ‘ver’ para um objeto específico, como a fotografia; percebo-a como um terreno fértil para exercitar a assertiva de que na imagem não existe o ‘não’. Ao flertar com a ‘escrita da luz’ não cabe, neste momento, debater suas especificidades técnicas ou conceituais. Filio-me à ideia de que ‘as fotos mostram as pessoas […] presentes num lugar e numa época específicas de sua vida; agrupam pessoas e coisas que, um instante depois, se dispersaram, mudaram, seguiram o curso de seus destinos independentes’ (SONTAG, 2004, p.85). Da mesma forma que a fotografia apresenta pessoas que depois do registro fotográfico se dispersaram, ela mesma se dispersa, é reordenada, deslocada, ingressa no repositório de imagens da humanidade. É privada, ao mesmo tempo em que pode ser publicizada. Um exemplo do fluxo que uma imagem fotográfica adquire, pode ser percebido na série ‘Mulheres Argelinas’, de Marc Garanger. A imagem transcende seu objetivo primeiro de existência e aqui, neste momento, é apresentada para discutir questões relativas ao olhar e às experiências do ver.

Símbolos e significados

Esse mesmo olhar que nos interpela é capaz de denunciar a presença do fotógrafo. A moça registrada por Garanger, além de confrontar o nossa olhar, carrega em sim a indignação de ser ‘invadida’ por aquele aparato. Contudo, é salutar ressaltar as informações prévias desse trabalho de Marc Garanger. As fotografias foram feitas na Argélia, nos anos de 1960, quando a serviço do exército francês, foi incumbido de fotografar os habitantes daquele país para a confecção de um novo documento de identificação. A dor no feminino concentrava-se especialmente em se desnudar do véu. E o que essa imagem nos diz? Creio que pode dizer tudo, menos dizer não. Mas esse não indizível só se torna possível no momento que a olho, fito seus olhos, a composição, a pose. Continua possível ao deitar meu olhar carregado de valores e ideias, educado por regimes do ver.

Ao tecer considerações sobre o trabalho do fotógrafo francês, especialmente a questão da designação pelo olhar frontal na enunciação fotográfica, Phillipe Dubois percebe essa inversão que só o olhar é capaz, e ainda:

‘Porque focalizam seu olhar na própria objetiva que as viola e pretende roubar-lhes a identidade, porque em nenhum momento o olhar foge, todas essas mulheres, em sua absoluta retidão, não apenas assumem plenamente o olhar que o ocupante faz pesar sobre elas, com tudo que ele veicula de ignomínia , mas sobretudo, elas no-lo mandam de volta, elas devolvem-no a ele (a nós) mesmo(s)’ (2003, p.184).

Se o olhar das mulheres argelinas desvela um contexto fotográfico limite e seus aspectos documentais contribuem no processo de significação, é nesse jogo do duplo olhar que temos a possibilidade de retomar os símbolos e gerar novos significados. Vale ressaltar que ‘Nunca olhamos apenas uma coisa, estamos sempre olhando para as relações entre as coisas e nós mesmo’ (BERGER apud LEITE, 2001, p. 31).

Muito além do olhar

E quando não existe a possibilidade do ‘olhar’, ao pensarmos as maneiras tradicionais do ver? Como fica esse olhar das coisas para nós? Como deslizar por um mundo, sem vê-lo, nessa nossa existência que perpassa pelo visual? É o que apresenta Evgen Bavcar, ao reiterar que imagem e linguagem são indissociáveis, cabendo ao verbo construir as imagens.

‘Quando Bavcar fotografa ele dança. Se estabelece uma harmonia de Bavcar com a natureza e a luz que ele ilumina naquelas trevas. Bavcar nos mostra um mundo outro, imperceptível para nós, totalmente cegos a estas outras percepções. É impressionante, sedutor e apaixonante deixar ele nos descortinar, nos levar a ver este mundo o qual ele habita’ (MAGALHÃES, 2004, p. 75).

O esforço de Bavcar concentra-se na comunhão entre o visível e o invisível. Seria uma forma de subverter os regimes do ver? Questionar a linha intransponível dos que veem e dos que são desprovidos do ver? Seus trabalhos questionam a centralidade que o olho, órgão humano, ganha no mundo contemporâneo, nos provocando e convidando para experimentar outras formas de ver, de apreender as imagens. Não se trata de contrapor a forma tradicional do ver com uma nova possibilidade. E sim, ampliar essas potencialidades da visualidade, buscar novas relações e interpretações e, acima de tudo, nos colocar no lugar do outro.

Evgen Bavcar compreende o olhar como um enfrentamento. E para driblar o olhar de um cego em um mundo do ‘visível’, ele desenvolve a noção de um contra-olhar. É por isso que ele usa costumeiramente um pequeno espelho em suas roupas.

‘Devolver seu olhar ao outro significa existir e estar em posição de responder à questão daquele que vê você. O olhar, na realidade, não existe sem o diálogo entre aquele que olha e vê você, e o outro que olha também, mais que não nos vê a partir do mesmo registro de percepção’ (BAVCAR apud MAGALHÃES, 2004, p. 77).

Evgen Bavcar une imagem e linguagem em seus trabalhos fotográficos; e também no seu cotidiano. Ver, para ele, está ligado a uma forma ampla de perceber o mundo, tateá-lo, transformá-lo em um universo próximo, particular, seu. Desta maneira ele produz suas imagens, constrói suas visualizações e experimenta a existência em uma escuridão permeada pelas luzes que lança à sua frente. A imagem, para Bavcar, está muito além do que é apresentado pelo olhar. É uma experiência que exige pensar as imagens de forma amplificada, com alcances ao além do que se vê.

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Professor universitário, graduado em comunicação social e mestrando em Arte e Cultura Visual pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO